domingo, 23 de setembro de 2012

O SILÊNCIO

José Tolentino Mendonça*

Durante anos o compositor John Cage sondou a possibilidade de uma obra sem sons, mas impedia-o duas coisas: a dúvida se essa tarefa assim não estaria, desde logo, votada ao fracasso, porque tudo é som; e a convicção de que uma composição tal seria incompreensível no espaço mental da cultura do Ocidente. 

Foi contudo sendo encorajado pelas experiências que se realizavam nas artes visuais, em particular a série de pinturas de Rauschenberg, de quem era amigo, algumas todas em preto, outras em branco. Assim, em Agosto de 1952, estreia a sua peça 4’33’’; num concerto onde também se interpretaram obras de Christian Wolff, Morton Feldman, Pierre Boulez. 

A proposta de John Cage era completamente insólita: o músico deviam subir ao palco, saudar o público, sentar-se ao instrumento e permanecer, em silêncio, por quatro minutos e trinta e três segundos, até que, de novo, se levantasse, agradecesse à plateia e saísse. Na assistência instalou-se a polémica e choveram as vaias. Mas ao longo de toda a sua vida, John Cage referiu-se a essa peça com sentida reverência: «a minha peça mais importante é essa silenciosa; não passa um só dia que não me sirva dela para tudo o que faço».
 «A palavra é o órgão do mundo presente. 
 O silêncio é o mistério do mundo 
que está a chegar».
 - Isaac de Nínive, lá pelos finais do século VII -

Susan Sontag num ensaio que intitulou “A estética do silêncio” pega, entre outros, neste exemplo de Cage para pensar no significado desta espécie de “fuga para o silêncio” que a arte e o pensamento contemporâneos têm sublinhado. Dá que pensar a frase com que abre o seu ensaio. Diz ela: «Cada época deve reinventar para si mesma o projecto de uma espiritualidade». 

Quando medito no contributo que a cultura possa dar, num futuro próximo, à existência humana, pressinto que mais até do que a palavra será a partilha desse património imenso que é o silêncio. Mesmo que construamos a palavra como uma torre, temos de aceitar que ela não só não toca cabalmente o mistério dos céus, como muitas vezes nos incapacita para a comunicação e a compreensão terrenas. Precisamos do auxílio de outra ciência, a do silêncio. Já  Isaac de Nínive, lá pelos finais do século VII, explicava: «A palavra é o órgão do mundo presente. O silêncio é o mistério do mundo que está a chegar».
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* Teólogo. Escritor.
© SNPC | 15.07.10 
Fonte:  http://www.snpcultura.org/paisagens_silencio.html- 22/09/2012

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