segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Comida e cotidiano na vida de Neca Setúbal

 Luis Ushirobira/Valor / Luis Ushirobira/Valor

 Neca Setúbal: "Á comida traz as pessoas muito mais perto, tem um apelo incrível. Nesse pouco tempo em que abrimos [o museu sobre cultura gastronômica], é impressionante ver as pessoas perguntando se podem fotografar as receitas"

Apesar de ter nascido numa família de banqueiros, Maria Alice Setúbal, a Neca, nunca manifestou interesse pelo mundo das finanças. Pelo fato de ser a única mulher entre os sete filhos de Olavo Setúbal (1923-2008), teve a primazia de deixar para os irmãos as preocupações com o desempenho do principal negócio da família, o grupo Itaú. Ela já era socióloga formada pela USP e atuava na área de educação, quando um segundo casamento, há 12 anos, com Paulo de Almeida Prado, a levou a ser uma espécie de hoteleira rural. Juntos, compraram a Fazenda Capoava, em Itu, a 101 km da capital paulista, onde no início deste mês foi inaugurado um pequeno museu da história da culinária caipira.

O Espaço Memória ocupa uma casa de taipa na área central da fazenda, cujo casarão original data do século XVIII. Para montá-lo foi realizada uma pesquisa sobre a cultura gastronômica do Estado, que contempla tanto a trajetória dos bandeirantes e tropeiros como a cultura alimentar dos engenhos e fazendas de café. Uma apresentação dinâmica, que vai de painéis a animação 3D, reúne receitas tradicionais da região, técnicas culinárias e utensílios do passado. A área museológica foi concebida por Ricardo Ribenboim, ex-diretor do Itaú Cultural.

Para Neca, o museu foi uma continuidade do projeto Terra Paulista, que coordenou há cinco anos e resultou em três livros e numa série de documentários. No meio tempo, ela descobriu o ambientalismo e acabou ligada à ex-candidata à Presidência Marina Silva. Com essa plêiade de atividades, mas sem ser executiva de nada, Neca se divide entre o campo e a cidade, onde preside a Fundação Tide Setúbal, criada em homenagem à mãe para promover cultura e cidadania.

Valor: Você nunca se seduziu pela atividade financeira da família?
Neca Setúbal: Nunca. Sempre segui um caminho alternativo.

Valor: E a família aceitou bem?
Neca: Acho que não havia nenhuma expectativa de que eu fosse para a área financeira. Tenho seis irmãos homens. Apesar de eu ser a segunda, havia muito homem para cuidar dessa parte.

Valor: O fato de ser mulher, então, permitiu maior liberdade?
Neca: Engraçado, esses dias eu estava fazendo um encontro familiar - a gente sempre promove esses encontros e cada vez é um que conta histórias - e falei muito sinceramente o que penso. Acho que eu tive o grande privilégio de poder escolher minha vida profissional, de ir experimentando, fazendo as coisas mais diferentes, aprendendo, começando e terminando coisas, abrindo portas. Assim, conheci o mundo desde a periferia - que tem pessoas que acho superlegais, que gosto, que já foram à minha casa e pelas quais tenho o maior respeito - até o mundo de pessoas da classe AA. Passando por esses dois extremos, também convivi com diferentes grupos na área educacional, social, ambiental, cultural, com o pessoal ligado à história. Acho essa a minha maior riqueza. Foi um privilégio que meus irmãos não tiveram.

Valor: Ultrapassar os limites sociais foi uma decisão, uma coisa que você achou que devia fazer?
 
Receita de bolo que faz parte do acervo do museu
 
Neca: Não sei dizer exatamente como isso começou, mas veio um pouco com minha história. Estudei no Colégio Nossa Senhora do Morumbi, fiz o ginásio lá, que na época era uma escola experimental - não é mais. Eram freiras supermodernas, com um trabalho social forte, ligado à Teologia da Libertação, que era muito significativa no fim dos anos 60. Acho que foi aí que comecei a perceber de maneira sensível essas questões sociais. Depois fui fazer ciências sociais na USP. A vivência na USP foi um prolongamento dessa percepção. Eu tinha várias colegas que os pais proibiram de prestar vestibular na USP. Muito menos pra ciências sociais!

Valor: Ué, mas a USP já era a melhor universidade do Brasil.
Neca: Mas era considerada um antro de comunistas. Eu entrei em 1970, um ano depois do AI-5, e meu pai sempre deu a maior força. Lembro que meu irmão mais velho queria que meu pai me proibisse de estudar ciências sociais. Mas meu pai dava força. Ele se dizia um liberal do século XX e acho que ele era exatamente isso. Ele gostava de política, gostava de debater e também de ouvir outras posições.

