sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Um caminho para dentro

 

Perguntado em 1972 sobre o significado da Revolução Francesa, o então primeiro-ministro chinês, Chou En-lai, teria dito que ainda era muito cedo para tirar conclusões. Passar ao extremo oposto e arriscar-se a prever, no calor dos fatos, a evolução prospectiva do impressionante "cluster" de transformações hoje em curso no mundo, como proposto pelo Valor, requer que o leitor nos conceda uma licença para podermos especular livremente sobre o amanhã.

De fato, a segunda década do século XXI começa em meio a tamanhas transformações nos planos econômico, tecnológico, social e político que em tudo sugere se tratar do início de uma nova era na história mundial.

Primeiramente, a longa e sustentada ascensão da China rumo ao posto de maior economia do mundo (que deve ocupar ainda na presente década) vem deslocando competidores e atraindo parceiros complementares, com consequências que ainda estão, em grande medida, por vir. De um lado, cabe saber se a expansão continuada, os desequilíbrios inerentes ao crescimento e a necessidade de rebalanceamento da economia chinesa culminarão em "pouso suave" ou "aterrissagem" forçada. Por outro lado, é igualmente importante saber se, no caso de manutenção do seu crescimento, a acomodação do novo gigante (juntamente com outros emergentes de peso) no mercado mundial se dará por intermédio dos mecanismos de mercado ou por meio do jogo político e, eventualmente, militar. Em outras palavras, o deslocamento do centro hegemônico do Atlântico Norte para o Pacífico Norte se dará de forma negociada ou conflitiva?

Em segundo lugar, à crescente importância de novos atores na economia mundial se sobrepõs, e por razões independentes, a crise financeira internacional iniciada em 2008 nas economias mais ricas do planeta. O que parecia ser apenas uma crise financeira, ainda que bem mais profunda do que as de momentos anteriores, acabou se revelando uma crise de múltiplas dimensões - fiscal, produtiva, social e política - que está pondo em questão muito mais do que o conjunto de regras que regem as relações econômicas e políticas internacionais, o próprio modelo de capitalismo dos últimos quarenta anos.

É vital construir e fortalecer capacidade de resistência e participar dos fóruns políticos 
externos relevantes

O imbróglio europeu, hoje o ponto nevrálgico da crise internacional, encerra, para além de todas as questões relativas às suas implicações financeiras, fiscais e de crescimento para a economia mundial, uma questão crucial para a governança mundial: quais as chances de sucesso de um modelo de federalização na Europa, com solidariedade e compartilhamento de custos e benefícios?

Não bastassem as incertezas associadas aos fenômenos acima referidos, é possível detectar, sob a superfície econômica, outras quatro transformações igualmente relevantes.

Primeiro, mudanças no plano da tecnologia, que revolucionam, mais uma vez, a forma de produzir, distribuir e apropriar-se dos ganhos do progresso técnico. A crescente conectividade possibilitada pelas tecnologias de informação e comunicação (TICs) amplia acesso e diminui custos de informação. Estas mesmas tecnologias, associadas com a biotecnologia e a nanotecnologia, trazem implicações as mais diversas: ampliam a longevidade das pessoas, podem ser fontes essenciais de resolução dos problemas climáticos e, no âmbito da produção, rompem o "império da padronização" ao permitir a produção customizada em massa, algo que constituiria uma contradição há apenas alguns anos. Um exemplo apenas: nem bem a China se tornou a "fábrica do mundo", e uma nova onda de inovações - melhoria e barateamento da robótica e processos aditivos, como a impressão em 3D - pode colocar de ponta cabeça as fontes de vantagens competitivas baseadas em custos, redefinindo critérios de decisão de localização industrial.

Segundo, quando os preços dos combustíveis fósseis, puxados pela voracidade da demanda chinesa e pelas perspectivas de reduzido crescimento de longo prazo da oferta, se localizaram em patamares históricos muito altos, surgem novas fontes não convencionais de petróleo e gás ("shale oil and gas"), a partir de tecnologias que viabilizam extração eficiente e ampliação quase ilimitada da oferta de petróleo a partir de um preço teto de US$ 70 por barril. As consequências geopolíticas deste contexto não deverão ser pequenas.
Terceiro, é a emergência, bem conhecida no Brasil, de uma nova classe média, decorrente da inclusão de milhões de consumidores aos mercados. Porém, o legítimo crescimento da demanda por bens e serviços destes consumidores implica forte pressão sobre recursos e sobre o ambiente. Não está claro se os produtores destes bens e serviços estarão preparados para adaptar e inovar processos para garantir a sustentabilidade do planeta, de forma tempestiva, e se, em caso contrário, esta via de expansão do consumo e da economia mundial será posta em xeque.

Por fim, para além da realidade econômica e tecnológica, o mundo vem sendo sacudido por movimentos populares, entre os quais destacam-se a Primavera Árabe e as manifestações dos "indignados". As implicações sociais e políticas destes movimentos ainda não estão claras e os encaminhamentos de respostas às múltiplas demandas não estão dados. Que formas de representação de interesses prevalecerão? Que bens públicos serão relevantes no futuro?

