Roberto DaMatta*
Van Gogh
Rezamos todos ou a reza, como reza o hábito, é um
atributo (ou um privilégio) dos que acreditam em alguma coisa? Acreditar
é um verbo poderoso. Talvez o mais poderoso de todos, porque ele afirma
algo que é ou não é, dependendo do ponto de vista. Eu acredito em
Deus!, diz Francisco; Eu não!, responde José. Acredito que o mundo vai
acabar em dezembro deste ano e que o mensalão é obra das elites
reacionárias, de uma imprensa corrompida e de um Supremo Tribunal
Federal golpista, dizem os defensores de Lula.
O pragmatismo inocente afirma que "gosto não se discute", mas se
aplicarmos isso ao verbo crer, o mundo se abre a uma torrente de
loucuras. De fato, aprendemos que o verbo acreditar também tem limites.
Não há como acreditar em Papai Noel ou que a morte não exista fora dos
simbolismos culturais e religiosos. Crer é um direito e um ato de fé.
Há quem acredite em X, Y e Z - e há quem não acredite em X, Y e Z.
Então X, Y e Z têm um lado oculto (ou tenebroso) que a suposta
luminosidade do crer não alcança. O não crer obriga o crente a ver o
todo. O crer, por seu turno, leva o cético a ver o lado que lhe falta e
que ele imaginava não existir.
* * * *
Alessandro Magnasco
Esta pobre meditação é o resultado de um fato concreto e do meu mal-estar relativo ao mundo político brasileiro.
Primeiro, o fato.
Morre uma professora dedicada. Eu não a conheci, mas pelas mensagens
que recebo, relembro como é dura a reconciliação com a presença concreta
da morte para seus entes queridos. Eis que, no meio das mensagens, um
padre solidário com a perda espera não constranger os seus colegas ateus
com suas preces. Poucas vezes me deparei com um exemplo de tamanha
delicadeza e sensibilidade. Que os ateus me desculpem, eu não rezo para
ofendê-los, diz o padre.
Como um conforto ao sacerdote, eu desejo sugerir que todos rezam. Uns
acreditando, outros sem acreditar. Mas, perguntaria um crente: como
rezar sem um Deus? Ora, responderia o ateu, e como rezar para divindade
se o rezar é um ato pelo qual se aceita o mundo tal como ele é? Na sua
bondade e maldade, nas suas trevas e luzes? Mais do que reconhecer,
suplicar ou tentar estabelecer um contrato com as divindades, a prece é,
já dizia Mauss, o ato religioso mínimo para entrar em contato com o
sobrenatural que nos cerca e aterroriza, sejamos crentes ou ateus.
Rezar é reconhecer nossa finitude, fraqueza, carência, angústia e
solidão. É admitir que vivemos numa totalidade que não podemos conhecer
completamente. É um ato que pertence ao que Gregory Bateson chamou de
"uma ecologia da mente". Pois, quando rezamos, suspendemos o aqui e
agora dominados pelo eu para irmos de encontro ao todo. Rezar é admitir
que há no mundo seres e situações estranhas, acima (ou abaixo) dos elos
entre meios e fins. Há quem use um canhão para matar um passarinho e
quem tente enfrentar gorilas com poesia. O mundo não é claro como querem
os materialistas, mas também não é absolutamente escuro como desejam os
crentes.
* * * *
James Tissot
Eu ando rezando às claras e às escuras. Vejo no Brasil que julga o
mensalão um dado novo e alarmante para os poderosos de todos os matizes e
de todas as estirpes.
Este é um julgamento que pela primeira vez na nossa História vai
traçar limites não apenas para quem cometeu ilegalidades no poder, mas
nos contextos ou situações engendradas por quem o ocupou e, sobretudo,
por quem se deixou ocupar pelo poder.
Meu mal-estar com relação ao Brasil tem a ver com a força de quem tem
certas crenças. E para quem tem certas crenças, os fins justificam os
meios. Ser poderoso é, no Brasil, bradar pela ausência de limites. Será
mesmo possível punir um poderoso no Brasil? É possível aceitar o erro de
um petista, mesmo sendo petista? Pode-se admitir que os petistas, como a
maioria dos seres humanos, são também ambiciosos e podem errar, como
foi o caso do mensalão e, pior que isso, o aliar-se em São Paulo ao sr.
Maluf?
Pode-se ser de esquerda deixando de lado o chamamento milenarista que
promete um mundo perfeito quando perpetuamente governado por um
messias? Seria possível ter no Brasil uma administração pública na qual
oposição e situação aceitem os seus erros e tenham consciência dos seus
limites?
Será que hoje não estamos num tempo em que a ética tem sido comida
pelo político e pela "política da coalizão", que foi a alma do fato em
causa? Politizar negativamente é impedir a visão do todo como sendo
feito de parcelas diferenciadas. Se você, leitor, concorda comigo, reze.
Se não concorda, reze por mim.
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* Antropólogo. Escritor. Colunista do Estadão
Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/26/09/2012
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