ENTREVISTA: LUIS FERNANDO VERISSIMO, ESCRITOR
O filho de Erico revela detalhes da rotina do autor de “O Tempo e o Vento” enquanto produzia sua obra máxima, de 1947 a 1962
Zero Hora – Que memórias o senhor tem desse período em que seu pai estava escrevendo O Arquipélago?
Luis Fernando Verissimo – Na verdade eu acompanhei a escritura de O Tempo e o Vento, desde o primeiro volume, O Continente. Não tenho certeza das datas, mas o pai começou a escrever o livro em 1947, e publicou em 1949. Esta parte da casa em que estamos ainda não existia, e ele trabalhava na mesa de jantar. Botava a máquina de escrever em cima da mesa e metralhava, como ele dizia.
ZH – Ele tinha alguma rotina de composição do livro?
Verissimo – Ele trabalhava o dia inteiro na Editora Globo. Escrevia à noite e nos fins de semana.
ZH – Comentava detalhes da obra?
Verissimo – Ele conversava muito com a minha mãe e com alguns amigos, como o Maurício Rosenblatt, por exemplo, que era o melhor amigo dele. Eles conversavam bastante sobre literatura e sobre o trabalho dele. Acho que com a minha mãe ele conversava bastante. Comigo, não. Naquela época eu tinha 11 para 12 anos.
ZH – Quando ele começou o primeiro volume, até que ponto o senhor sabia de que se tratava a obra?
Verissimo – Eu não tinha ideia, mas acompanhava. Muitas vezes eu sentava do lado dele à mesa e já lia quando a página saía da máquina de escrever. Ele escrevia muito rapidamente, deixando bastante espaço entre as linhas. Depois ele mesmo corrigia, acrescentava coisas. Ele mesmo passava a limpo. E eu acompanhava esse processo. E depois, O Arquipélago foi a parte mais difícil de escrever porque envolveu muita coisa da história dele, da biografia dele, da relação dele com o pai...
ZH – A dificuldade estava ligada ao fato de o livro tratar de coisas e pessoas que ele tinha vivido e conhecido?
Verissimo – Sim. Foi uma coisa tão difícil de escrever que ele teve um infarto durante o processo. Tem aquela cena da reconciliação do Floriano com o pai, que de certa forma é uma reconciliação do meu pai com o pai dele. Por isso, O Arquipélago demorou para ser escrito. O Continente saiu em 1949, o segundo volume, O Retrato, não me lembro bem, acho que saiu em 1952. E O Arquipélago ele demorou muito tempo para escrever, só saiu muito tempo depois do primeiro volume. Nesse meio tempo teve viagens, ele foi morar nos Estados Unidos.
ZH – Em uma entrevista para a Revista do Globo em 1963, após a publicação de O Arquipélago, Erico comenta que a aceitação da viagem talvez fosse uma tentativa de fuga da empreitada de escrever o terceiro tomo.
Verissimo – Sim, porque ele não conseguia escrever fora daqui. Ele morou quatro anos nos Estados Unidos e não escreveu nada por lá nesse período.
ZH – Por algum bloqueio interno?
Verissimo – Não sei. Eu acho que ele não conseguia escrever fora do ambiente dele, da “toca” dele, como ele chamava. Então isso também atrasou a feitura d’O Arquipélago.
ZH – Essa constatação de que foi difícil escrever O Arquipélago veio de uma observação sua, que já era adulto na época, ou ele externava isso?
Verissimo – Não, a dificuldade ele não externava. Depois de haver terminado o livro, depois do romance lançado, foi que ele comentou o quanto havia sido difícil. Ele levou não sei quantos anos escrevendo O Arquipélago. Quer dizer, escrevendo não, porque ele parava muito, havia períodos grandes em que não escrevia nada.
ZH – Noite, por exemplo, é uma obra que ele escreveu e concluiu enquanto ainda lutava com as dificuldades de O Arquipélago.
Verissimo – É, Noite foi escrito em um verão, em Torres, em 1952. Em seguida, nós fomos para os Estados Unidos, passamos quatro anos lá, e foram outros quatro anos parados para o romance.
