Dominado pelas imagens, pela velocidade e pela fluidez do
instantâneo, que se sintetizam no império da internet, o mundo
contemporâneo parece pulverizar a noção de sujeito. Não é, contudo, o
que pensa o filósofo francês Michel Maffesoli, que esteve no Brasil
neste mês para uma palestra no Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro. E
de quem a editora Forense Universitária lançou, recentemente, o ensaio
"O Tempo Retorna" (trad.: Teresa Dias Carneiro, 126 págs., R$ 49,00).
Em vez de pensar em avanço ou, ao contrário, em retrocesso, Maffesoli
prefere falar de um mundo que se desenrola em formato de espiral. Em
meio às novas tribos do século XXI, que se agregam em torno das redes
comunitárias, aspectos arcaicos - desprezados ao longo de quatro séculos
de racionalismo - retornam com toda a força e em outro nível. É do que
ele nos fala nesta entrevista.
Valor: O mundo contemporâneo parece se definir pela morte do sujeito. Os
meninos que passam horas a fio nas LAN houses não carregam mais
fantasias dentro de si. E nem precisam delas: as fantasias lhe são
fornecidas pelas máquinas. Parecem hipnotizados e vazios. Como você
avalia esse novo cenário?
Michel Maffesoli: A grande mudança que vivemos hoje é
a passagem do indivíduo para a comunidade. Já Heidegger nos falou da
transformação da sociedade do Eu na sociedade do Nós. É preciso não se
deixar cegar pelo que seriam as novidades de nossa situação. Reconhecer
com humildade que é próprio da espécie animal - nossa espécie -
relacionar-se sempre com a técnica. É isso que marca essencialmente
nossa especificidade, nossa singularidade. A relação com a técnica
contemporânea não tem nada de novo. Isso mostra, porém, que em certos
momentos, justamente por causa do desenvolvimento da tecnologia, as
imagens e a imaginação agora retornam. Voltamos ao que o racionalismo
moderno eliminou. Não existe nesse retorno, contudo, uma "eliminação da
alma". Ao contrário, surge uma "alma multiplicada", que eu chamo de
"organismo místico". Convém evitar, em face da irrupção dos novos meios
de comunicação interativos, uma posição totalmente crítica. O melhor é
acompanhar o processo que se desenrola, com o objetivo de que ele dê o
melhor de si mesmo.
"O Facebook, o Second Life etc. recuperaram o
'ideal comunitário'. Chegamos a uma sociedade que enfatiza a relação
com o outro", afirma
Valor: Com a expansão da internet, estamos todos
em "outro mundo", que parece irreversível e contra o qual não adianta
lutar. Daí o clima depressivo que envolve as gerações mais maduras.
Contudo, em "O Tempo Retorna", você aponta uma surpreende conexão entre o
arcaico e o futuro. Você não vê motivo para o pessimismo, mas, ao
contrário, para o otimismo. Pode explicar isso melhor?
Maffesoli: Creio que a pós-modernidade se
caracteriza pela "sinergia" do arcaico e do desenvolvimento tecnológico.
As tribos pós-modernas florescem, justamente, graças à expansão da
internet e da tecnologia. Trata-se, em efeito, de um paradoxo, pois ao
longo de todo o século XIX e de boa parte do século XX a técnica se
empregava, essencialmente, para racionalizar a vida social e eliminar
tudo o que pudesse ser da ordem do emocional, do afetivo e das paixões.
Hoje, ao contrário, essa mesma técnica promove o retorno dos afetos. É o
que desenvolvo, também, no meu livro que acaba de sair na França, "Homo
Eroticus - As Comunhões Emocionais" [CNRS Éditions]. Graças à web, às
redes comunitárias, aos fóruns de discussão e outros blogs, acessamos
não mais "um outro mundo", mas sim "um mundo outro". Isto é, um mundo
que faz parte das dimensões que o racionalismo moderno deixara de lado.
Falo de tudo o que diz respeito à dimensão lúdica, onírica, imaginária
da existência. É essa ligação entre o "arcaísmo" e o desenvolvimento
tecnológico que me leva a não compartilhar o pessimismo que se dissemina
entre as elites sociais. Existe hoje, em particular entre as jovens
gerações, uma inegável vitalidade, que se exprime em novas formas de
solidariedade e de generosidade. A web favorece antigas formas de
hospitalidade, que foram a marca das sociedades pré-modernas. Desse
ponto de vista, sim, sou um otimista.
Valor: Parece que, agora, a própria noção de
humano deve ser repensada. Precisamos abdicar de nossa antiga visão a
respeito do homem porque, com o acelerado avanço técnico, ele já é
outro. Quem é esse novo homem que acaba de nascer? Ainda haveria uma
"alma" (um "sujeito") dentro dele?