Em suma, cada uma das transformações aqui referidas já seria, isoladamente, capaz de gerar uma grande indeterminação sobre o futuro do planeta. Todos juntos, nos colocam diante de uma espécie de marco zero, a partir do qual a pluralidade de possíveis caminhos é fascinante e, a despeito da perplexidade que podem a princípio gerar, não devem inibir a reflexão.

Com esse espírito, desenhamos dois cenários extremos para os próximos 15 anos, sabendo quão imprecisos tais exercícios são. O objetivo é colocar balizas, definindo um intervalo dentro do qual imaginamos que a realidade possa vir a se situar e buscando definir o que denominamos de "espaço Brasil", isto é, os contornos e os pontos de atenção de um possível caminho para o médio e o longo prazos.

Reforma e crescimento lento
O primeiro cenário considera soluções mais calcadas em reformas do que em rupturas. Nos EUA, um ambiente pós-eleitoral mais favorável a compromissos políticos permitiria evitar o abismo fiscal. Neste contexto, a lenta retomada do crescimento e a queda do desemprego iriam progressivamente avançando para uma verdadeira recuperação, revigorada, inclusive, por avanços no campo tecnológico. Na China, o crescimento seria bem mais lento do que o do passado recente, mas com uma guinada bem-sucedida do modelo de crescimento para o mercado interno. Na Europa, após os sucessivos fracassos de soluções parciais (e recessivas), as lideranças políticas terminariam por renovar e aprofundar o pacto de integração, evoluindo para a construção de uma federação que seria iniciada pela reestruturação das dívidas públicas dos países da periferia e passos firmes na direção da união fiscal e bancária.

Temos condições políticas e ativos e competências acumulados para resistir a um ambiente externo hostil?
 A resposta é "sim"

O mundo cresceria pouco durante um período longo, mas as relações internacionais seriam reconstruídas em novo sistema de hegemonia compartilhada entre EUA e China, não se podendo, entretanto, descartar a influência da Europa. Aí se lograria conciliar interesses e exercer liderança suficiente para estabelecer regras de jogo, crescentemente previsíveis e confiáveis, nos campos comercial, financeiro, ambiental e político-militar. Estaria então estabelecida uma nova Pax no plano das relações econômicas internacionais.

Pelo lado da concorrência, a consolidação de empresas dos países emergentes e a sobrevivência das empresas dos países avançados, num mercado mundial que ainda estaria crescendo pouco, pelo menos por muitos anos, levaria a um ambiente de competição feroz. Não surpreenderiam, portanto, uma ou mais rodadas de consolidação patrimonial em vários setores. Mas surgiriam, eventualmente, para aqueles que se preparassem adequadamente, oportunidades importantes derivadas das novas tecnologias e da retomada progressiva dos mercados de consumo dos países ricos e da contínua expansão dos mercados de países emergentes.

Ruptura e degradação
O cenário alternativo, em que as transformações em curso levariam a rupturas, é mais difícil de conceber. Desastres históricos são menos frequentes e menos sistematizáveis do que reformas e recuperações. Rupturas destroem referências e analogias com processos prévios, dificultando a tarefa de estabelecer pontes com o passado e desenhar novas configurações e suas resultantes.

Por oposição ao cenário de reforma e crescimento lento, o de ruptura e degradação combinaria a fragmentação da Europa com o desaparecimento do euro, o "hard landing" chinês com fracasso da política de mercado interno e a crescente polarização ideológica nos EUA com um "double dip" na economia. Um cenário que combina três catástrofes estruturais tem uma certa lógica: a ruptura em uma das regiões deteriora o quadro internacional (por exemplo, via contração do comércio, crise financeira etc.), o que faz aumentar a probabilidade de que outras regiões entrem também em crises traumáticas.
A característica central deste cenário é a prevalência de conflitos. Em cada país, conflitos sociais e políticos se aguçariam; talvez de forma explícita em países em desenvolvimento, enquanto que, nos países avançados, a riqueza e bem-estar aí acumulados poderiam eventualmente permitir maior capacidade de resistência a conflitos abertos, a despeito das crescentes diferenças sociais. No concerto das nações, as instituições e fóruns de negociação e pactuação entrariam em crise existencial. Entre países, seria frequente o uso de instrumentos não econômicos para defender interesses nacionais, numa reprodução do quadro de "políticas de arruinar o vizinho" dos anos 20 e 30 do século passado. Nenhum país ou grupo de países seria suficientemente poderoso e influente para exercer papel hegemônico, e estabelecer regras para o jogo econômico e político mundial, de forma a reverter o quadro de beligerância.

A concorrência teria natureza predatória: os países, ansiosos por investimentos, relaxariam padrões e regulações. Para sobreviver, as empresas degradariam padrões de governança e buscariam fontes de insumos, matérias-primas e trabalho, sem preocupação com a sua sustentabilidade. O progresso técnico continuaria avançando, mas a sua difusão se daria de modo mais seletivo, para empresas e estratos econômicos privilegiados, o que aprofundaria os hiatos de competência e de acesso a novos bens e serviços.

