José Tolentino Mendonça*
Leitura
Um amigo, por definição, é alguém que caminha a
nosso lado, mesmo se separado por milhares de quilómetros ou por
dezenas de anos. Um amigo reúne estas condições que parecem paradoxais:
ele é ao mesmo tempo a pessoa a quem podemos contar tudo e é aquela
junto de quem podemos estar longamente em silêncio, sem sentir por isso
qualquer constrangimento. Temos certamente amigos dos dois tipos. Com
alguns, a nossa amizade cimenta-se na capacidade de fazer circular o
relato da vida, a partilha das pequenas histórias, a nomeação verbal do
lume que nos alumia. Com outros, a amizade é fundamentalmente uma
grande disponibilidade para a escuta, como se aquilo que dizemos fosse
sempre apenas a ponta visível de um maravilhoso mundo interior e
escondido, que não serão as palavras a expressar.
***
A amizade é uma roda que se alarga como aquelas
pedras que na infância atirávamos para o lago e nos fascinavam a
desenhar, na água, círculos cada vez maiores.
***
A cada hora somos visitados e, desse
reconhecimento, depende a paz do nosso coração, depende o vigor da nossa
esperança. A amizade é a aceitação de que Deus nos visita através do
que nos é próximo. Com os amigos construímos uma história que é
sagrada, mesmo se a nossos olhos parece apenas feitas de coisas simples
e muito humanas. Depende muito do que estamos dispostos a acolher
quando acolhemos os outros.
***
O acento da nossa cultura está de tal modo
colocado sobre o amor, que nos sentimos muitas vezes sem recursos para
pensar devidamente as formas e o lugar da amizade. Falamos dela com
monossílabos, de modo evasivo e chão, como se não fôssemos afinal
herdeiros de um património de experiência, de ensinamento e de palavra
multisseculares. Ora, se há motivo que o cristianismo aprofundou no
tempo é o da amizade, e entendendo-a não apenas como componente da
formação humana, mas como traço privilegiadíssimo do itinerário
espiritual.
***
Para a definição do nosso caminho espiritual é
importante percebermos a diferença entre o amor e a amizade. Com muita
facilidade adoptamos o vocabulário do amor, que corre o risco de
tornar-se uma gramática sonâmbula. Dizemos «amo» sem que isso traga um
estremecimento qualquer. Impor ta pensar no que dizemos, quando dizemos
que amamos a Deus. O modelo da amizade pode ajudar-nos a perceber
melhor a nossa relação com Deus. A amizade é uma forma mais objectiva,
mais concretamente desenhada, porventura mais possível de ser vivida.
***
Pensemos naquilo que a experiência de amizade
traz de iluminante para estruturar a nossa relação com Deus: a aceitação
do outro, o reconhecimento sereno dos limites, a diferenciação, a
ausência de domínio, a liberdade, a gratuidade, a pura contemplação, o
não reter, a percepção de que o outro é passagem na minha vida e
passagem que, por dentro, me fecunda. Os amigos estão interessados no
concreto, no pormenor, na pequena escala, no relato simples, no inútil
aparente, no correr indiferenciado do tempo, na espuma dos dias.
***
É importante recuperarmos alguma da história do
pensamento em torno a amizade até para percebermos que tantas questões
que vivemos à nossa escala ligam-se, no fundo, a problemas universais.
Que se pode dizer da amizade? Qual é mesmo o seu idioma? Como se
constrói e desconstrói? A amizade é sempre um bem?
***
Jesus tinha com o grupo dos Doze discípulos uma
relação de amizade. Quem é, por isso, o «discípulo amado», referido
dessa forma unicamente pelo Evangelho de João? Não o sabemos, porque ele
permanece anónimo, constituindo uma espécie de enigma que o Evangelho
guarda. Nunca se diz o seu nome, mas enunciam-se relatos e detalhes de
afeto a seu respeito e, por eles, percebemos que o «discípulo amado» é
um «discípulo amigo».
***
Se calhar, houve um tempo na relação dos
discípulos com Jesus em que a palavra «servos» ou mesmo a palavra
«discípulo» era apta a descrever o que viviam. Porém, é o próprio
seguimento de Jesus que pede que elas sejam suplantadas. Agora só a
palavra «amigo» vale para descrever alguém que segue Jesus, porque o
próprio Jesus nos funda numa relação de conhecimento e de
reconhecimento de tudo aquilo que Ele ouviu do Pai.
***
Muitas vezes o nosso conflito e a nossa dor
nascem deste impasse: por um lado, não somos capazes das linhas de
continuidade que idealizamos e, por outro, não estamos muito preparados
para valorizar, de um ponto de vista espiritual, as modificações
permanentes pelas quais passamos.
***
Há um fazer que está em diálogo com o dom, há
outro porém que nos faz esquecer o sentido e o sabor da dádiva. Há um
fazer que é só fazer, e há outro que nos torna mais capazes de acolher.
Não estar apenas preocupado em dar, mas também em sintonizar com o dom.
----------------------------------
* José Tolentino Mendonça. Teólogo português. Escritor. Poeta. Conferencista.
In Nenhum caminho será longo - Para uma teologia da amizade, ed. Paulinas
26.09.12
In Nenhum caminho será longo - Para uma teologia da amizade, ed. Paulinas
26.09.12
Fonte: http://www.snpcultura.org/nenhum_caminho_sera_longo.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário