Miguel Sanches Neto*
A biblioteca do crítico é composta essencialmente por ferramentas de
trabalho, livros de referência, ensaios e historiografia. Mais de dois
terços dela são desses utilitários, tão fundamentais para o ofício
exercido por alguém que nunca entendeu a internet.
1. Assim, temos a primeira definição do crítico: é alguém que pensa o livro.
Escrevendo artigos semanais, com pequenas interrupções, de 1942 até o
fim de 2009, passou pelo crítico quase toda a literatura brasileira
válida do período. E o verbo passar aqui é terrivelmente exato. O
crítico não guardava os livros. A sua biblioteca maior, constituída até
1992, quando ele se aposentou nos Estados Unidos, foi vendida para a
Universidade de Princeton. O crítico retornou leve à cidade de sua
infância.
Dessa biblioteca imensa restou apenas um livro que ele recebera de
presente de seus contemporâneos de escola: a 13ª edição de "Os Sertões"
(Livraria Francisco Alves, 1936), de Euclides da Cunha. Diz a
dedicatória coletiva: "Pro nosso colega, este evangelho do Brasil - a
ser manuseado toda a vida, e meditado pelas gerações de agora - que,
movidos pela amizade que sempre nos irmanou, nós lhe oferecemos de
coração. Em 29 de novembro de 1937". Mas esse não é um exemplar de
colecionador, é a célula primeira de uma coleção e de seu pensamento.
2. Temos aqui uma segunda possibilidade de definição: crítico é o profissional que guarda os livros em seus artigos.
Ele, portanto, não precisava mais das obras depois de encontros
marcados pela alta rotatividade. E só lhe restava descartá-las. Nas duas
últimas décadas, o crítico as doava mensalmente à biblioteca pública,
pois choviam livros de forma torrencial em seu pequeno escritório. Os
volumes chegavam e logo partiam, lidos ou virgens, mas todos acabavam de
alguma forma retidos, ou nos artigos ou nos fichários implacáveis que
desenhavam nosso ano literário.
Leitor severo, lia com uma caneta vermelha na mão, destacando
principalmente as passagens das quais discordava. Afundava a caneta no
papel, fazendo apenas dois tipos de intervenção: um asterisco nas
margens ou o grifo de um trecho curto. Poucas anotações, nenhum
comentário, e a tinta vermelha interferindo na paisagem da página.
O crítico lia muito na cama, à noite, tendo criado ironicamente um
método de julgamento: "Se eu não dormir é porque o livro é bom". Não
consta que ele sofresse de insônia.
E seus artigos saíam com tudo o que ele pensava sobre a obra que
acompanhara durante parte da noite e que ele depois terminara de ler
durante o dia, já no escritório. Amenizava os elogios - erra-se mais
elogiando -, mas era implacável (com o livro) na hora das restrições:
nunca deixe suas críticas sugeridas, diga-as com todas as palavras, pois
o estrago é o mesmo.
3. Uma terceira definição se anuncia: é crítico quem não respeita esta entidade divinizada chamada livro.
Esse desrespeito é necessário para quem quer respeitar a literatura.
Muitos exemplares da bibliotequinha do crítico estão estropiados, com
a encadernação destroçada. Ele abria os livros sem nenhum medo de
estragá-los. Ele escrevia seus artigos sem nenhum medo de desagradar.
Recebia com um sorriso jovial as reações ofensivas. Não as comentava,
já estava produzindo mais um texto, ocupando-se com outras obras.
4. E nova definição se impõe: a crítica é a arte de ser empurrado para frente; e o crítico, o andarilho das letras.
Triste definição essa para o crítico, que sofria de paralisia
infantil. Ele só podia andar pela cidade das letras, ficando a maior
parte do tempo em casa. Se ele pouco se movia, a fila de livros era
sempre outra a cada dia.
Na sua pequena biblioteca, um terço dos livros era de literatura
criativa. Ali estavam os autores admirados pelo crítico; alguns volumes
com dedicatórias, outros enviados diretamente pelas editoras. É a área
afetiva. Livros retidos, que não serviam para consulta, que já tinham
sido lidos e, no entanto, continuavam ocupando as prateleiras pequenas e
exigentes. Nelas, não há raridades bibliográficas. Ele doou, por
exemplo, a primeira edição autografada de "Grande Sertão: Veredas", de
Guimarães Rosa. E nunca teve o menor remorso. Não comprava livros
difíceis, usando os exemplares das bibliotecas.
5. E eis outra definição provisória do crítico: é quem possui poucas
prateleiras, administrando quais títulos merecem habitá-las.
Com um método tão rigoroso, não tendo sido nunca uma pessoa emotiva
(a primeira pessoa do singular para o crítico é obscena), ele guardou os
livros de alguns amigos. Sim, mesmo um crítico impiedoso teve um ou
outro amigo.
Companheiro da revista "Joaquim" (Curitiba, 1946-1948), alguns livros
recentes de Dalton Trevisan estão em sua biblioteca. No exemplar de "Em
Busca de Curitiba Perdida" (1992), na sua letrinha miúda, e num estilo
telegráfico, Dalton escreve: "Com os melhores votos de seu velho amigo".
Era uma tentativa de reconciliação. Nos últimos anos, eles não se
conversavam.
6. Mais uma definição: o crítico é alguém que tem dificuldade de fidelizar amigos.
Mas isso pode acontecer. As dedicatórias de Lygia Fagundes Telles
vertem mel para o crítico e sua mulher, memória talvez de encontros
antigos, quando eles frequentavam de passagem uma ou outra roda
literária em São Paulo. Em "A Noite Escura e Mais Eu" (1995): "O abraço
de muito bem-querer, todo o carinho! A Lygia".
Mais insistentemente agradecidas são as dedicatórias de Rubem
Fonseca, que também se referem à mulher do crítico. Rubem repete a mesma
dedicatória em dois livros - "A Confraria dos Espadas" (1998) e "O
Doente Molière" (2000): "Ao meu descobridor, com amizade e admiração". O
primeiro artigo sobre Rubem foi feito pelo crítico.
7. Tentemos melhorar a definição: crítico é quem tem a coragem de reconhecer os talentos antes de todos.
Outra presença central nessas prateleiras estreitas é a de João
Antônio. Seus livros trazem dedicatórias que também atestam o papel do
crítico na consolidação de sua obra, como em A Dama do Encantado"
(1996): "Mestre, que dá incentivo e acompanha este pessoal desde o seu
surgimento, em 1963. Com o abraço de seu leitor". Aqui, o valor está no
fato de ele - tido como um conservador - dar atenção a esses seres
marginais desde o surgimento do escritor.
8. E aí temos mais uma variação: crítico é quem acompanha longamente a produção literária.
São poucos os escritores que entraram nessa biblioteca afetiva - como
Alberto da Costa e Silva, Ivan Junqueira, Affonso Romano de Sant'Anna,
Luiz Antônio de Assis Brasil, Moacyr Scliar. Eram os amigos a distância,
pois o crítico pouco saía e não era nada expansivo com quem o procurava
ao vivo ou por telefone.
9. O crítico é um amigo da literatura e não dos autores, algo impensável nesta era relacional.
Menos de três anos depois de tudo, ainda não é possível pronunciar o nome do crítico - tão esquecido na morte quanto na vida.
10. Última definição: só é crítico quem aceita ser invisível.
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* Miguel Sanches Neto é ficcionista, autor, entre outros, de
"Chove Sobre Minha Infância", "Um Amor Anarquista" e "A Primeira Mulher"
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