É evidente que, em algum momento, se atingiria o fundo do poço e a reconstrução da economia mundial seria deflagrada por algum processo político-econômico, cuja natureza é difícil prever. O que importa, sim, é que se tal cenário - ou algo próximo a ele - se materializar, as alavancas do crescimento, inclusive o brasileiro, estarão severamente comprometidas.

Espaço Brasil
Quais os espaços para o Brasil, tendo como referência as duas balizas acima descritas?
Como ponto de partida, é claro que o Brasil não passará incólume pelas vicissitudes do quadro internacional. Portanto, é vital, por um lado, construir e fortalecer capacidade de resistência e, por outro, participar ativamente dos fóruns políticos externos relevantes para evitar o cenário de ruptura e degradação. A pergunta que se segue é: temos condições políticas e ativos e competências acumulados para resistir a um ambiente externo hostil?

A resposta é "sim". O país acumulou trunfos que, se bem usados, permitirão mitigar as consequências de um cenário externo de degradação e aproveitar as oportunidades de um cenário de recuperação lenta para manter o curso de seu desenvolvimento. A capacidade de resistência aumenta, porém, se o Brasil enfrentar pendências fundamentais.

A eventualidade de ocorrência de um cenário externo menos desfavorável não pode trazer consigo 
a tentação de um caminho "fácil"

Começando pelas últimas, são quatro as pendências que devem ser enfrentadas: (a) mais produtividade para enfrentar um ambiente de intensa competição e para viabilizar um crescimento elevado, a despeito do baixo crescimento da força de trabalho, resultante da nova dinâmica demográfica; (b) mudanças na estrutura industrial, na direção de setores tecnologicamente mais avançados; (c) introjeção da sustentabilidade sócio-ambiental na conduta e rotina dos atores econômicos; (d) ampliação da capacidade de oferta de financiamento de longo prazo, a partir de fontes internas de recursos e com um forte envolvimento da indústria privada. Um destaque: todas estas pendências exigirão muita competência das pessoas, das empresas e do Estado. Competência é o ativo propulsor de produtividade, de geração de novos bens e serviços e de bem-estar.

São quatro também os trunfos acumulados a serem fortalecidos: (a) o amadurecimento da democracia e o fortalecimento das instituições, que podem sustentar um projeto de desenvolvimento de longo prazo; (b) a consolidação de políticas econômicas que garantem a estabilidade e alongam o horizonte de decisões; (c) a bem- sucedida política de rendas, que, além de promover a inclusão econômica e social, ampliou e tornou atrativo o mercado interno e, mais importante, criou um espaço de aspiração de progresso para a maioria da população; (d) a crescente efetividade de políticas pró-investimento, tanto para o curto prazo - orientadas para a diminuição de custos - quanto para a ampliação da oferta de serviços, bens e, principalmente, infra-estruturas.

O Brasil pode seguir uma trajetória de desenvolvimento puxado pela demanda interna (consumo e investimentos em energias e infra-estruturas) e externa (onde mantivermos vantagens) e induzido por políticas. Estas podem ser as âncoras para as expectativas empresariais, de forma a incentivar um engajamento em investimentos de longo prazo, ainda que as perspectivas do mercado internacional não sejam tão promissoras. Serão particularmente relevantes uma política fiscal que permita ações anticíclicas em momentos de deterioração externa e políticas cambial e de redução de custos sistêmicos para aumentar a competitividade doméstica, de modo a evitar que a expansão da demanda interna vaze para fora, aumentando o déficit comercial e em transações correntes.

Mas, atenção! A eventualidade de ocorrência de um cenário externo menos desfavorável (reforma e crescimento lento) não pode trazer consigo a tentação de um caminho "fácil" - de crescimento acelerado, puxado pelo consumo interno, com déficit em conta corrente elevado, financiado pela abundante liquidez internacional. Neste caminho fácil, o câmbio apreciado ajudaria a conter a inflação, ao mesmo tempo que induziria o aumento do déficit em conta corrente (poupança externa), que viabilizaria o crescimento da absorção doméstica acima da produção. Mas este modelo de crescimento colocaria o nosso futuro na dependência de um comportamento benigno de fatores externos, o que pode ser subitamente interrompido por forças e eventos fora do controle do país.

O caminho para uma economia mais diversificada e inclusiva, apoiada na poupança doméstica, é bem mais difícil de ser construído, mais dependente da vontade política e da capacidade de articulação de apoios que deem sustentação às medidas requeridas para alcançá-lo. Este é, porém, o caminho mais promissor para garantir um crescimento sustentado, diante das incertezas do cenário internacional nos próximos anos.
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Texto Por Luciano Coutinho, João Carlos Ferraz e Francisco Eduardo Pires de Souza | Para o Valor 

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