Carlos Eduardo Lins da Silva*
TENDÊNCIAS/DEBATES
não
Quem vai definir quais são os limites?
É moralmente defensável a tese de que ninguém deve ofender ou ridicularizar símbolos considerados sagrados por outra pessoa.
Blasfêmia contra imagens, objetos ou personagens que representam
religiões pode causar indignação ou dor, independentemente das possíveis
consequências advindas delas.
Em princípio, todos os seres humanos devem ser tratados com respeito pelos demais.
Mas não é justificável que se exija de todos considerar sagrado o que
outros assim julgam. O direito à liberdade de expressão também é um
valor que pode ser defendido do ponto de vista moral.
Quem abusa dele e provoca danos a indivíduos ou comunidades pode ser
processado na forma da lei e punido, quando considerado culpado. Mas
muito mais complicado é arguir que Estados ou igrejas tenham poder para
impedir que alguém expresse opiniões (ou as ouça ou assista) porque um
contingente de devotos se sente ferido por elas.
Se assim for, e se essa condição se estender a todas as denominações
religiosas (por que seria admissível que algumas gozassem de tal
privilégio e outras não?), a vastidão de temas proibidos seria enorme.
David Koresh, que morreu em 1993 com 82 de seus discípulos da seita Ramo Davidiano, no Texas, mereceria esse tipo de proteção?
E o reverendo Jim Jones, que em 1978 comandou o suicídio em massa de 918 adeptos de seu Templo dos Povos, na Guiana?
A bandeira nacional é sagrada para muitos. Nos Estados Unidos, já se
tentou proibir que ela fosse insultada; o regime militar brasileiro
punia quem, a seu juízo, a injuriasse, por exemplo, enrolando-se nela
num show. Isso seria defensável sob o argumento de que o sagrado não
pode ser ofendido?
A Igreja Católica tem o direito de condenar ao inferno a alma de
Jean-Luc Godard por se sentir incomodada com o filme "Eu Vos Saúdo,
Maria", que considerou blasfemo. Mas o Estado não tem o direito de
proibir sua exibição, embora o brasileiro o tenha feito brevemente em
1985.
Quem decide o que é blasfêmia contra quem? Quem tem o poder de resolver o
que a sociedade pode ou não assistir? Quem separa o que é maluquice do
que é sério? Quem define o que pode ser objeto de humor e o que não
pode? Quem classifica o que é engraçado e o que é chulo?
Quando qualquer pessoa pode colocar em redes de comunicação mensagens
acessíveis a milhões de outras, é possível ou desejável impor limites
prévios para impedir que alguns grupos sociais sofram com o que é
divulgado nessas redes?
Se "A Inocências dos Muçulmanos" não tivesse servido de pretexto para
nenhum incidente ou morte, ele poderia ter ficado indefinidamente no
YouTube, como provavelmente estão agora centenas de outros produtos
similares ou muito piores?
Quem vai checar tudo nas redes para identificar o que pode, a seu
critério, irritar xiitas, pentescostais, judeus ortodoxos, ateus,
nacionalistas, e proibir sua divulgação? Ou só o que causar protestos
será proibido?
É muito mais complicado hoje do que até 30 anos atrás prevenir a
disseminação de conteúdo infame. É difícil imaginar, por exemplo, que
rede de TV como BBC ou CBS colocasse no ar um filme de má qualidade e
degradante como este.
Jornalistas profissionais construíram ao longo de décadas um acervo de
conceitos, práticas e princípios que diminui a possibilidade de
ocorrência de episódios como este. Nas mídias sociais, esta cultura
ainda não existe, e talvez nunca exista, devido à infinidade de
emissores.
Tentar combater essa dificuldade com censura estatal ou eclesial a tudo
que possa sensibilizar uma comunidade religiosa não é solução para o
problema e criará muitos outros, mais graves, para a sociedade, em
prejuízo especialmente de minorias e despoderados.