Valor: E você tinha pendores de esquerda?
Neca: Bastante. Tanto que quando ele foi prefeito de São Paulo (1975-79), pela Arena, eu era do MDB. Os jornais exploravam essa diferença. Mas ele nunca se preocupou com isso. Lembro que fui à missa do [Vladimir] Herzog na época em que ele era prefeito. Enfim, coisas dos anos 70. Mas sempre tive participação em movimentos sociais, fui ligada à esquerda, estudei o "Capital".

Valor: E o caminho de identificação com os "verdes" se deu via movimentos sociais ou via ideologia?
Neca: Nenhum dos dois. Acho que a origem disso foi quando me casei com o Paulo, na Fazenda Capoava. Sou superurbana por conta da minha história familiar. Nunca tive essa coisa de passar férias na fazenda. A gente passava férias numa cidade do interior, Águas da Prata, onde temos casa até hoje, mas não era uma fazenda. Eu tinha um amigo que brincava comigo e dizia: "A Neca é tão urbana, que para ela o Parque do Ibirapuera já é zona rural!" Minha vida mudou quando conheci o Paulo e a gente comprou a fazenda e criou o hotel. Aí está o embrião da minha relação com a questão ambiental.

Valor: Como aconteceu?
Neca: Eu tinha sensibilidade para a questão ambiental, pelo fato de trabalhar com educação, mas era distante. Quando me casei com o Paulo comecei a ter uma vivência de natureza, a entender seus ciclos de forma contemplativa, mas também despertei para a necessidade de preservação. Há outras circunstâncias: sou muito ligada ao Oded Grajew [empresário] e aderi ao movimento Nossa São Paulo, que hoje é uma rede. Eu participava do movimento Brasil Que Queremos, que deu origem à candidatura da Marina. Também sou muito amiga do Guilherme Leal [co-presidente da Natura], desde a adolescência. Quando conheci a Marina, a gente se aproximou e teve uma identidade muito forte.

 
Casa em que foi instalado o museu, na Fazenda Capoava, a 100 km da capital paulista:
 retrato da vida rural no Estado de São Paulo
 
Valor: Apesar das diferenças?
Neca: Sim. O Fernando Meireles fez uma gravação com nós duas, em que ela resumiu isso dizendo que estávamos juntas ali porque éramos duas mulheres que optaram por ir contra o nosso destino. Ela, uma mulher pobre, que nasceu num seringal. Eu, uma menina rica, que nasceu na cidade de São Paulo.

Valor: Foi uma aventura ir contra o destino?
Neca: Até foi, mas não andei no trapézio sem rede de proteção. Não é que eu tinha que brigar com minha família. Às vezes acho que tive que brigar muito mais para provar meu lado social junto às pessoas mais de esquerda para enfrentar o preconceito, coisa que ainda acontece até hoje.

Valor: Você ainda sofre com isso?
Neca: Hoje não. Mas já sofri muito. A primeira referência era sempre "rica, Setúbal" e aí vinham um monte de rótulos. Mas nunca me senti totalmente desprotegida. Acho que isso acabou por me tornar mais dura, porque eu tinha que ser muito radical e muito coerente para mostrar quem eu era e superar o preconceito. Só o tempo, a vida e a experiência, me permitiram relaxar aos poucos e lidar com tudo de uma forma mais relaxada.

Valor: Além da ecologia, a fazenda também foi a conexão com a gastronomia e a cultura local?
Neca: Sim, me ligou à história. Como esse mundo rural para mim era totalmente novo, sem uma intencionalidade de partida, comecei a estudar. Fiquei supermobilizada para entender essas raízes brasileiras do Estado de São Paulo.

Valor: Na fazenda já não tinha um pequeno museu?
Neca: Fizemos um logo no início, mas sem foco na culinária. Tinha um eixo na história do Estado e foi feito pelo pessoal de museologia da USP. Não era contemporâneo como o que abrimos agora.

Valor: E como a gastronomia entrou no projeto?
Neca: O foco era a história das fazendas do Estado de São Paulo, porque a Capoava passou por todos os ciclos econômicos: teve engenho de açúcar, foi caminho dos tropeiros, teve café, depois gado. E agora é turismo. Uma parte grande do museu é a vida cotidiana das fazendas e a gente elegeu a culinária como foco principal.

Valor: E a gastronomia também resume a sociedade: o que se comia, quem cozinhava.
Neca: Pois é. O bacana é que tem a comida dos escravos, a dos imigrantes, o papel da mulher. Tem receitas que eram da família da minha sogra. E a comida traz as pessoas muito mais perto, tem um apelo incrível. Nesse pouco tempo em que abrimos, é impressionante ver as pessoas perguntando se podem fotografar as receitas. Até os estrangeiros. A comida traz a história muito mais perto.
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Reportagem por  Maria da Paz Trefaut | De Itu
Fonte: 
http://www.valor.com.br/cultura/2840516/comida-e-cotidiano-na-vida-de-neca-setubal#ixzz27Q2hSmrd

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