ZH – Erico dizia que O Arquipélago era um romance que ele queria escrever sem inibições ou seria melhor não fazê-lo. Ele temia não conseguir concluir o projeto?
Verissimo – Ele se angustiava bastante pelo fato de não conseguir escrever. A trilogia estava prometida, mas ainda incompleta, e ele era cobrado por isso. Os dois primeiros volumes já haviam saído, e o terceiro não aparecia.
ZH – A cobrança partia de quem?
Verissimo – De amigos. Na verdade, não era uma cobrança ostensiva, digamos assim, de amigos ou da própria editora ficar cobrando o livro dele. Porque ele tinha uma relação bastante informal, bastante amigável com a Editora Globo. Mas acho que ele mesmo se cobrava para terminar a trilogia, não podia deixá-la inacabada. Mas foi difícil, o infarto é uma prova disso.
ZH – O Arquipélago é, a seu ver, uma síntese dos dois primeiros livros? Erico comentou que os leitores esperavam de O Retrato algo parecido ao que haviam lido em O Continente.
Verissimo – Pois é, e O Retrato é completamente diferente, ele se atém a um período só, a um personagem só, o Rodrigo Terra Cambará, bisneto do Capitão Rodrigo. E muita gente se decepcionou, muitos ainda não gostam d’O Retrato por ele destoar tanto dos outros. Mas eu gosto muito do romance.
ZH – O Arquipélago também foi redigido na sala de jantar?
Verissimo – Não. Aí já tinha o escritório. Como eu falei, a casa era menor antes. Embaixo da parte nova da casa ele construiu a, como ele chamava, “Toca da Liberdade”. Ele trabalhava o dia inteiro lá embaixo. Depois, de noite, ele trazia aqui para cima o que havia escrito, botava uma tábua aqui nesta mesma poltrona e corrigia o que havia produzido. E fazia desenhos também nas tábuas. Ele deu várias dessas tábuas para amigos, enchia de desenhos, enchia de cores e presenteava. E O Arquipélago já foi escrito com esse método.
ZH – Além de Rosenblatt, quem eram os grandes interlocutores dele?
Verissimo – Tinha muita gente, muitos amigos. O doutor [Eduardo] Faraco, que foi um homem muito importante na vida dele. Quando ele teve um infarto foi o doutor Faraco que aguentou as pontas, tanto que ele teve mais 15 anos de sobrevida. O Flávio Loureiro Chaves era um amigo dessa época, também. O [Carlos] Reverbel, certamente, além da Olga [Reverbel, mulher de Carlos]. O doutor [Luiz Carlos de Almeida] Meneghini vinha muito aqui.
ZH – Ele usou a matriz do passado como modelo para alguns personagens. O senhor lembra quais foram essas inspirações?
Verissimo – Eu não vou me lembrar exatamente, mas o pai, em casa, gostava muito de representar alguns parentes, o pai da mãe dele, o avô dele, era um homem que ele gostava muito de imitar, de contar histórias... Tinha o pai dele, Sebastião, e o irmão do pai dele, Nestor Verissimo, esse se metia em qualquer revolução que aparecia. Diziam que a mulher desse tio era tão feia que ele aproveitava a revolução para sair de casa. Esse tio foi um pouco o modelo para o Capitão Rodrigo. Se bem que é mais o modelo do Toríbio, o irmão do Rodrigo, ambos filhos do Licurgo. Eu acho que esses irmãos Rodrigo e Toríbio representam muita coisa da família dele. Muitas coisas do Rodrigo seriam representações do pai dele, o Sebastião, e o Toríbio seria o tio dele, Nestor.
ZH – O argentino Jorge Luis Borges era um homem urbano fascinado pela mitologia arcaica do pampa. Erico também era assim?
Verissimo – Eu acho que ele tinha um certo fascínio pela família, pelas figuras da família. Certamente deve ter havido um Fandango na infância dele, não sei se na família mesmo. A mãe dele, dona Abegahy, é uma figura muito forte, por isso as mulheres de O Tempo e o Vento se sobressaem. É um pouco a relação do meu pai com a mãe dele, a quem ele admirava muito e foi uma figura forte na vida dele.