Maffesoli: Creio que devemos evitar o falso debate
entre o racional e o irracional. Inspiro-me na posição de Max Weber,
segundo a qual o não racional é não irracional, mas tem racionalidade
própria. Recordo, ainda, uma ideia do economista italiano V. Pareto,
segundo a qual o não lógico não é igual ao ilógico, mas tem lógica
própria. É, além disso, a lição que podemos guardar de um antropólogo
muito conhecido no Brasil, meu mestre e amigo Gilbert Durand, que tem
sempre insistido no fato de que o imaginário não se opõe à razão. Uma
das características mais importantes do pós-modernismo é a ligação entre
razão e sentido. Retornamos, assim, a uma concepção do mundo mais
"holística", na qual existe uma interação entre o material e o
espiritual. Chamo tal sinergia de "ecosofia". Ela nos obriga a
ultrapassar a noção de sujeito para considerar a de comunidade. E nos
força, ainda, a alargar nossa visão do humano. Podemos, hoje, falar de
um "humanismo integral", isto é, de um humanismo que integra os diversos
elementos de sentido que, até agora, eliminamos.
"Retornamos a uma concepção do mundo
mais
'holística', na qual existe interação
entre o material e o espiritual.
Chamo tal sinergia de ecosofia"
Valor: Que novas ideias a respeito da sociedade podemos vislumbrar? Que nova noção de "social" começa a nascer?
Maffesoli: O que está em jogo não é simplesmente o
"social", mas o que eu chamo "o societal", pois remete a uma concepção
muito mais larga do humano. A sociedade de hoje nos força a repensar as
categorias que eliminamos a partir do cartesianismo do século XVII, da
filosofia das Luzes do século XVIII e dos sistemas sociais do século
XIX. Neles, o indivíduo era valorizado como uma entidade autossuficiente
e independente. Hoje, observamos o retorno de formas que imaginávamos
ultrapassadas, como o nomadismo, o tribalismo e o hedonismo. É o que
está em jogo no Facebook, no Myspace e nos blogs: uma nova inteligência
coletiva. Nesse sentido, podemos retomar a intuição profética de
Teilhard de Chardin, quando nos falou da "noosfera" [esfera do
pensamento ou do espírito]. A internet é certamente a noosfera
pós-moderna.
Valor: Você afirma que vivemos em um mundo
"reencantado", no qual a realidade (agora uma "super-realidade")
ultrapassa a ficção da teoria racionalista. Não haveria nessa
"super-realidade", porém, uma nova ficção?
Maffesoli: Uma das teses de Max Weber em relação ao
surgimento da modernidade é a de que ela nos conduziu a uma
"racionalização generalizada da existência", o que corresponde ao que
chamo de "desencantamento do mundo". Ao priorizar o racionalismo, o
desenvolvimento tecnológico e a sociedade industrial nos conduziram à
assepsia social. O que nos levou a um isolamento exacerbado e à solidão.
Hoje assistimos, porém, a esse movimento contrário de "reencantamento
do mundo". Trata-se de uma evolução que nos força a não mais reduzir a
"realidade" a uma dimensão puramente econômica e funcional. Mas nos
conduz, ao contrário, a um real muito mais largo e a uma concepção muito
mais integral da pessoa humana, e não mais do indivíduo. A pessoa -
"persona" - tem hoje muitas máscaras à disposição. O real é muito mais
rico do que a simples realidade.
"À semelhança das tribos tradicionais, as
tribos pós-modernas se encontram ao redor de seus
totens e se comunicam
através deles"
Valor: Você nos diz que a proliferação de
imagens nos leva a um "mundo do meio", que se situa entre o microcosmo
pessoal e o macrocosmo coletivo. Esse novo mundo intermediário agiria
como um instrumento de ligação e não de afastamento. Não pode haver aí,
no entanto, um retrocesso - ainda que calcado em um extraordinário
progresso tecnológico?
Maffesoli: A imagem pode ser, de fato, um
"mesocosmo", isto é, um meio entre o "microcosmo" pessoal e o
"macrocosmo" coletivo. Basta ver o papel que desempenham os videogames, a
publicidade, as imagens eletrônicas etc., para se dar conta de que não
podemos ter uma visão simplesmente racionalista do mundo. À semelhança
das tribos tradicionais, as tribos pós-modernas se encontram ao redor de
seus totens e se comunicam através deles. Enquanto a razão privilegiava
o que é íntimo, o retorno da imagem nos leva a compartilhar o
emocional. Não sei se é o caso de pensar em um avanço ou em uma
regressão. Parece-me que o que está em jogo pode ser representado pela
metáfora da espiral: o retorno das coisas antigas em outro nível.
Valor: A internet teria produzido uma nova concepção de laço social? Que novo modelo de sociedade está surgindo?
Maffesoli: Nas sociedades pré-modernas, prevaleciam
as histórias particulares ou "crônicas locais". Hoje vivemos o retorno
dessas histórias locais, que agora contam com a ajuda do desenvolvimento
tecnológico. Estamos no coração do que chamo de "tempo das tribos".
Assim como o desencantamento do mundo conduziu à solidão, o Facebook, o
Second Life etc., para o melhor e para o pior, recuperaram o "ideal
comunitário". Há nesse desenvolvimento tecnológico outra maneira de
viver o laço social ou, como acho mais adequado dizer, o "laço
societal". Isto é, chegamos a uma sociedade que enfatiza a relação com o
outro. E isso nos obriga a mudar nossa maneira de analisar a sociedade.
Não é mais o caso de ser otimista ou de ser pessimista, mas de observar
o mundo tal qual ele é.
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