A sedução provocada pelo luxo é uma das coisas mais democráticas que
existem. Não importa a classe social ou o nível cultural da pessoa: todo
mundo sonha com o seu quinhão do paraíso, seja ele representado por uma
Ferrari ou por um conjunto de sofás das Casas Bahia. O crime também tem
lá o seu apelo junto ao ser humano. Para alguns, andar fora da lei é
tentador. E são exatamente esses dois universos os temas centrais
abordados pela jornalista e escritora Angela Klinke em seu livro "Luxo
& Crime".
O ponto de partida do romance é a prisão, por sonegação fiscal, da
empresária Brigite Campos de Orleans. Ao lado da irmã Catherine, Brigite
é dona da Loja, um templo de consumo de artigos de luxo frequentado
pela nata da sociedade brasileira. Acostumadas à proteção de bons
advogados e de um tal Senador, as irmãs se veem pela primeira vez sendo
tratadas como meras cidadãs contraventoras. O episódio guarda
semelhanças com a Operação Narciso, deflagrada contra a empresária
Eliana Tranchesi (1955-2012), da Daslu, em 2005. A ação conjunta da
Polícia Federal, Receita Federal e Ministério Público na Daslu buscou
indícios dos crimes de lesão à ordem tributária. Eliana foi julgada e
condenada a 94 anos e meio de prisão por formação de quadrilha, fraude
em importações e falsidade ideológica, mas conseguiu habeas corpus.
"Luxo & Crime", no entanto, é ficcional, afirma a escritora.
"Brigite não é Eliana. Ela é uma caricatura de empresária do luxo", diz
Angela, que brinca o tempo todo com estereótipos.
Crimes dos mais variados vão surgindo a cada página, cometidos por
"peixes" grandes e pequenos. Aqui, não há personagens totalmente bons
nem totalmente ruins. Cada um quer defender o seu ponto de vista, seu
"way of life". Fatos e ficção vão se misturar durante todo o desenrolar
do romance, que também envolve uma blogueira de moda consumista, um
jornalista, uma manicure com mania de grandeza e uma morena misteriosa
que aparece morta durante um coquetel na Loja. "Luxo & Crime" é, em
última instância, um livro de negócios que não publica balanços nem
apela para a autoajuda, diz a autora. Mas que mexe com verdades e
futilidades estabelecidas - sem perder o bom humor.
"O mercado de luxo é novo no Brasil e
essa história ainda está sendo escrita",
afirma a autora,
que lança seu primeiro romance."
Nada maniqueísta, o primeiro romance da jornalista, que foi editora de "Comportamento" do Valor
e atualmente é colunista do caderno "Eu&", mostra que nem todo
pobre é coitado e nem todo rico merece o inferno. Todo mundo comete
"pecado, logo assim que a missa termina". Faltar com a ética, querer
levar vantagem, chantagear, cobiçar, mentir e trair são atitudes nada
nobres que podem ser tomadas por qualquer indivíduo. Basta haver
oportunidade e uma mente propensa à contravenção. "Sempre quis evitar o
olhar paternalista", diz Angela, que considera a Operação Narciso um
caso emblemático ao expor esse setor da economia e mobilizar a opinião
pública de forma geral. Mas enquanto uma parte dela saiu em defesa da
elite - exaltando o seu viés agregador de riquezas para o país -, outra
parte depositou nos empresários e consumidores de artigos de luxo a
culpa por todo o mal.
No livro, as inversões de valores e o preconceito nas visões que a
elite e os marginalizados têm entre si resultam em momentos divertidos.
A empresária Brigite, por exemplo, não entende por que deveria pagar
os impostos de importação se mantém em dia os direitos trabalhistas de
seus funcionários - o que inclui um ótimo plano de saúde. A manicure
Dulcecleide julga-se empreendedora e não vê nada demais em comprar
bolsas pirateadas para vender às amigas do bairro. Já o experiente
jornalista Ernesto Leon ("sujeito de paletó com ombreiras gigantes")
sente náusea só de pensar em colocar os pés - e o gravador analógico -
em uma butique de luxo. "Gente besta não merece ser ouvida", pensa o
jornalista da fictícia revista "Cenários", com a mente cheia de ideias
preconcebidas sobre um mundo que nunca frequentou (e que daria o seu
prêmio Esso para não frequentar). Outra boa criação é a peculiar e
improvável dupla de jornalistas investigativos formada por Ernesto e
Lulu Peçanha (a blogueira bem-nascida).
Outro ponto interessante do romance é o fato de narrar estratégias e
curiosidades que rondam a indústria do luxo - e que foram tão bem
retratados em livros como "Casa Gucci", de Sara Gay Forden, e "Gomorra",
de Roberto Saviano, ambos citados pela autora. Por conhecer os meandros
desse segmento, Angela acaba também esclarecendo como ele funciona no
Brasil, país onde consumidores parcelam bolsa de grife no cartão de
crédito. Um exemplo: o personagem que compra a Loja, para livrá-la da
ruína, é um usineiro. Não por acaso. Mas porque esse é um setor que
tradicionalmente se beneficiou da anistia fiscal - e impostos, como
sabemos, é o fantasma que tira o sono do empresariado do varejo de luxo
no Brasil.
A blogueira de moda também não foi retratada à toa. Ela representa
uma categoria que é, atualmente, a principal ferramenta de marketing das
grifes que estão chegando ao mercado. Com seus posts (e alguma
publicidade disfarçada), elas dão aval às grifes, tornando-se
"embaixadoras" e agregando seguidoras. Em "Luxo & Crime", até a
pirataria surge com outros contornos, para mostrar que, atualmente, uma
cópia não é somente isso: há uma hierarquia de artigos mais ou menos
benfeitos, para agradar consumidoras com diferentes níveis de poder
aquisitivo. E que nem mesmo as marcas mais exclusivas, como Goyard e
Hermès, estão livres de figurar nas barraquinhas da rua 25 de Março -
para orgulho daqueles comerciantes de olhos puxados que não raramente
erram na pronúncia dos nomes franceses.
"O mercado de luxo é novo no Brasil e essa história ainda está sendo
escrita", afirma a jornalista, que consegue esmiuçar o setor sem cair no
didatismo exagerado. Em alguns momentos de "Luxo & Crime" fica
difícil adivinhar o que é ficção e o que é fato. E parte da graça está
exatamente nisso: tentar desvendar o quão absurdo e fascinante é esse
universo de bilhões de euros e vários foras da lei.
"Luxo e crime"
Angela Klinke.
Leya, 192 págs.,
R$ 34,90.
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Reportagem Por Vanessa Barone | Para o Valor, de São Paulo
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