ZH – A guerra é um fenômeno onipresente na saga, mas o foco raramente é a experiência da batalha.
Verissimo – Geralmente o que ele descreve é a espera. Está acontecendo a batalha lá e alguém está à espera, como a Bibiana esperando o Capitão Rodrigo voltar para casa. São sempre mulheres fortes: Bibiana, Maria Valéria, a própria Ana Terra. E tem uma figura interessante em O Tempo e o Vento, que é a Luzia, mulher do Bolívar, que é meio maluca. Ela é uma personagem completamente deslocada naquele ambiente todo: uma mulher relativamente culta, difícil, mal compreendida pelo restante da família.
ZH – Erico nunca teve ligação com o tradicionalismo e com sua ideologia. Ele chegou a manifestar alguma opinião sobre como O Continente, principalmente, foi apropriado pelo tradicionalismo como saga fundadora do “gaúcho” na literatura?
Verissimo – Eu acho que ele não resistiu a essa apropriação, ao menos ostensivamente. Ele não tinha nada desse culto ao passado, aos costumes gaúchos e tal, não era de tomar chimarrão, deve ter andado a cavalo na infância, mas era algo que fazia parte do passado dele. E sempre foi muito ligado à cultura de fora, americana ou inglesa.
ZH – E a relação dele com Simões Lopes Neto?
Verissimo – Eu confesso que não sei se ele tinha alguma relação de leitor com a obra do Simões Lopes Neto. Ele deve ter lido a obra, mas não sei que relação mantinha com ela. Ele conviveu com escritores como Augusto Meyer, de quem ele gostava muito. Mas a cabeça dele não estava aqui, e sim no que se fazia fora daqui, nos Estados Unidos e na Europa.
ZH – Isso o aproximava um pouco de Monteiro Lobato.
Verissimo – Eu sei que eles se corresponderam, depois se encontraram. Não sei se se viram muitas vezes. O engraçado é que eles eram até meio fisicamente parecidos, com aquelas sobrancelhas.
ZH – Já Jorge Amado era um autor com quem ele manteve amizade.
Verissimo – Ele teve uma relação conturbada com o Jorge Amado. O Jorge Amado passou um tempo na nossa casa, acho que estava fugindo da polícia, foi para Porto Alegre, se hospedou conosco. A Clarissa, pequena, gostava de brincar nos cabelos do Jorge Amado, de fingir que era cabeleireira. O Jorge Amado me chamava de João, porque ele dizia que eu não tinha cara de Luis Fernando. Eu era bem pequeno. E eles sempre foram amigos, se gostavam muito, mas o Jorge tentava atrair o pai para o Partido Comunista. Ele achava que o pai deveria ser comunista, como, aliás, a maioria dos escritores era naquela época. O pai contava que uma vez, no Rio de Janeiro, ele estava com uma crise de pedra no rim, mergulhado numa banheira quente, e o Jorge Amado ficou o tempo todo do lado da banheira, tentando catequizar ele. O pai dizia: “Eu sou socialista, mas sou contra totalitarismos”. E naquela época grandes escritores, como o Jorge e mesmo o Graciliano Ramos, seguiam a linha do partido, e o pai não queria isso. Mas eles continuaram amigos até o fim da vida. E tem aquela famosa manifestação de ambos contra a censura. Como havia censura prévia aos jornais, houve uma ameaça de começarem a censurar livros também. E o pai e o Jorge Amado assinaram uma declaração em conjunto contra aquilo, dizendo que se houvesse censura prévia de livros, não publicariam mais no Brasil. E isso foi depois de 1964, já na ditadura militar. E não se falou mais no assunto da censura prévia aos livros, em parte por conta dessa manifestação de ambos.
ZH – Em que medida se pode reconhecer o Erico em Floriano?
