Às portas das eleições municipais no Brasil, o debate sobre os
problemas e as perspectivas para o futuro das cidades ganha destaque. Os
gargalos de mobilidade, habitação e segurança, para se ater a três
temas, revelam que os muitos sistemas que constituem uma cidade são
inseparáveis. Pensá-la como um todo, desenvolver grandes projetos de
recuperação urbana e valorizar as preocupações arquitetônicas nas
grandes cidades brasileiras estão no escopo do encontro Arq.Futuro, que
ocorre em São Paulo na segunda e na terça-feira. Com a presença de
arquitetos e urbanistas brasileiros e estrangeiros, o evento põe em
questão a encruzilhada em que se encontram as metrópoles: um "futuro de
caos ou ordem das megacidades em contínuo crescimento".
Segundo o curador do encontro, o arquiteto e editor Fernando
Serapião, os diferentes aspectos tratados pelos palestrantes só
conseguem produzir efeitos reais sobre a vida urbana quando articulados
entre si. Os eixos são três: o problema da habitação no contexto do
mercado imobiliário; o aproveitamento de espaços públicos para a cultura
e o lazer; e o uso da tecnologia para tornar o funcionamento das
cidades mais eficiente. "Nenhum desses eixos pode resolver a questão
urbana por conta própria. Não se trata de apenas eliminar o déficit
habitacional ou apenas aproveitar melhor os espaços públicos. Esse
evento serve para envolver toda a sociedade, não só arquitetos e
estudantes de arquitetura, na discussão sobre as cidades, o espaço em
que todos vivemos nosso dia a dia", afirma o curador.
A série de debates e palestras ocorre no momento em que as grandes
cidades brasileiras se preparam para eventos como a Copa do Mundo de
2014 e a Olimpíada de 2016, com iniciativas grandiosas de renovação
urbana. Destacam-se o projeto Nova Luz, na região central de São Paulo, e
o Porto Maravilha, que pretende transformar a área portuária do Rio em
novo polo da cidade. Em comum, os dois projetos prometem derrubar uma
via elevada (a Perimetral no Rio e o Minhocão em São Paulo), mudar o
zoneamento em muitos quarteirões e construir equipamentos culturais
impactantes: o Museu do Amanhã, no píer Mauá, no Rio (projeto do
espanhol Santiago Calatrava) e o Complexo Cultural Luz, em São Paulo (do
escritório suíço Herzog & de Meuron).
De acordo com Serapião, o caminho para o sucesso de iniciativas de
recuperação urbana passa por essa conjunção entre legislação,
recapacitação da área visada e estabelecimento de equipamentos que
atraiam atenção e produzam movimento. Sozinhos, esses equipamentos não
são capazes de injetar vitalidade numa região degradada.
"A região da Luz recebeu equipamentos excelentes, como a Sala São
Paulo, o Museu da Língua Portuguesa e a Pinacoteca do Estado, mas
continua sendo uma região degradada", afirma o curador. "Por outro lado,
se o poder público se limitasse a incrementar o mobiliário urbano, as
pessoas poderiam até frequentar mais o lugar, mas não necessariamente
seriam atraídos novos investimentos."
Em sintonia com o movimento de novos projetos urbanos, os debatedores
têm a tarefa de discutir como o planejamento pode se orientar para
incentivar a espontaneidade da vida na cidade. Entre os convidados,
contam-se representantes do mercado imobiliário, como Otávio Zarvos,
diretor da incorporadora idea!Zarvos; arquitetos de edifícios ousados,
como o casal Tod Williams e Billie Tsien, que projetaram a celebrada
sede da Barnes Foundation, na Filadélfia; e planejadores urbanos como o
americano Thaddeus Pawlowski, urbanista do departamento de planejamento
da cidade de Nova York, responsável por projetos de infraestrutura de
larga escala. (Leia a entrevista com Pawlowski na pág. 8.)
O evento, que ocorrerá no Auditório Ibirapuera, em São Paulo, está em sua terceira edição (outras informações em www.arqfuturo.com.br).
