sábado, 29 de setembro de 2012

Igreja tem de ganhar «atitude de encontro» e rejeitar «distanciamentos, hostilidades e indiferenças»

P. José Tolentino Mendonça*
 
 
Olhando para nós próprios [cristãos] e para o mundo em que nos inscrevemos, percebemos que não nos reconhecemos necessariamente na sociedade porque ela mudou muito e já não é um reflexo das nossas ideias, modelos sociológicos ou sequer do que pensamos que seria o melhor ou o mais justo. O mundo é como é, e a verdade é que se distanciou muito de uma gramática, modelo, cultura, noção de tempo e de Homem que enforma a tradição cristã.
Penso que hoje surge como inalienável por parte da Igreja o dever da explicação. Hoje os cristãos têm o dever de explicar-se a um mundo que não os entende, não porque seja mau mas porque funciona numa lógica diferente.
Há dias lia um artigo de António Pinto Ribeiro, programador que colabora com a Gulbenkian, sobre a incapacidade que um universitário de História de Arte tem hoje para ler aquilo que para nós são evidências, como por exemplo uma pintura da Anunciação. Faltam chaves que para nós parecem óbvias, porque as narrações evangélicas embrenham profundamente a nossa vida. Mas essas chaves passaram a faltar, naturalmente, na cultura onde estamos inscritos.
Às vezes falamos, na nossa linguagem, de concílios, sínodos, bispos e encíclicas como se fosse a coisa mais evidente para toda a gente. Não é, deixou de ser há muito tempo. Muitos dos mal-entendidos surgem porque não entendemos este dever fundamental de explicar.
Quando lemos os textos cristãos do Novo Testamento percebemos que a força audaciosa das primeiras comunidades estava muito em terem interiorizado que tinham de traduzir aquela mensagem. Paulo sabe que o cristianismo nasceu na Palestina mas que ele tem de usar uma nova linguagem se quiser chegar aos Coríntios e aos Filipenses. Não pode falar da mesma maneira. Tem de arriscar, utilizar palavras novas. Um cristão é um tradutor, um hermeneuta, tem de traduzir Deus por miúdos, tem de contar de forma percetível aquilo em que acredita. Se não o fizer, este corte, este silêncio, esta conversa de mal-entendidos vai simplesmente prolongar-se.
Além disso, nós, Igreja, precisamos de fazer um mea culpa, um exame de consciência, e dizer que nós próprios sabemos falar mal e ousamos muito pouco falar aos outros daquilo em que acreditamos. Sabemos dizer mal as razões do nosso crer, mesmo em situações favoráveis que nos são colocadas.
É claro que ao olhar para a cultura contemporânea, para este grande caldo heterogéneo, podemos identificar atitudes negativas, ambientes hostis, resistências, preconceitos, críticas a priori. Mas o mais frequente é lidarmos com o nosso próprio mutismo. Nós interiorizamos a própria indiferença do mundo. Não é o mundo que é indiferente; nós é que interiorizamos, em grande medida, esse conceito da indiferença. E porquê? Porque nos dá jeito; porque apostamos ainda pouco na formação das comunidades e dos cristãos; porque a fé, muitas vezes, é incapaz de pronunciar as suas razões; porque ela é muito mais o automatismo das práticas rituais e pouco o que é mais longo e demorado, isto é, uma tomada de consciência que torna um freguês numa testemunha. A transferência de deixarmos de ser fregueses da nossa paróquia e passarmos a ser testemunhas na nossa comunidade é uma deslocação que precisamos de fazer acontecer dentro da Igreja, porque ela não acontece automaticamente.