Verissimo – Acho que obviamente é, é o narrador, é o autor. Claro que camuflado, não é exatamente uma autobiografia. Tanto que ele termina O Arquipélago com a primeira frase d’O Continente. O Floriano começa a escrever O Tempo e o Vento. Em que esse O Tempo e o Vento escrito pelo Floriano seria diferente d’O Tempo e o Vento escrito pelo Erico Verissimo é uma especulação que a gente pode fazer.
ZH – No livro, Floriano tem uma opinião dura sobre sua obra até aquele momento. Essa era, de algum modo, uma opinião que Erico estava veiculando sobre seus próprios livros?
Verissimo – Eu acho o seguinte: o Floriano é um intelectual, com ideias até certo ponto de esquerda, mas que nunca se comprometeu com nenhum tipo de revolta ou subversão. Ele via as coisas, desaprovava, mas não reagia. Acho que o pai seria um pouco isso, também, e que ele faz ali um pouco de autocrítica, de um homem que nunca escondeu suas ideias mas que nunca foi exatamente um ativista. Eu acho que Floriano reflete um pouco isso.
ZH – Como leitor, que passagem, que trecho, que personagens o senhor destacaria?
Verissimo – Bom, como todo mundo, eu prefiro O Continente. Acho que é o grande livro do pai, da obra inteira dele. E eu gosto muito desse personagem que eu citei, a Luzia, justamente por ser um personagem completamente deslocado.
POR CARLOS ANDRÉ MOREIRA E CLÁUDIA LAITANO
Luis Fernando Verissimo – Na verdade eu acompanhei a escritura de O Tempo e o Vento, desde o primeiro volume, O Continente. Não tenho certeza das datas, mas o pai começou a escrever o livro em 1947, e publicou em 1949. Esta parte da casa em que estamos ainda não existia, e ele trabalhava na mesa de jantar. Botava a máquina de escrever em cima da mesa e metralhava, como ele dizia.
ZH – Ele tinha alguma rotina de composição do livro?
Verissimo – Ele trabalhava o dia inteiro na Editora Globo. Escrevia à noite e nos fins de semana.
ZH – Comentava detalhes da obra?
Verissimo – Ele conversava muito com a minha mãe e com alguns amigos, como o Maurício Rosenblatt, por exemplo, que era o melhor amigo dele. Eles conversavam bastante sobre literatura e sobre o trabalho dele. Acho que com a minha mãe ele conversava bastante. Comigo, não. Naquela época eu tinha 11 para 12 anos.
ZH – Quando ele começou o primeiro volume, até que ponto o senhor sabia de que se tratava a obra?
Verissimo – Eu não tinha ideia, mas acompanhava. Muitas vezes eu sentava do lado dele à mesa e já lia quando a página saía da máquina de escrever. Ele escrevia muito rapidamente, deixando bastante espaço entre as linhas. Depois ele mesmo corrigia, acrescentava coisas. Ele mesmo passava a limpo. E eu acompanhava esse processo. E depois, O Arquipélago foi a parte mais difícil de escrever porque envolveu muita coisa da história dele, da biografia dele, da relação dele com o pai...
ZH – A dificuldade estava ligada ao fato de o livro tratar de coisas e pessoas que ele tinha vivido e conhecido?
Verissimo – Sim. Foi uma coisa tão difícil de escrever que ele teve um infarto durante o processo. Tem aquela cena da reconciliação do Floriano com o pai, que de certa forma é uma reconciliação do meu pai com o pai dele. Por isso, O Arquipélago demorou para ser escrito. O Continente saiu em 1949, o segundo volume, O Retrato, não me lembro bem, acho que saiu em 1952. E O Arquipélago ele demorou muito tempo para escrever, só saiu muito tempo depois do primeiro volume. Nesse meio tempo teve viagens, ele foi morar nos Estados Unidos.
ZH – Em uma entrevista para a Revista do Globo em 1963, após a publicação de O Arquipélago, Erico comenta que a aceitação da viagem talvez fosse uma tentativa de fuga da empreitada de escrever o terceiro tomo.
Verissimo – Sim, porque ele não conseguia escrever fora daqui. Ele morou quatro anos nos Estados Unidos e não escreveu nada por lá nesse período.
