Paulo Ghiraldelli*
Você
sente uma pessoa livre ou uma pessoa proibida? Consegue ser sincero com
você mesmo? Uma boa parte de nós se vangloria de fazer o que quer.
Mentem para si mesmos. A proibição irracional ainda é a tônica na nossa
sociedade. Nós obedecemos a regras que não questionamos e que, não raro,
não nos trazem nenhum bem estar e não uteis para nossa vida. Há pouco
tempo atrás as mulheres tinham de se casar virgem! Ainda hoje isso
ocorre por pressão religiosa em alguns lugares, mesmo no Ocidente, no
Brasil! Ainda hoje, em várias comunidades religiosas, as pessoas se
casam com pessoas que não gostam, exatamente porque o pastor da Igreja
assim decidiu. Exatamente nos dias atuais, a sexualidade dos gays, por
exemplo, se torna motivo de ódio de religiosos! Há os que deixam de
conversar com entes queridos porque estes não cumpriram alguma ordem sem
sentido vinda do pastor ou do padre. Ou seja, mais vale a regra louca
que o amor. Mil e uma proibições pouco razoáveis são postas sobre nossa
cabeça, e nós as engolimos e obedecemos. Mas teimamos em dizer que somos
livres.
“É proibido proibir” – essas inscrições
foram postas nos muros de várias cidades de todo o mundo em 1968. As
manifestações de juventude daquela época se deram contra as práticas de
vida dos anos cinquenta, contra todo um mundo “arrumadinho” e “feliz”,
que funcionava como fachada – principalmente nas telas do cinema – de
uma sociedade em que nem todos estavam bem. De lá para cá várias
proibições ético-morais que se revelaram pouco interessantes e até um
tanto tolas caíram, mas muitas delas nunca deixaram de estar em
vigência, principalmente para os menos informados e, enfim, para as
pessoas que atualmente ainda seguem religiões fervorosamente.
Por que a religião faz proibições? –
essa pergunta parece boba, mas não são poucas as pessoas que seguem
vetos em relação aos quais elas nunca refletiram. “É pecado”, dizem
umas. “Vai contra Deus”, dizem outras. Há pessoas escolarizadas que
refletem bem sobre diversos assuntos, mas não conseguem pensar direito
sobre o poder que a religião ganhou em suas vidas, fazendo-as obedecer a
certas ordens pouco racionais. Como que uma pessoa pode se entregar
assim a uma religião? Como que um adulto pode agir como uma criança
amedrontada diante de escuro?
As religiões são códigos ético-morais populares. A palavra grega ethos significa os costumes que pertencem à esfera pública, a palavra latina mores
são os seus costumes e hábitos que tem a ver com a esfera da vida
privada. Daí termos, então, as palavras “ética” e “moral”. Por exemplo:
falamos em ética quando comentamos a corrupção na política e em moral
quanto a comportamentos sexuais. As religiões são as primeiras guardiãs
de regras ético-morais para que uma sociedade seja uma sociedade.
Algumas pessoas não percebem isso, de tão preocupadas que ficam com a
ligação entre nós e os deuses que as religiões dizem que podem
estabelecer. Mas, claro, religião nada é se não for um conjunto de
regras dizendo sobre o que é errado e proibido e o que é certo e
permitido. É para isso que servem.
Poderíamos criar leis sem ligá-las a
qualquer divindade e, de fato, modernamente fizemos isso. No entanto,
quando um povo se forma como nação, em sua origem a tendência é antes
usar uma religião que uma constituição. Isso porque a religião traz uma
vantagem: ao menos na consciência popular, ela resolve o problema da
emergência do relativismo. As leis não podem se mostrar como tendo
origem na cabeça de um homem ou grupo, mesmo que sejam estes os mais
sábios da tribo. Ou seja, se as leis são divinas e não meramente obra
dos mortais, elas são sábias e máximas – absolutas. Um mortal que queira
mudá-las ou desobedecê-las estará se comportando arrogantemente como um
pretensioso e, por isso, como um tolo. Como que ele poderia criar leis
melhores que as geradas pelos deuses? Caso apareça alguém assim, deve
ser desconsiderado ou punido.
Entre várias narrativas da formação de nações, a Bíblia
é uma das mais ilustrativas quanto à relação entre determinado povo e a
religião. Moisés estava comandando um povo que crescia em número e que
ainda não tinha nenhuma lei geral. Então, com uma sabedoria incrível,
ele escreveu os Mandamentos e os trouxe ao seu povo. Ele não iria dizer
ao seu povo “eis aqui as leis que eu inventei e que vocês devem
obedecer”. Por mais autoridade que ele tivesse, agindo assim não teria
criado nenhuma legislação, apenas um catálogo de sugestões. Ele fez o
correto: “eis aqui as leis que nosso Deus entregou diretamente a mim,
para que eu as desse a vocês”. Isso não quer dizer que Moisés mentiu
para o povo. Moisés pode muito bem – e acredito nisso – ter meditado
diante de uma árvore queimando ou coisa parecida e, graças à sua
experiência, se inspirado para escrever as leis. Assim fazendo, pode ter
se sentido como conversando com seu Deus. Muitos de nós, ao refletir
sobre algo que nos preocupa, temos a sensação de ouvir a nós mesmos
falando, como se fosse outra pessoa. Temos até um nome para isso: “a voz
da consciência”. Não é necessário nenhum misticismo e nenhuma
religiosidade para entender esse episódio. Moisés, um homem que
acreditava que seu Deus se comunicava com ele, falou sobre os
Mandamentos para seu povo e isso foi extremamente importante para
aglutinar pessoas distribuídas em tribos e, assim, gerar algo como uma
sociedade. Aqueles Mandamentos poderiam ter ficado restrito ao seu povo,
mas com o surgimento de Jesus e, depois, do modo que Paulo comandou o
cristianismo, a mensagem judaico-cristã foi acolhida pelos mais humildes
do Império Romano, depois passou a ser a própria regra oficial deste e,
então, se espalhou pelo Ocidente. Os Mandamentos se mostraram possíveis
de serem universalizados, eram compatíveis com o que queríamos como
leis gerais. Ainda são! As nossas leis modernas e laicas, criadas
posteriormente, além de não desmenti-los às vezes remetem a eles.
