Apesar de ter nascido numa família de banqueiros, Maria Alice
Setúbal, a Neca, nunca manifestou interesse pelo mundo das finanças.
Pelo fato de ser a única mulher entre os sete filhos de Olavo Setúbal
(1923-2008), teve a primazia de deixar para os irmãos as preocupações
com o desempenho do principal negócio da família, o grupo Itaú. Ela já
era socióloga formada pela USP e atuava na área de educação, quando um
segundo casamento, há 12 anos, com Paulo de Almeida Prado, a levou a ser
uma espécie de hoteleira rural. Juntos, compraram a Fazenda Capoava, em
Itu, a 101 km da capital paulista, onde no início deste mês foi
inaugurado um pequeno museu da história da culinária caipira.
O Espaço Memória ocupa uma casa de taipa na área central da fazenda,
cujo casarão original data do século XVIII. Para montá-lo foi realizada
uma pesquisa sobre a cultura gastronômica do Estado, que contempla tanto
a trajetória dos bandeirantes e tropeiros como a cultura alimentar dos
engenhos e fazendas de café. Uma apresentação dinâmica, que vai de
painéis a animação 3D, reúne receitas tradicionais da região, técnicas
culinárias e utensílios do passado. A área museológica foi concebida por
Ricardo Ribenboim, ex-diretor do Itaú Cultural.
Para Neca, o museu foi uma continuidade do projeto Terra Paulista,
que coordenou há cinco anos e resultou em três livros e numa série de
documentários. No meio tempo, ela descobriu o ambientalismo e acabou
ligada à ex-candidata à Presidência Marina Silva. Com essa plêiade de
atividades, mas sem ser executiva de nada, Neca se divide entre o campo e
a cidade, onde preside a Fundação Tide Setúbal, criada em homenagem à
mãe para promover cultura e cidadania.
Valor: Você nunca se seduziu pela atividade financeira da família?
Neca Setúbal: Nunca. Sempre segui um caminho alternativo.
Valor: E a família aceitou bem?
Neca: Acho que não havia nenhuma expectativa de que
eu fosse para a área financeira. Tenho seis irmãos homens. Apesar de eu
ser a segunda, havia muito homem para cuidar dessa parte.
Valor: O fato de ser mulher, então, permitiu maior liberdade?
Neca: Engraçado, esses dias eu estava fazendo um
encontro familiar - a gente sempre promove esses encontros e cada vez é
um que conta histórias - e falei muito sinceramente o que penso. Acho
que eu tive o grande privilégio de poder escolher minha vida
profissional, de ir experimentando, fazendo as coisas mais diferentes,
aprendendo, começando e terminando coisas, abrindo portas. Assim,
conheci o mundo desde a periferia - que tem pessoas que acho
superlegais, que gosto, que já foram à minha casa e pelas quais tenho o
maior respeito - até o mundo de pessoas da classe AA. Passando por esses
dois extremos, também convivi com diferentes grupos na área
educacional, social, ambiental, cultural, com o pessoal ligado à
história. Acho essa a minha maior riqueza. Foi um privilégio que meus
irmãos não tiveram.
Valor: Ultrapassar os limites sociais foi uma decisão, uma coisa que você achou que devia fazer?
Neca: Não sei dizer exatamente como isso começou,
mas veio um pouco com minha história. Estudei no Colégio Nossa Senhora
do Morumbi, fiz o ginásio lá, que na época era uma escola experimental -
não é mais. Eram freiras supermodernas, com um trabalho social forte,
ligado à Teologia da Libertação, que era muito significativa no fim dos
anos 60. Acho que foi aí que comecei a perceber de maneira sensível
essas questões sociais. Depois fui fazer ciências sociais na USP. A
vivência na USP foi um prolongamento dessa percepção. Eu tinha várias
colegas que os pais proibiram de prestar vestibular na USP. Muito menos
pra ciências sociais!
Valor: Ué, mas a USP já era a melhor universidade do Brasil.
Neca: Mas era considerada um antro de comunistas. Eu
entrei em 1970, um ano depois do AI-5, e meu pai sempre deu a maior
força. Lembro que meu irmão mais velho queria que meu pai me proibisse
de estudar ciências sociais. Mas meu pai dava força. Ele se dizia um
liberal do século XX e acho que ele era exatamente isso. Ele gostava de
política, gostava de debater e também de ouvir outras posições.
Valor: E você tinha pendores de esquerda?