As estruturas da Igreja precisam de profissionalismo – uma palavra de que gostamos pouco e que também pode ter a sua ambiguidade. Mas no fundo precisamos de criar e aprofundar competências na área da comunicação e da organização, criando uma rede maior entre os contactos.
Olhando para o mundo há fronteiras que pensamos que existem mas que deixaram de existir. Ao descrever a contemporaneidade, o filósofo italiano Gianni Vattimo diz que entramos num tempo de um pensamento fraco. E a verdade é que há uma debilidade – e não podemos fugir desta palavra – que caracteriza a Igreja, e isso porque estamos em recomposição, porque percebemos que os modelos em que vivíamos são inadequados e que a realidade sobra por todos os lados. Por exemplo, já não conseguimos suportar o modelo paroquial porque nos faltam presbíteros para colocar em cada paróquia. A própria ideia de território não resiste à prática das mobilidades sociais. Há fenómenos tão novos que nos fazem viver no interior da Igreja numa grande debilidade.
Este é também para nós um tempo de crise. E há silêncios e silenciamentos que nascem desta hora que estamos a viver. Percebemos que há modelos que não servem mas por outro lado ainda a estamos a experimentar ou descobrir novos, a escutar os sinais dos tempos, a encontrar caminhos... Estamos num tempo de balanço em relação ao que foi o séc. XX e ao que foi um certo espírito ligado ao Concílio Vaticano II, ao mesmo tempo que procuramos perceber o mundo em que nos inscrevemos, as grandes mutações antropológicas e sociais a que as comunidades cristãs não são imunes. É um tempo de debilidade que não podemos disfarçar com discursos musculados ou com discursos para a frente que não querem encarar a realidade. A realidade é esta e é isto que temos de abraçar e olhar.
Mas o mundo é também uma realidade muito débil e ténue. As instituições sociais passam por processos de erosão e recomposição a um nível muito mais profundo e radical do que aquele que nós próprios experimentamos. Mesmo na diferenciação e na mudança que estão a sofrer, sentimo-nos numa concha, protegidos. Não sentimos o que no mundo se sente muito mais, que é uma insegurança e incerteza a toda a linha. Neste sentido, a lógica do adversário que deixou de funcionar.
Na cultura contemporânea, e pensando no caso português, a Igreja ainda é olhada como adversário cultural. Precisamos de explicar e explicarmo-nos, para que a Igreja seja vista como aliada e não como adversária. Esta mudança que nós temos de protagonizar. Nós, cristãos, temos de fazer sentir aos outros que não têm de ter medo de nós, da nossa presença, do nosso modo de viver, do nosso estilo, dos nossos valores, do que celebramos na fé, da nossa liturgia, das nossas procissões, dos nossos jornais, da nossa agência noticiosa… Não têm de temer porque nós somos aliados do que a cultura e a civilização têm de mais fundamental, que é a pessoa humana e a sua vida, em todos os momentos. Que é, no fundo, as suas dificuldades e a situação concreta em que ela vive. Mas esta viragem – passar de adversário a aliado – compromete-nos e hipoteca-nos. E não podemos ficar à espera diante de uma porta aberta. Temos de ensaiar passos.