ZH – Por algum bloqueio interno?
Verissimo – Não sei. Eu acho que ele não conseguia escrever fora do ambiente dele, da “toca” dele, como ele chamava. Então isso também atrasou a feitura d’O Arquipélago.
ZH – Essa constatação de que foi difícil escrever O Arquipélago veio de uma observação sua, que já era adulto na época, ou ele externava isso?
Verissimo – Não, a dificuldade ele não externava. Depois de haver terminado o livro, depois do romance lançado, foi que ele comentou o quanto havia sido difícil. Ele levou não sei quantos anos escrevendo O Arquipélago. Quer dizer, escrevendo não, porque ele parava muito, havia períodos grandes em que não escrevia nada.
Erico
(com o filho Luis Fernando) exibe uma prova da capa do primeiro tomo de
sua obra mais famosa,
ainda com o título “O Vento e o Tempo”, que seria
modificado
ZH – Noite, por exemplo, é uma obra que ele escreveu e concluiu enquanto ainda lutava com as dificuldades de O Arquipélago.
Verissimo – É, Noite foi escrito em um verão, em Torres, em 1952. Em seguida, nós fomos para os Estados Unidos, passamos quatro anos lá, e foram outros quatro anos parados para o romance.
ZH – Erico dizia que O Arquipélago era um romance que ele queria escrever sem inibições ou seria melhor não fazê-lo. Ele temia não conseguir concluir o projeto?
Verissimo – Ele se angustiava bastante pelo fato de não conseguir escrever. A trilogia estava prometida, mas ainda incompleta, e ele era cobrado por isso. Os dois primeiros volumes já haviam saído, e o terceiro não aparecia.
ZH – A cobrança partia de quem?
Verissimo – De amigos. Na verdade, não era uma cobrança ostensiva, digamos assim, de amigos ou da própria editora ficar cobrando o livro dele. Porque ele tinha uma relação bastante informal, bastante amigável com a Editora Globo. Mas acho que ele mesmo se cobrava para terminar a trilogia, não podia deixá-la inacabada. Mas foi difícil, o infarto é uma prova disso.
ZH – O Arquipélago é, a seu ver, uma síntese dos dois primeiros livros? Erico comentou que os leitores esperavam de O Retrato algo parecido ao que haviam lido em O Continente.
Verissimo – Pois é, e O Retrato é completamente diferente, ele se atém a um período só, a um personagem só, o Rodrigo Terra Cambará, bisneto do Capitão Rodrigo. E muita gente se decepcionou, muitos ainda não gostam d’O Retrato por ele destoar tanto dos outros. Mas eu gosto muito do romance.
ZH – O Arquipélago também foi redigido na sala de jantar?
Verissimo – Não. Aí já tinha o escritório. Como eu falei, a casa era menor antes. Embaixo da parte nova da casa ele construiu a, como ele chamava, “Toca da Liberdade”. Ele trabalhava o dia inteiro lá embaixo. Depois, de noite, ele trazia aqui para cima o que havia escrito, botava uma tábua aqui nesta mesma poltrona e corrigia o que havia produzido. E fazia desenhos também nas tábuas. Ele deu várias dessas tábuas para amigos, enchia de desenhos, enchia de cores e presenteava. E O Arquipélago já foi escrito com esse método.
ZH – Além de Rosenblatt, quem eram os grandes interlocutores dele?
Verissimo – Tinha muita gente, muitos amigos. O doutor [Eduardo] Faraco, que foi um homem muito importante na vida dele. Quando ele teve um infarto foi o doutor Faraco que aguentou as pontas, tanto que ele teve mais 15 anos de sobrevida. O Flávio Loureiro Chaves era um amigo dessa época, também. O [Carlos] Reverbel, certamente, além da Olga [Reverbel, mulher de Carlos]. O doutor [Luiz Carlos de Almeida] Meneghini vinha muito aqui.
ZH – Ele usou a matriz do passado como modelo para alguns personagens. O senhor lembra quais foram essas inspirações?