Neca: Bastante. Tanto que quando ele foi prefeito de
São Paulo (1975-79), pela Arena, eu era do MDB. Os jornais exploravam
essa diferença. Mas ele nunca se preocupou com isso. Lembro que fui à
missa do [Vladimir] Herzog na época em que ele era prefeito. Enfim,
coisas dos anos 70. Mas sempre tive participação em movimentos sociais,
fui ligada à esquerda, estudei o "Capital".
Valor: E o caminho de identificação com os "verdes" se deu via movimentos sociais ou via ideologia?
Neca: Nenhum dos dois. Acho que a origem disso foi
quando me casei com o Paulo, na Fazenda Capoava. Sou superurbana por
conta da minha história familiar. Nunca tive essa coisa de passar férias
na fazenda. A gente passava férias numa cidade do interior, Águas da
Prata, onde temos casa até hoje, mas não era uma fazenda. Eu tinha um
amigo que brincava comigo e dizia: "A Neca é tão urbana, que para ela o
Parque do Ibirapuera já é zona rural!" Minha vida mudou quando conheci o
Paulo e a gente comprou a fazenda e criou o hotel. Aí está o embrião da
minha relação com a questão ambiental.
Valor: Como aconteceu?
Neca: Eu tinha sensibilidade para a questão
ambiental, pelo fato de trabalhar com educação, mas era distante. Quando
me casei com o Paulo comecei a ter uma vivência de natureza, a entender
seus ciclos de forma contemplativa, mas também despertei para a
necessidade de preservação. Há outras circunstâncias: sou muito ligada
ao Oded Grajew [empresário] e aderi ao movimento Nossa São Paulo, que
hoje é uma rede. Eu participava do movimento Brasil Que Queremos, que
deu origem à candidatura da Marina. Também sou muito amiga do Guilherme
Leal [co-presidente da Natura], desde a adolescência. Quando conheci a
Marina, a gente se aproximou e teve uma identidade muito forte.
Valor: Apesar das diferenças?
Neca: Sim. O Fernando Meireles fez uma gravação com
nós duas, em que ela resumiu isso dizendo que estávamos juntas ali
porque éramos duas mulheres que optaram por ir contra o nosso destino.
Ela, uma mulher pobre, que nasceu num seringal. Eu, uma menina rica, que
nasceu na cidade de São Paulo.
Valor: Foi uma aventura ir contra o destino?
Neca: Até foi, mas não andei no trapézio sem rede
de proteção. Não é que eu tinha que brigar com minha família. Às vezes
acho que tive que brigar muito mais para provar meu lado social junto às
pessoas mais de esquerda para enfrentar o preconceito, coisa que ainda
acontece até hoje.
Valor: Você ainda sofre com isso?
Neca: Hoje não. Mas já sofri muito. A primeira
referência era sempre "rica, Setúbal" e aí vinham um monte de rótulos.
Mas nunca me senti totalmente desprotegida. Acho que isso acabou por me
tornar mais dura, porque eu tinha que ser muito radical e muito coerente
para mostrar quem eu era e superar o preconceito. Só o tempo, a vida e a
experiência, me permitiram relaxar aos poucos e lidar com tudo de uma
forma mais relaxada.
Valor: Além da ecologia, a fazenda também foi a conexão com a gastronomia e a cultura local?
Neca: Sim, me ligou à história. Como esse mundo
rural para mim era totalmente novo, sem uma intencionalidade de partida,
comecei a estudar. Fiquei supermobilizada para entender essas raízes
brasileiras do Estado de São Paulo.
Valor: Na fazenda já não tinha um pequeno museu?
Neca: Fizemos um logo no início, mas sem foco na
culinária. Tinha um eixo na história do Estado e foi feito pelo pessoal
de museologia da USP. Não era contemporâneo como o que abrimos agora.
Valor: E como a gastronomia entrou no projeto?
Neca: O foco era a história das fazendas do Estado
de São Paulo, porque a Capoava passou por todos os ciclos econômicos:
teve engenho de açúcar, foi caminho dos tropeiros, teve café, depois
gado. E agora é turismo. Uma parte grande do museu é a vida cotidiana
das fazendas e a gente elegeu a culinária como foco principal.
Valor: E a gastronomia também resume a sociedade: o que se comia, quem cozinhava.
Neca: Pois é. O bacana é que tem a comida dos
escravos, a dos imigrantes, o papel da mulher. Tem receitas que eram da
família da minha sogra. E a comida traz as pessoas muito mais perto, tem
um apelo incrível. Nesse pouco tempo em que abrimos, é impressionante
ver as pessoas perguntando se podem fotografar as receitas. Até os
estrangeiros. A comida traz a história muito mais perto.
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