DEBORA DINIZ*
O 'leilão' de Catarina reflete a ordem moral em que o sexo das mulheres é propriedade masculina
Um leilão de virgens em território global. Foi nesse
cenário que Catarina Migliorini, catarinense de 20 anos, se lançou: o
espetáculo de ser uma virgem leiloada para um documentário dirigido por
um australiano. Já foram feitos 13 lances, o mais alto de US$ 160 mil,
oferecido por Jack Miller, americano ainda desconhecido. Catarina será
desvirginada em um voo da Austrália para os EUA, estratégia para burlar
leis locais que restringem a prostituição ou o comércio do sexo. O site
"procuram-se virgens" lista as regras da penetração: brinquedos eróticos
e beijos são proibidos; não pode haver filmagem ou audiência; o tempo
mínimo de consumo da virgem será de uma hora. O leilão atiça a
curiosidade sobre o filme, cujo enredo está a meio caminho de um
documentário, reality show e pornografia.
Alexander é o virgem em leilão. Catarina comprovará sua virgindade
por exames ginecológicos, mercadoria mais difícil de ser demonstrada no
corpo de Alexander. Por isso a aposta nas imagens e na história de vida
do rapaz: um tipo tímido que não olha para a câmera, quem sabe um
solitário à procura da proteção de uma mulher madura. Sua virgindade vem
sendo pouco cobiçada - o lance mais alto foi de US$ 1.200, oferecido
por uma australiana. O diretor tentou não ser óbvio no espetáculo do
sexo ao incluir um virgem no enredo, mas a audiência resiste à igualdade
na exploração sexual de homens e mulheres: Catarina é a mercadoria em
disputa e certamente será a protagonista do filme. Alexander, um
coadjuvante. Sua utilidade é aliviar a barra com as feministas críticas
do comércio do sexo, caso da jurista americana Catharine MacKinnon, para
quem a prostituição e a pornografia são danosas às mulheres.
Não sou uma seguidora de MacKinnon na perseguição à pornografia ou à
prostituição - desconfio de sua tese de que homens que veem filmes
pornográficos violentos buscam reproduzir suas fantasias no corpo de
outras mulheres, ou mesmo que proibir o comércio do sexo protege as
mulheres da exploração sexual. Mas há algo de inquietante na disputa por
Catarina que ressoa da ordem moral em que o sexo das mulheres é uma
propriedade masculina. Afinal, o que querem os homens ao leiloar uma
virgem? Reanimar o tabu do sexo. Há mulheres em abundância dispostas,
por prazer, dinheiro, ou ambos, a manter relações sexuais com homens.
Muitas são virgens. O filme nos transforma em audiência de um jogo que
não desafia a moral hegemônica; ao contrário, brinca com suas normas.
Uma prostituta é uma mulher disponível no mercado. Uma virgem é uma
mulher à espera de um homem. A prostituta é a mulher da rua; a virgem, a
da casa. O filme mistura os papéis, joga com as fantasias sexuais: a
virgem é, agora, uma prostituta, a mulher que será penetrada em um
espetáculo global, mas que não será visto. A câmera acompanhará o casal
até a entrada do avião e a cena de sexo será apenas imaginada, como a
que ocorre com as virgens na noite de núpcias. Seremos voyeurs de uma
mulher que vende seu sexo como em um filme pornográfico, mas o tom
documental da história a manterá na redoma protegida das virgens.
O tabu do sexo perturba não apenas nossa moral, mas o estatuto
narrativo dos filmes. Por isso há algo de político nesse documentário.
MacKinnon persegue os filmes pornográficos porque considera que as cenas
de sexo são reais: uma mulher violada em um filme pornográfico é, de
fato, uma mulher violada. Catarina será desvirginada - haverá um antes e
um depois em seu corpo, segundo as perícias médicas. Mas ela reclama
para si o estatuto profissional de atriz e não de prostituta: é uma
atriz que venderá sua imagem e seu hímen para um documentário sobre como
o tabu do sexo movimenta mercados e audiências.
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* É ANTROPÓLOGA, PROFESSORA
DA UNB, PESQUISADORA DA ANIS - INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E
GÊNERO - O Estado de S.Paulo
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