Verissimo – Eu não vou me lembrar exatamente, mas o pai, em casa, gostava muito de representar alguns parentes, o pai da mãe dele, o avô dele, era um homem que ele gostava muito de imitar, de contar histórias... Tinha o pai dele, Sebastião, e o irmão do pai dele, Nestor Verissimo, esse se metia em qualquer revolução que aparecia. Diziam que a mulher desse tio era tão feia que ele aproveitava a revolução para sair de casa. Esse tio foi um pouco o modelo para o Capitão Rodrigo. Se bem que é mais o modelo do Toríbio, o irmão do Rodrigo, ambos filhos do Licurgo. Eu acho que esses irmãos Rodrigo e Toríbio representam muita coisa da família dele. Muitas coisas do Rodrigo seriam representações do pai dele, o Sebastião, e o Toríbio seria o tio dele, Nestor.
ZH – O argentino Jorge Luis Borges era um homem urbano fascinado pela mitologia arcaica do pampa. Erico também era assim?
Verissimo – Eu acho que ele tinha um certo fascínio pela família, pelas figuras da família. Certamente deve ter havido um Fandango na infância dele, não sei se na família mesmo. A mãe dele, dona Abegahy, é uma figura muito forte, por isso as mulheres de O Tempo e o Vento se sobressaem. É um pouco a relação do meu pai com a mãe dele, a quem ele admirava muito e foi uma figura forte na vida dele.
ZH – A guerra é um fenômeno onipresente na saga, mas o foco raramente é a experiência da batalha.
Verissimo – Geralmente o que ele descreve é a espera. Está acontecendo a batalha lá e alguém está à espera, como a Bibiana esperando o Capitão Rodrigo voltar para casa. São sempre mulheres fortes: Bibiana, Maria Valéria, a própria Ana Terra. E tem uma figura interessante em O Tempo e o Vento, que é a Luzia, mulher do Bolívar, que é meio maluca. Ela é uma personagem completamente deslocada naquele ambiente todo: uma mulher relativamente culta, difícil, mal compreendida pelo restante da família.
ZH – Erico nunca teve ligação com o tradicionalismo e com sua ideologia. Ele chegou a manifestar alguma opinião sobre como O Continente, principalmente, foi apropriado pelo tradicionalismo como saga fundadora do “gaúcho” na literatura?
Verissimo – Eu acho que ele não resistiu a essa apropriação, ao menos ostensivamente. Ele não tinha nada desse culto ao passado, aos costumes gaúchos e tal, não era de tomar chimarrão, deve ter andado a cavalo na infância, mas era algo que fazia parte do passado dele. E sempre foi muito ligado à cultura de fora, americana ou inglesa.
ZH – E a relação dele com Simões Lopes Neto?
Verissimo – Eu confesso que não sei se ele tinha alguma relação de leitor com a obra do Simões Lopes Neto. Ele deve ter lido a obra, mas não sei que relação mantinha com ela. Ele conviveu com escritores como Augusto Meyer, de quem ele gostava muito. Mas a cabeça dele não estava aqui, e sim no que se fazia fora daqui, nos Estados Unidos e na Europa.
ZH – Isso o aproximava um pouco de Monteiro Lobato.
Verissimo – Eu sei que eles se corresponderam, depois se encontraram. Não sei se se viram muitas vezes. O engraçado é que eles eram até meio fisicamente parecidos, com aquelas sobrancelhas.
ZH – Já Jorge Amado era um autor com quem ele manteve amizade.
