MARIA CELINA D'ARAUJO*
Cientista política reflete sobre as avaliações em andamento dos fatos políticos que redundaram no que se chamou 'mensalão'
Desde que o País se redemocratizou, a importância do
conhecimento dos cientistas políticos cresceu e sua presença na mídia
também se tornou mais constante, especialmente em momentos eleitorais ou
de possíveis crises políticas. Passaram a estudar com mais rigor e mais
recursos metodológicos o comportamento político do eleitor, o
desempenho dos partidos nas urnas e no Congresso, impactos do sistema
eleitoral sobre o sistema partidário, geografia do voto, possíveis
reformas eleitorais e partidárias e seus impactos na qualidade da
representação, etc. Temas não faltam e creio que estamos fazendo isso
muito bem. No entanto, quando se trata de fazer previsões, os cientistas
políticos, assim como os economistas, passam por situações vexatórias e
humilhantes. Isso é parte do ofício das disciplinas que lidam
diretamente com as resultantes da ação humana que são, por definição,
imprevisíveis.
A ciência política tem como objeto o poder, que, como diz Maquiavel, é
tema referido à ação humana: "A política é coisa dos homens como eles
são", ou seja, capazes de patifarias e ações generosas conforme suas
habilidades para lidar com circunstâncias, adversidades, desejos de
poder e valores.
Dito isso, quero refletir sobre a avaliação em torno dos fatos
políticos que redundaram no que se chamou mensalão. Não faço previsões
nem ilações de causa e efeito e não ouso falar do desempenho do
Judiciário. Metodologicamente limitada a refletir a posteriori, procuro
entender argumentos usados por meus colegas e analistas políticos em
geral que se posicionam de maneira favorável ao governo do ex-presidente
Lula da Silva e ao PT. Entre eles, destaco seis.
Lula não sabia. Num primeiro momento houve o argumento quase unânime
de que, se fatos estranhos ocorreram no financiamento da campanha do PT
em 2002, o presidente deveria ser poupado, pois tudo teria se passado à
sua revelia. A começar pelo denunciante, Roberto Jefferson, o presidente
era pessoa honrada e deveria ser deixada à margem desses fatos. Em
entrevista ao Aliás em 10 de julho de 2005, defendi que, a julgar pela
história de nosso presidencialismo a partir de 1946, era impossível
imaginar que qualquer operação política de grande vulto, envolvendo
empresários e uma grande rede de partidos, pudesse ser feita sem o
conhecimento do presidente em exercício.
O mensalão nunca existiu. Essa afirmação persistiu ao longo do
processo. Teria sido uma invenção da oposição e da "imprensa golpista".
Cientistas políticos comprovaram que, a julgar pela trajetória do
comportamento dos partidos no Congresso, nada indicaria a compra de
votos. De fato, o Executivo continuou aprovando seus projetos com as
altas taxas de sucesso que tivera desde o governo Itamar: desde então,
cerca de 95% dos projetos aprovados pelo Legislativo têm origem no
Executivo. Foi nesse compasso que se votou a emenda da reeleição
proposta pelo ex-presidente Fernando Henrique, recorrentemente lembrada
como uma vitória à custa da compra de votos.
O que o PT fez não tem nada diferente. Nesse caso, trata-se de um
direito adquirido pela classe política de usar privadamente recursos
públicos. Corrupção e negociatas seriam prática comum no Brasil. Por que
fazer do PT a única vítima de uma prática que tem consentimento
generalizado? Explica-se que a crítica deriva do elitismo dos que não
querem reconhecer os inegáveis avanços sociais do País desde 2003. Seria
uma vertente da conspiração das elites, mas com a reafirmação cínica de
que "se todos roubam, por que o PT não pode?" Alguns parlamentares do
PT chegaram a afirmar que, como aprendizes, não souberam fazer isso tão
bem quanto os partidos mais experientes.
O mensalão não tem impacto nas eleições, pois o povo não se interessa
por esses assuntos. Se tem ou não impacto, não me cabe avaliar, não é
minha expertise, se alguma tenho. Preocupante é aceitar com naturalidade
que o eleitor não leve em conta temas éticos. De todos os argumentos
que tentaram minimizar a importância do mensalão, esse me parece o mais
grave. Foi muito acionado no início da campanha pelos governistas mais
otimistas, embora, depois, o tom tenha mudado um pouco. O que importa é
que foi um argumento corriqueiro que faz supor que o Brasil possa ser
mesmo um país de gente moralmente indolente. No entanto, à medida que a
candidatura de Celso Russomanno à Prefeitura de São Paulo avançou nas
pesquisas, esses mesmos analistas sentenciaram que o eleitor se tornou
um consumidor mais exigente. Pelo menos isso.
Lula passará imune a todo o processo. As teses a esse respeito vão em
duas direções: sua liderança pessoal é inabalável e o lulismo veio para
ficar. Se lulismo significa mais justiça social, é desejável mesmo que
continue. As democracias modernas, contudo, supõem revezamento de
líderes e partidos no poder. Momentos de baixa acontecem com líderes e
organizações partidárias sem que isso signifique seu ocaso.
Há golpismo no ar. Governistas e analistas simpatizantes do governo
têm insistido nesse ponto. Há golpismo da direita contra os avanços nas
políticas sociais do PT, e o PIG, "partido da imprensa golpista",
leia-se toda a grande imprensa, estaria ao lado dos conservadores.
Segundo a nota dos partidos da base (20/09) em apoio ao ex-presidente,
nem o STF escaparia: seria parte da trama que visa a "golpear a
democracia e reverter as conquistas que marcaram a gestão do presidente
Lula". Há uma entidade vigorosa no ar: os golpistas. A oposição também
bate firme nessa tecla quando insiste que o PT pode acionar qualquer
mecanismo não republicano para se manter no poder. Tendo em vista essas
suspeitas generalizadas sobre golpes e golpismo, só resta concluir que a
qualidade da democracia no Brasil ainda deixa muito a desejar.
Um argumento adicional presente entre os militantes do PT é o de que o
mais importante nas eleições de 2012 seria derrotar os tucanos em São
Paulo. São Paulo, de fato, é um caso de pouca rotatividade no poder
desde 1982. No entanto, os governos, lá e alhures, são escolhidos por
cidadãos que precisam ser respeitados em suas escolhas.
Estou relendo Sociologia dos Partidos Políticos, de Robert Michels,
que em termos de realismo político chega a ser mais cruel do que
Maquiavel. Baseado em sua experiência no partido alemão da
social-democracia, do início do século 20, afirma que "à medida que a
organização (o partido operário) cresce, a luta pelos grandes princípios
se torna impossível". Impossível? Não, claro que não. Mas certamente é
uma tarefa à qual os partidos que se dizem programáticos precisam dar
mais atenção.
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* DOUTORA EM CIÊNCIA POLÍTICA; É PROFESSORA DA PUC-RIO - O Estado de S.Paulo
Fonte: Estadão on line, 30/09/2012
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