Arnaldo Jabor*
Na época de Eisenhower, morei nos USA e estudei numa
"high school" no coração da "América profunda", em Saint Augustine,
Flórida, a cidade mais antiga do país.
Era a época da "geração silenciosa" do pós-guerra. Foi nos
"gloriosos" anos do racismo. Nunca tinha visto o 'reacionário'
fundamental, básico, sólido. Lá, eu vi de perto o mundo psíquico dos
republicanos. A Flórida tem mais direitistas que jacarés. Os
republicanos típicos são filhos de um deus duro e implacável. As caras,
as fuças típicas dos republicanos parecem dizer: "Não tenho dúvidas, não
quero ouvir, já sei tudo, Deus me disse...!" Exatamente como os
'jihadistas' que querem bombardear.
Depois, veio o Kennedy, moderno, com mulher chique, que governou até
63, quando uma bala virou sua bonita cabeça numa massa sangrenta. Ficou
Lyndon Johnson, um medíocre vice democrata, pré-Nixon. Depois, o irmão
Bob Kennedy, que certamente seria eleito, foi assassinado na frente das
TVs do mundo todo em 68. Em seguida, tivemos o Nixon, que cai em 74,
sucedido pelo frágil Jimmy Carter que preparou a chegada dos
republicanos Reagan e Papai Bush, até a "era dourada" do Clinton, que
acabou desmoralizada pelos lábios da Monica Lewinsky, histérica e
republicana, no mais trágico "boquete" da história ocidental.
Agora, diante das eleições próximas, olho Obama - homem raro,
profundo, que aponta os melhores caminhos para a América - e me
preocupo: será que os americanos vão reeleger um negro intelectual ?
Será que ganha o racismo oculto, recôndito, a KKK na alma dos "wasps" e
malucos dos "tea parties"?
Digo isso porque vi o racismo americano de perto. Saint Augustine era uma cidade igual àquela do Truman Show.
Os ritos sociais, os gestos cotidianos, os sorrisos e lágrimas, tudo
parecia programado por uma máquina obsessiva. A vida e morte eram
padronizadas: abraços gritados, torcidas histéricas no beisebol,
alegrias obrigatórias, intensa religiosidade, tudo girando num carrossel
de certezas absolutas.
Só uma coisa estava fora da ordem: os negros. Era outra América
dentro da cidade. No ônibus amarelo do colégio, eu via meus colegas
louros, ruivos e brutos berrando contra os negros que passavam: "Hey,
nigger, por que teu nariz é tão chato?" "Hey, nigger, por que teu cabelo
é pixaim?" Os negros ouviam de cabeça baixa, o rosto torcido de
humilhação, num ódio sufocado. Amontoavam-se no fundo dos ônibus, em pé,
mesmo com os carros vazios, e moravam num bairro sujo de madeira e
terra. Eu me espantava com aquela ausência total de compaixão, eu que
vinha de babás negras me beijando. Os pobres segregados eram tristes,
trêmulos e esfarrapados, obesos e deprimidos, com frágeis mulheres
engelhadas e crianças assustadiças.
Os brancos da cidade me amedrontavam, a violência dos alunos me
assustava. Vi brigas de ferozes galalaus se arrebentando até o sangue no
focinho e o desmaio, onde nem os diretores do colégio podiam
interferir. Eu era um "nerd" comprido e meio bobo nos meus 15 anos e me
chocava com as botas de caubóis marchetadas de estrelas de prata, com as
facas de onde a lâmina pulava, os casacos de couro negro que já vestiam
a "juventude transviada" - uma rebeldia reacionária e "republicana".
O ídolo da época era Elvis Presley rebolando na TV. Pairava um clima
de intolerância entre os próprios brancos; eram os fortes contra os
fracos, as meninas bonitas contra as feias, as sérias contra as
"galinhas" que eram comidas nos "drive-ins", dentro dos carros
envenenados, os "hot rods", e depois cuspidas para a humilhação
coletiva. As rivalidades eram vingativas e duras.
Eu, turista tropical, tímido e fraco, provocava-lhes um respeito
cauteloso por ser estrangeiro e os machões me poupavam porque eu lhes
dava "cola" em "spelling", soletrando palavras de raiz latina para eles.
Mas, existia no ar um perigo desconhecido; dava para sentir que a
solidez de certezas, se rompida, provocaria um grave desastre. Eu
navegava naquela cultura obsessiva e, bem ou mal, conseguira namorar
Melinda Mills, pálida filha loura de um ex-marine que estivera no Rio e
me mostrou um cartão-postal do Mangue com suas palmeiras, onde ele
certamente conhecera a zona e as 'polacas'.
Até que, um dia, chegou a notícia terrível: tinha subido aos céus o
satélite russo, o Sputnik, girando como uma bola de basquete em órbita
da Terra.
Foi indescritível o pânico na cidade. Desde 49, com a explosão da
bomba H pelos soviéticos, destronando a liderança dos destruidores de
Hiroshima, os americanos esperavam outra catástrofe, que viria como um
filme de terror tipo A Invasão dos Feijões Gigantes.
Em minutos, a cidade parecia um campo de refugiados, de perdedores
humilhados pelos comunistas no espaço. No colégio, começaram "fire
drills" incessantes, alarmes evacuando os alunos para porões e abrigos
atômicos. O então senador Lyndon Johnson berrou: "Brevemente estarão
jogando bombas atômicas sobre nós, como pedras caindo do céu..." No
alto, o satélite Sputnik humilhava os americanos, com seus "bip bips",
soando como gargalhadas.
A partir desse dia, os colegas passaram a me olhar de lado.
Transviados e 'porradeiros' me investigavam com perguntas: "Que você
acha? Teu país gosta dos russos?" Eu tremia e escondia minha vaga
admiração pelo socialismo. Eles me olhavam desconfiados: 'Brasileiro,
latino, sabe-se lá?'
Depois disso, não me pediam mais 'cola'. O pai de Melinda, putanheiro
do Mangue, mal me cumprimentou de sua poltrona esfiapada. Melinda ficou
mais pálida e nosso namoro definhou.
Por isso, hoje vejo o Obama, esguio, mulato, de elite, lutando contra
o sutil 'racismo' que vai além da cor da pele. Esse 'racismo' está
também na desconfiança do 'novo', do 'diferente', da distribuição de
riquezas para todos. O mundo vai mudar. Obama ou Mitt? Quem dá mais? A
inteligência que resiste à estupidez ou aqueles 60 milhões de idiotas
que elegeram o Bush na fraude do século, na Flórida. Será que vão
repetir tudo?
Se Mitt ganhar, o mundo será derrotado.
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* Jornalista. Cineasta. Cronista do Estadão. Escritor.
Fonte: Estadão on line, 25/09/2012
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