Tarso Genro*
Em 1994, pedi aqui a moratória da utopia socialista. A esquerda ganharia
pelas regras do jogo. Criticaram. Hoje, o "votar não adianta" assombra é
a Europa
Há anos (em janeiro de 1994), escrevi um artigo nesta seção da Folha, cujo título era "Uma moratória para a utopia".
Na época, fui criticado pela autodenominada "esquerda" do meu partido
-que mais tarde tomou seus próprios caminhos- e também pela esquerda
acadêmica, que agora se especializou no antilulismo e no antipetismo e
que faz coro com a direita mais retrógrada, "contra os políticos" e
"contra a corrupção", estabelecendo uma identidade mecânica e
autoritária entre ambos.
A moratória com a utopia socialista pressupunha -e ainda pressupõe- uma
convergência à esquerda a partir dos valores básicos da democracia e da
república, daí tendo como fulcro o Estado de Direito: a observância das
"regras do jogo" (Bobbio).
Isso pressupunha a inversão de prioridades, a partir dos governos de
esquerda, pautando -em oposição à mera estabilidade- a estabilidade com
distribuição de renda e inclusão social e educacional amplas.
Tratava-se de colocar os "de baixo" na mesa da democracia, como dizia Florestan Fernandes. E isso foi feito.
Felizmente (e não foi obviamente por artigos como aquele) o Brasil
trilhou este caminho. E por mais que se possa criticar o cerco midiático
ao STF no processo do "mensalão", por mais que se possa discordar da
avaliação das provas, da inovação de teses para proporcionar
condenações, da "politização" excessiva do processo, ninguém pode dizer
que os ministros da nossa corte suprema estão julgando contra as suas
convicções ou insuflados por pressões insuportáveis.
Nada do que está acontecendo é estranho a qualquer Estado de Direito, por mais democrático e maduro que ele seja.
O Estado de Direito democrático é assim mesmo. A sua superioridade em
relação às ditaduras é que as suas limitações e insuficiências são
abertas e podem ser contestadas, tanto no plano da política como do
direito, de forma pública e sem temor, por qualquer cidadão.
Faço estas observações porque eminentes intelectuais e jornalistas
europeus, em distintas manifestações, hoje questionam a situação da
democracia na Europa.
Boaventura Sousa Santos (na revista "Visão", de Lisboa) escreve
"Portugal é um negócio ou é uma democracia?". Joaquin Estefania ("El
País", de Madrid), defende que "começa a ser um mistério que alguém se
moleste de votar e estimular a alternância partidária (...) se não
existe capacidade de intervenção efetiva por parte de uma autoridade
política eleita".
Antonio Baylos Grau, da Universidade Complutense de Madrid, diz que a
Espanha está "numa democracia limitada", com a "soberania limitada
(doutrina Brejnev) através da arquitetura financeira mundial,
concentrada em poucas mãos".
Assim, sugiro que a democracia no Brasil, neste período histórico, está
mais avançada do que no continente europeu, porque a adoção da dogmática
de "não há alternativa" (ao caminho pautado pelas agências de risco e
pelo poder privado do capital financeiro) não tem vigência nem
efetividade em nosso país.
As medidas que a presidenta Dilma tem tomado na gestão econômica, dando
sequência às políticas do presidente Lula, de inserção soberana,
cooperativa e interdependente do país, na economia e no mercado mundial,
mostram que a democracia, sim, pode ter consequência na economia e no
desenvolvimento social de qualquer estado.
Na Europa, não somente foi feita uma moratória com a utopia socialista,
cujo impulso foi responsável pelas grandes conquistas de proteção social
e de coesão nacional no século passado, mas também foi congelada a
utopia democrática. Os governos eleitos, sejam socialdemocratas ou
conservadores, na primeira fala que fazem, quando chegam ao poder, é que
"não há alternativa".
Logo, não adianta votar e escolher.
Nós, da esquerda e do PT, e todos os democratas de todos os partidos
celebremos esta diferença: ainda não conseguiram congelar, aqui, a
utopia democrática.
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