quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Nenhum caminho será longo - Para uma teologia da amizade

 José Tolentino Mendonça*
Leitura

Um amigo, por definição, é alguém que caminha a nosso lado, mesmo se separado por milhares de quilómetros ou por dezenas de anos. Um amigo reúne estas condições que parecem paradoxais: ele é ao mesmo tempo a pessoa a quem podemos contar tudo e é aquela junto de quem podemos estar longamente em silêncio, sem sentir por isso qualquer constrangimento. Temos certamente amigos dos dois tipos. Com alguns, a nossa amizade cimenta-se na capacidade de fazer circular o relato da vida, a partilha das pequenas histórias, a nomeação verbal do lume que nos alumia. Com outros, a amizade é fundamentalmente uma grande disponibilidade para a escuta, como se aquilo que dizemos fosse sempre apenas a ponta visível de um maravilhoso mundo interior e escondido, que não serão as palavras a expressar.

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A amizade é uma roda que se alarga como aquelas pedras que na infância atirávamos para o lago e nos fascinavam a desenhar, na água, círculos cada vez maiores.

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A cada hora somos visitados e, desse reconhecimento, depende a paz do nosso coração, depende o vigor da nossa esperança. A amizade é a aceitação de que Deus nos visita através do que nos é próximo. Com os amigos construímos uma história que é sagrada, mesmo se a nossos olhos parece apenas feitas de coisas simples e muito humanas. Depende muito do que estamos dispostos a acolher quando acolhemos os outros.

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O acento da nossa cultura está de tal modo colocado sobre o amor, que nos sentimos muitas vezes sem recursos para pensar devidamente as formas e o lugar da amizade. Falamos dela com monossílabos, de modo evasivo e chão, como se não fôssemos afinal herdeiros de um património de experiência, de ensinamento e de palavra multisseculares. Ora, se há motivo que o cristianismo aprofundou no tempo é o da amizade, e entendendo-a não apenas como componente da formação humana, mas como traço privilegiadíssimo do itinerário espiritual.

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Para a definição do nosso caminho espiritual é importante percebermos a diferença entre o amor e a amizade. Com muita facilidade adoptamos o vocabulário do amor, que corre o risco de tornar-se uma gramática sonâmbula. Dizemos «amo» sem que isso traga um estremecimento qualquer. Impor ta pensar no que dizemos, quando dizemos que amamos a Deus. O modelo da amizade pode ajudar-nos a perceber melhor a nossa relação com Deus. A amizade é uma forma mais objectiva, mais concretamente desenhada, porventura mais possível de ser vivida.

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Pensemos naquilo que a experiência de amizade traz de iluminante para estruturar a nossa relação com Deus: a aceitação do outro, o reconhecimento sereno dos limites, a diferenciação, a ausência de domínio, a liberdade, a gratuidade, a pura contemplação, o não reter, a percepção de que o outro é passagem na minha vida e passagem que, por dentro, me fecunda. Os amigos estão interessados no concreto, no pormenor, na pequena escala, no relato simples, no inútil aparente, no correr indiferenciado do tempo, na espuma dos dias. 

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É importante recuperarmos alguma da história do pensamento em torno a amizade até para percebermos que tantas questões que vivemos à nossa escala ligam-se, no fundo, a problemas universais. Que se pode dizer da amizade? Qual é mesmo o seu idioma? Como se constrói e desconstrói? A amizade é sempre um bem?

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Jesus tinha com o grupo dos Doze discípulos uma relação de amizade. Quem é, por isso, o «discípulo amado», referido dessa forma unicamente pelo Evangelho de João? Não o sabemos, porque ele permanece anónimo, constituindo uma espécie de enigma que o Evangelho guarda. Nunca se diz o seu nome, mas enunciam-se relatos e detalhes de afeto a seu respeito e, por eles, percebemos que o «discípulo amado» é um «discípulo amigo».

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Se calhar, houve um tempo na relação dos discípulos com Jesus em que a palavra «servos» ou mesmo a palavra «discípulo» era apta a descrever o que viviam. Porém, é o próprio seguimento de Jesus que pede que elas sejam suplantadas. Agora só a palavra «amigo» vale para descrever alguém que segue Jesus, porque o próprio Jesus nos funda numa relação de conhecimento e de reconhecimento de tudo aquilo que Ele ouviu do Pai.

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Muitas vezes o nosso conflito e a nossa dor nascem deste impasse: por um lado, não somos capazes das linhas de continuidade que idealizamos e, por outro, não estamos muito preparados para valorizar, de um ponto de vista espiritual, as modificações permanentes pelas quais passamos.

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Há um fazer que está em diálogo com o dom, há outro porém que nos faz esquecer o sentido e o sabor da dádiva. Há um fazer que é só fazer, e há outro que nos torna mais capazes de acolher. Não estar apenas preocupado em dar, mas também em sintonizar com o dom.
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* José Tolentino Mendonça. Teólogo português. Escritor. Poeta. Conferencista.
In Nenhum caminho será longo - Para uma teologia da amizade, ed. Paulinas
26.09.12
Fonte:  http://www.snpcultura.org/nenhum_caminho_sera_longo.html

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