 "Há uma frase do romancista católico 
Julien Green que diz assim:
 «Enquanto vivermos inquietos, 
podemos estar tranquilos».

Penso, por exemplo, que este projeto do Pontifício Conselho para a Cultura, o Átrio dos Gentios, é uma forma emblemática e icónica de dizer «não tenham medo», e perceber que pessoas com perspetivas e experiências de vida diferentes podem ser complementares, e não necessariamente rivais. O que o cristianismo traz ao mundo não é alguma coisa que destrói o mundo - «Deus amou de tal maneira o mundo que lhe deu o seu próprio Filho». O cristianismo é a alma do mundo, é chamado a trazer um suplemento de espírito ao mundo, a alargar a esperança do homem e da cultura.
Neste sentido penso que não temos de interiorizar distanciamentos, hostilidades, indiferenças. A Igreja precisa de ganhar uma atitude de encontro e de escuta, avaliando também a nossa própria escuta. Nós escutamos o mundo; mas quem é que faz a escuta da escuta que nós fazemos? Quem é que nos diz se a escuta que fazemos é profunda, sintonizada, ou se em vez de escutar o mundo estamos antes a ouvir a nossa própria voz?
Este tempo, com todos os seus impasses e crises, em que sentimos uma transformação muito grande e uma diminuição sociológica daqueles que se identificam em termos de vida com a mensagem cristã, é também o lugar para um florescimento da experiência cristã.
Há trabalhos que temos de ser nós, Igreja, a protagonizar, sem estar à espera que sejam os outros a fazê-los. Por exemplo, temos de fazer e aprofundar, dentro da Igreja, o diálogo entre a fé e a razão, pensando a fé de forma inteligente e não fazendo dela, simplesmente, um irracional que incorporamos. Temos de fazer apelo e valorizar as mediações da filosofia, do direito, da sabedoria, da teologia, do humor, da estética. Não é por eu ser padre ou leigo empenhado, ou por o nosso jornal ter a etiqueta católica – isso não é um selo de nada. Vivemos num tempo e numa cultura onde precisamos de construir uma presença, não dando por adquirido o que já deixou de ser. Nesse sentido há um grande desafio à humildade, ao caminho, à aceitação das circunstâncias e à oportunidade que este tempo representa.
Se nós ouvirmos pensadores contemporâneos, como Marcel Gauchet ou Habermas, percebemos que as sociedades secularizadas não excluem o religioso. Pelo contrário, elas contam com o religioso, mas esperam que ele seja explicado e testemunhado de forma pacífica e credível. Não numa perspetiva do poder mas da relação, da apresentação, do encontro. E neste contexto há uma atitude, um modo de situar-se no interior da cultura que precisamos de aprofundar e que é uma urgência do próprio ser cristão.
Dizer isto não é fazer a apologia de uma neutralidade ou cair numa neutralização do cristão. O catolicismo afirma-se como uma diferença, uma qualidade, uma condição e um estado. A fé não é uma ideologia mas é alguma coisa em que nos tornamos – não nascemos cristãos mas tornamo-nos cristãos, que é a fidelidade a Cristo.
A diferença cristã deve conduzir-nos a um protagonizar a diferença. A nossa presença tem de fazer a diferença. O mundo não nos dá nada de bandeja, e ainda bem. Nós também não damos nada de bandeja ao mundo.
Há um desafio muito grande à autenticidade. Podemos dizer que a mundo perdeu o norte, que a cultura vive de sucedâneos e de contrafações, que vivemos num mimetismo e numa osmose onde se esquece o que é a verdade… Mas não é bem assim. No coração do homem e da mulher há uma nostalgia do autêntico, que vemos nas coisas mínimas: a lã virgem dos nossos pullovers, o doce da avó, a comida caseira são imagens de marca, pequeninos detalhes desta língua que a cultura fala mas que atestam esse desejo de uma autenticidade, de uma verdade.
O mundo espera encontrar nos cristãos palavras proféticas, sem dúvida; os profetas bíblicos tinham as palavras proféticas mas também tinham os gestos proféticos. O tempo em que vivemos é uma oportunidade para revalorizarmos e redescobrirmos a intensidade comunicacional dos gestos proféticos. O mundo precisa de ver em nós gestos proféticos. E muitas vezes o silêncio é um gesto profético, que toca profundamente.
Por exemplo, o caso dos monges de Tibhirine, na Argélia, essa comunidade mártir. São poucos homens que viveram de forma pobre e humilde, sem grande comunicação com o exterior, a não ser a relação com a aldeia muçulmana que os envolvia. Mas a experiência que realizam, tecida do silêncio que marca e documenta a autenticidade daquelas vidas dadas, não deixa ninguém indiferente. Aquelas vidas têm espessura de sentido, têm um enigma, constituem uma pergunta.
A experiência cristã no mundo de hoje tem de inscrever-se na cultura como pergunta, silenciosa, despretensiosa, de quem deu a sua vida. Se o mundo reconhecer isto em nós, é capaz de perceber que valeu a pena o encontro porque aquilo que descobriu é capaz de o iluminar e de lhe dar alguma coisa que ele não tinha.
Há uma frase do romancista católico Julien Green que diz assim: «Enquanto vivermos inquietos, podemos estar tranquilos».
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 *P. José Tolentino Mendonça
Diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura
Jornadas Nacionais da Comunicação Social da Igreja Católica, Fátima, 27.9.2012
Vídeo: Agência Ecclesia http://www.youtube.com/watch?list=UUCRAIiRW-TTJT_vHIrkr40Q&feature=player_embedded&v=lvMElwWNRqo

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