Verissimo – Ele teve uma relação conturbada com o Jorge Amado. O Jorge Amado passou um tempo na nossa casa, acho que estava fugindo da polícia, foi para Porto Alegre, se hospedou conosco. A Clarissa, pequena, gostava de brincar nos cabelos do Jorge Amado, de fingir que era cabeleireira. O Jorge Amado me chamava de João, porque ele dizia que eu não tinha cara de Luis Fernando. Eu era bem pequeno. E eles sempre foram amigos, se gostavam muito, mas o Jorge tentava atrair o pai para o Partido Comunista. Ele achava que o pai deveria ser comunista, como, aliás, a maioria dos escritores era naquela época. O pai contava que uma vez, no Rio de Janeiro, ele estava com uma crise de pedra no rim, mergulhado numa banheira quente, e o Jorge Amado ficou o tempo todo do lado da banheira, tentando catequizar ele. O pai dizia: “Eu sou socialista, mas sou contra totalitarismos”. E naquela época grandes escritores, como o Jorge e mesmo o Graciliano Ramos, seguiam a linha do partido, e o pai não queria isso. Mas eles continuaram amigos até o fim da vida. E tem aquela famosa manifestação de ambos contra a censura. Como havia censura prévia aos jornais, houve uma ameaça de começarem a censurar livros também. E o pai e o Jorge Amado assinaram uma declaração em conjunto contra aquilo, dizendo que se houvesse censura prévia de livros, não publicariam mais no Brasil. E isso foi depois de 1964, já na ditadura militar. E não se falou mais no assunto da censura prévia aos livros, em parte por conta dessa manifestação de ambos.
ZH – Em que medida se pode reconhecer o Erico em Floriano?
Verissimo – Acho que obviamente é, é o narrador, é o autor. Claro que camuflado, não é exatamente uma autobiografia. Tanto que ele termina O Arquipélago com a primeira frase d’O Continente. O Floriano começa a escrever O Tempo e o Vento. Em que esse O Tempo e o Vento escrito pelo Floriano seria diferente d’O Tempo e o Vento escrito pelo Erico Verissimo é uma especulação que a gente pode fazer.
ZH – No livro, Floriano tem uma opinião dura sobre sua obra até aquele momento. Essa era, de algum modo, uma opinião que Erico estava veiculando sobre seus próprios livros?
Verissimo – Eu acho o seguinte: o Floriano é um intelectual, com ideias até certo ponto de esquerda, mas que nunca se comprometeu com nenhum tipo de revolta ou subversão. Ele via as coisas, desaprovava, mas não reagia. Acho que o pai seria um pouco isso, também, e que ele faz ali um pouco de autocrítica, de um homem que nunca escondeu suas ideias mas que nunca foi exatamente um ativista. Eu acho que Floriano reflete um pouco isso.
ZH – Como leitor, que passagem, que trecho, que personagens o senhor destacaria?
Verissimo – Bom, como todo mundo, eu prefiro O Continente. Acho que é o grande livro do pai, da obra inteira dele. E eu gosto muito desse personagem que eu citei, a Luzia, justamente por ser um personagem completamente deslocado.
POR CARLOS ANDRÉ MOREIRA E CLÁUDIA LAITANO
Fonte: ZH on line, 22/09/2012
Vida e obra |
1905 |
Erico Verissimo nasce em 17 de dezembro, em Cruz Alta, filho de Sebastião Verissimo e Abegahy Lopes Verissimo. |
1920 |
É matriculado no extinto Colégio Cruzeiro do Sul (hoje IPA) em regime de internato. Dois anos depois, terminados os estudos, os pais de Erico se separam, acontecimento que marcará profundamente a vida do escritor. |
1927 |
Conhece a futura mulher, Mafalda Halfen Volpe, com quem noivará em 1929 e se casará em 1931. O casal terá dois filhos: Clarissa (1935) e Luis Fernando (1936). |
1931 |
Já casado com Mafalda, transfere-se para Porto Alegre, onde trabalha como secretário de redação da Revista do Globo. |
1933 |
Publica o primeiro romance, Clarissa, com notável sucesso de público, que terá duas continuações: Música ao Longe e Um Lugar ao Sol (ambos de 1936). Antes desses últimos, em 1935, publica Caminhos Cruzados. |
1949 |
Publica o primeiro volume de O Tempo e o Vento, intitulado O Continente. |
1962 |
Conclui a publicação de O Tempo e o Vento com o último tomo de O Arquipélago, última parte da trilogia. |
1971 |
Publica Incidente em Antares, seu último romance. |
1975 |
Morre de infarto em 28 de novembro de 1975. |
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