A primeira, em São Paulo, ocorreu em novembro. A segunda, no Rio, foi
em março e contou com a presença dos economistas Edward Glaeser e José
Alexandre Scheinkman, para satisfação dos organizadores. "É um debate
que não pode ficar circunscrito à arquitetura", diz Serapião.
O desejo de planejar as cidades atingiu o ápice no século XX,
sobretudo após a Segunda Guerra. A destruição por bombardeios da maior
parte das grandes cidades europeias abriu caminho para a aplicação de
ideias arquitetônicas e urbanísticas que vinham sendo discutidas desde o
entreguerras (1918-1939) no âmbito dos Ciam (Congrès Internationaux
d'Architecture Moderne), encontros periódicos dedicados a pensar as
feições das cidades do antigo continente perante o advento da era do
automóvel e da grande indústria.
O suíço Le Corbusier, que influenciou grande parte da arquitetura e
do urbanismo brasileiros do século XX, foi um dos fundadores dos Ciam.
"A vanguarda urbanística da época acreditava na setorização: um lugar
para morar, um lugar para trabalhar, um lugar para consumir", diz
Serapião. "Mais tarde, descobriu-se que a separação foi um erro."
Historiadores do urbanismo, como Charles Jencks, chegam a definir com
muita precisão o fim do modernismo em arquitetura e urbanismo: em 1972,
o conjunto habitacional Pruitt-Igoe, em Saint Louis, nos Estados
Unidos, foi demolido. Projetado em 1954 por Minoru Yamasaki, considerado
um dos maiores arquitetos modernistas do século XX, o conjunto se
tornara rapidamente um enclave de violência e degradação, reconhecido
por suas janelas quebradas.
"As melhores cidades são aquelas que estimulam qualquer pessoa, o
morador e o visitante, a ter vontade de morar, voltar, sentir prazer
naquele espaço, no convívio, na atmosfera", afirma Serapião. A ambição
funcional sobre as cidades ficou para trás e o novo paradigma do
urbanismo se traduz em incentivos para que os cidadãos criem suas formas
de vida, por meio de leis de zoneamento e associações que envolvam os
moradores - o curador cita como exemplo o movimento que, nos anos 1970,
impediu que o bairro carioca de Ipanema fosse tão verticalizado quanto a
vizinha Copacabana. "Deu certo. Em Ipanema, os prédios têm bem menos
altura do que em Copacabana. Isso é muito mais agradável do ponto de
vista ambiental e urbanístico."
Tecnologias de informação são uma das ferramentas disponíveis para
incentivar os próprios cidadãos a mudar suas cidades. O arquiteto
italiano Carlos Ratti, diretor do laboratório Senseable City, no
Massachusetts Institute of Technology (MIT), afirma que o trinômio
computadores pessoais velozes, bancos de dados abertos e recolhimento de
informações pode permitir à população reorganizar o modo de
funcionamento de suas cidades. (Leia a entrevista com Ratti na pág. 9.)
Para esclarecer que mudar uma cidade não é tão fácil como pode soar,
Serapião evoca as matrizes culturais brasileiras e cita o antropólogo
Roberto DaMatta. "Temos dificuldade em entender o espaço público como o
lugar que temos para conviver. É a clivagem entre a rua e a casa. A casa
é qualquer ambiente privado, em que há hierarquia e tudo é bem
organizado. Não é a lei que a regula, existe uma ordem própria que está
ausente do espaço público. O que sobra é a competição", diz.
O resultado é a segregação dos usos, a escolha por condomínios
fechados e o empobrecimento da experiência urbana. "O debate
arquitetônico pode revelar às pessoas que são parte não só do problema,
mas também da solução", afirma Serapião. "Se alguém não quer lojas no
térreo de seu prédio, deveria pensar primeiro no muro do condomínio
fechado e no efeito sobre a calçada." O problema do uso dos espaços e os
vícios sociais saem do escopo da arquitetura e do urbanismo, lembra o
curador, "mas o papel do evento é colocar isso em pauta até onde podemos
alcançar. O problema envolve toda a sociedade."
------------------------------
Reportagem Por Diego Viana | De São Paulo
Nenhum comentário:
Postar um comentário