As religiões históricas, com tradição,
possuem princípios conhecidos. Mas as religiões criadas aleatoriamente,
ou melhor, as igrejas nascidas sem qualquer movimento histórico na base,
são aquelas que chamamos caça-níqueis. Essas igrejas querem fiéis e
mais fieis. Então relaxam ao máximo os princípios religiosos, para
arrebanhar mais pessoas. Todavia, para que aquilo que se diz nessas
igrejas não fique distante do que se parece com uma religião entre as
pessoas mais simples, que é o que é o proibido ou o considerado
“pecado”, essas igrejas criam determinadas proibições possíveis de serem
cumpridas pelas pessoas. Assim, no caso do cristianismo, as igrejas
caça-níqueis não repisam os Mandamentos tanto quanto comentam pequenas
regras de comportamento. Sabidamente, os pastores pegam determinadas
partes de Bíblia de modo literal, principalmente aquelas
passagens que não possuem o grau de universalidade dos Mandamentos, em
especial as que dão alguma proibição a práticas sexuais. Repisando isso,
promovem a sensação entre os mais simples, em especial os simplórios,
que eles estão ainda no interior de uma religião.
Por que as práticas sexuais são as
preferidas como o foco de proibições? Ora, o sexo deixa as pessoas
felizes e autoconfiantes, e pessoas assim possuem pouca vontade de
procurar a igreja para pedir algo e pagar para receber milagres e coisas
do tipo. As regras de proibição se tornam então meros arranjos para que
a igreja que visa dinheiro ainda se pareça com uma entidade que sabe
proibir e, portanto, apareça na consciência popular como sendo de fato
uma igreja. O resto fica por conta do tamanho do templo e da oratória do
pastor.
Há quem diga, no entanto, que não só
esse tipo de igreja é um fator de deterioração da nossa vida livre, mas
que toda e qualquer religião moderna – os monoteísmos – formam
instituições que pouco colaboram para o nosso bem estar e nosso
crescimento como indivíduos efetivamente adultos. Essas pessoas podem
estar certas? Mas como seria um mundo em que a religiosidade se
expressasse de outra maneira, isto é, sem que as proibições meio que
cegas fossem o principal? Conhecemos um mundo assim, no Ocidente?
Conta-se que durante a discussão sobre
as mudanças do século XVIII, em especial os acontecimentos que
antecederam a Revolução Francesa, o filósofo Diderot disse ao seu amigo,
também filósofo, o célebre Voltaire, algo parecido com o seguinte: “em
uma nova ordem e em uma nova sociedade toda moral será laica,
obedeceremos a lei pela racionalidade da lei, de modo que todos poderão
ser ateus”. Diderot queria ficar livre da Igreja. Então, Voltaire
respondeu algo mais ou menos assim: “você e eu podemos obedecer a lei
pela sua racionalidade e assim faremos, mas e eles?” e apontou para a
janela, referindo-se às massas populares.
Muita gente que não tem qualquer
religião pensa assim como Voltaire: o povo precisa de regras que sejam
de fácil entendimento, que sejam passadas pelos próprios pais e que,
enfim, estejam na sociedade como uma coisa bem mais forte e com a
aparência de objetividade que uma constituição não conseguirá lhes dar.
Assim, mesmo para intelectuais liberais, muitas vezes a religião parece
ser uma espécie de “mal necessário”. Um mal? Sim, uma vez que suas
proibições não se apresentam bem justificadas, não nos fazem pensar e
refletir e, sim, nos fazem autômatos a seguir tradições, elas são ainda
um mal. Afinal, vivemos em um mundo de ciência, cercado de tecnologia e,
ao mesmo tempo, com a cabeça povoada de proibições vindas de deuses e
demônios.
Não digo que possamos viver sem
religião. Mas não poderíamos ter uma relação com a religião que
provocasse a nossa inteligência ao invés de embotá-la? Não haveria uma
religião que ao invés de nos fazer vacas de presépio, que ficam
paradinhas obedecendo ordens ininteligíveis, pudesse aguçar nosso
cérebro para nos tornarmos mais livres e mais criativos?
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* Filósofo. Prof. Universitário. Escritor.
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/2012/09/24/proibicoes-religiosas/
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