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Mateus Soares de Azevedo*
TENDÊNCIAS/DEBATES
O Ocidente deve se abster de publicar filmes ou charges que sensibilizem o mundo islâmico?
sim
Quando o objetivo é só chamar a atenção
Não era incomum encontrar, até recentemente, declarações de renomados
arabistas sobre a desinformação quase total do público ocidental acerca
do islã. O britânico William Stoddart é um deles. Em um livro de 1976,
escreveu que o islã era o mundo desconhecido. De lá para cá, muita água
correu debaixo da ponte, mas o islã segue desconhecido.
Tendo estudado o assunto por duas décadas, sou levado a concordar com o
diagnóstico. Eu acrescentaria que se antes o desconhecimento podia ser
considerado inocente, derivado de mera falta de informação, a ignorância
de nossos dias não pode.
Ela resulta menos da simples falta de informação do que de opiniões
interessadas, truncadas e parciais. Resulta também, às vezes, de
material provocativo e irresponsável.
Esse me parece ser o caso do "filme" "Inocência dos Muçulmanos" e das
caricaturas do "Pasquim do Carlinhos" francês ("Charlie Hebdô"). O
intuito é causar o maior escândalo e turbulência possíveis, atraindo
assim atenção para este ou aquele autor ou publicação, além de alguns
trocados na conta bancária dos envolvidos.
Qual a contribuição real que este gênero de insulto à religião, seus símbolos e figuras traz para a compreensão do problema?
Uma coisa é criticar de maneira objetiva este ou aquele aspecto do mundo
islâmico, ou de outro universo religioso, outra bem diferente é
denegrir ou escandalizar gratuitamente com propósitos interessados.
Desde quando insulto aos referenciais tradicionais, de qualquer povo que
seja, é liberdade de imprensa?
Frequentemente se esquece que não se está lidando com um time de futebol
ou uma escola de samba -nenhum demérito aqui-, mas de uma das grandes
civilizações da humanidade. Com um conjunto de princípios e valores em
torno do qual gira, já por 1.500 anos, a vida e a morte de 1,6 bilhão de
seres humanos.
Ao longo de sua milenária existência, o islã trouxe aportes relevantes
para a própria civilização ocidental, em praticamente todos os campos de
atividade humana. Na filosofia, teologia, espiritualidade, matemática,
astronomia, medicina, navegação, arquitetura etc.
E essa civilização emergiu, praticamente do nada, fulminantemente, por
assim dizer, graças às visões e inspirações recebidas por um indivíduo
chamado Maomé. Ora, surpreende que alguns muçulmanos, que devem tudo o
que são e têm ao que o profeta lhes ensinou, se revoltem?
Se, no Ocidente, as antigas sabedorias e as espiritualidades
tradicionais não são mais consideradas, se muitos renegam seu patrimônio
cristão tradicional, isso não vale para a maioria da humanidade
contemporânea. Na Índia, com seus 1,2 bilhão de habitantes, a esmagadora
maioria continua praticando a tradição de seus ancestrais. No Extremo
Oriente, o mesmo se dá com budistas, taoístas e confucionistas.
Outro aspecto da questão: a "fúria" não envolve a maioria da população islâmica em 50 países.
É uma minoria, manipulável por grupos extremistas, que reage de forma
fanática. A maioria não aprova as "liberdades" tomadas com seu profeta,
mas não crê que incendiar automóveis ou linchar embaixadores seja uma
boa resposta. Ao passo que manifestações pela Primavera Árabe
movimentaram dezenas ou centenas de milhares, as contra o filme não
mobilizaram mais que centenas de pessoas. Isso certamente diz algo sobre
o problema.
Finalmente, não sejamos hipócritas. Nenhum governo ou veículo de
imprensa ocidental permite que tudo e qualquer coisa seja publicado. A
editora da revista francesa que exibiu fotografias da duquesa de
Cambridge -nem os tabloides britânicos o fizeram- foi ameaçada de morte.
Só os muçulmanos são fanáticos?
A ideologia da "liberdade de expressão absoluta" me parece uma
"religião" política. É uma forma de idolatria, como o culto de um ídolo,
um "bezerro de ouro".
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