Perguntado em 1972 sobre o significado da Revolução Francesa, o então
primeiro-ministro chinês, Chou En-lai, teria dito que ainda era muito
cedo para tirar conclusões. Passar ao extremo oposto e arriscar-se a
prever, no calor dos fatos, a evolução prospectiva do impressionante
"cluster" de transformações hoje em curso no mundo, como proposto pelo Valor, requer que o leitor nos conceda uma licença para podermos especular livremente sobre o amanhã.
De fato, a segunda década do século XXI começa em meio a tamanhas
transformações nos planos econômico, tecnológico, social e político que
em tudo sugere se tratar do início de uma nova era na história mundial.
Primeiramente, a longa e sustentada ascensão da China rumo ao posto
de maior economia do mundo (que deve ocupar ainda na presente década)
vem deslocando competidores e atraindo parceiros complementares, com
consequências que ainda estão, em grande medida, por vir. De um lado,
cabe saber se a expansão continuada, os desequilíbrios inerentes ao
crescimento e a necessidade de rebalanceamento da economia chinesa
culminarão em "pouso suave" ou "aterrissagem" forçada. Por outro lado, é
igualmente importante saber se, no caso de manutenção do seu
crescimento, a acomodação do novo gigante (juntamente com outros
emergentes de peso) no mercado mundial se dará por intermédio dos
mecanismos de mercado ou por meio do jogo político e, eventualmente,
militar. Em outras palavras, o deslocamento do centro hegemônico do
Atlântico Norte para o Pacífico Norte se dará de forma negociada ou
conflitiva?
Em segundo lugar, à crescente importância de novos atores na economia
mundial se sobrepõs, e por razões independentes, a crise financeira
internacional iniciada em 2008 nas economias mais ricas do planeta. O
que parecia ser apenas uma crise financeira, ainda que bem mais profunda
do que as de momentos anteriores, acabou se revelando uma crise de
múltiplas dimensões - fiscal, produtiva, social e política - que está
pondo em questão muito mais do que o conjunto de regras que regem as
relações econômicas e políticas internacionais, o próprio modelo de
capitalismo dos últimos quarenta anos.
É vital construir e fortalecer capacidade de resistência e participar dos fóruns políticos
externos relevantes
O imbróglio europeu, hoje o ponto nevrálgico da crise internacional,
encerra, para além de todas as questões relativas às suas implicações
financeiras, fiscais e de crescimento para a economia mundial, uma
questão crucial para a governança mundial: quais as chances de sucesso
de um modelo de federalização na Europa, com solidariedade e
compartilhamento de custos e benefícios?
Não bastassem as incertezas associadas aos fenômenos acima referidos,
é possível detectar, sob a superfície econômica, outras quatro
transformações igualmente relevantes.
Primeiro, mudanças no plano da tecnologia, que revolucionam, mais uma
vez, a forma de produzir, distribuir e apropriar-se dos ganhos do
progresso técnico. A crescente conectividade possibilitada pelas
tecnologias de informação e comunicação (TICs) amplia acesso e diminui
custos de informação. Estas mesmas tecnologias, associadas com a
biotecnologia e a nanotecnologia, trazem implicações as mais diversas:
ampliam a longevidade das pessoas, podem ser fontes essenciais de
resolução dos problemas climáticos e, no âmbito da produção, rompem o
"império da padronização" ao permitir a produção customizada em massa,
algo que constituiria uma contradição há apenas alguns anos. Um exemplo
apenas: nem bem a China se tornou a "fábrica do mundo", e uma nova onda
de inovações - melhoria e barateamento da robótica e processos aditivos,
como a impressão em 3D - pode colocar de ponta cabeça as fontes de
vantagens competitivas baseadas em custos, redefinindo critérios de
decisão de localização industrial.
Segundo, quando os preços dos combustíveis fósseis, puxados pela
voracidade da demanda chinesa e pelas perspectivas de reduzido
crescimento de longo prazo da oferta, se localizaram em patamares
históricos muito altos, surgem novas fontes não convencionais de
petróleo e gás ("shale oil and gas"), a partir de tecnologias que
viabilizam extração eficiente e ampliação quase ilimitada da oferta de
petróleo a partir de um preço teto de US$ 70 por barril. As
consequências geopolíticas deste contexto não deverão ser pequenas.
Terceiro, é a emergência, bem conhecida no Brasil, de uma nova classe
média, decorrente da inclusão de milhões de consumidores aos mercados.
Porém, o legítimo crescimento da demanda por bens e serviços destes
consumidores implica forte pressão sobre recursos e sobre o ambiente.
Não está claro se os produtores destes bens e serviços estarão
preparados para adaptar e inovar processos para garantir a
sustentabilidade do planeta, de forma tempestiva, e se, em caso
contrário, esta via de expansão do consumo e da economia mundial será
posta em xeque.
Por fim, para além da realidade econômica e tecnológica, o mundo vem
sendo sacudido por movimentos populares, entre os quais destacam-se a
Primavera Árabe e as manifestações dos "indignados". As implicações
sociais e políticas destes movimentos ainda não estão claras e os
encaminhamentos de respostas às múltiplas demandas não estão dados. Que
formas de representação de interesses prevalecerão? Que bens públicos
serão relevantes no futuro?
Em suma, cada uma das transformações aqui referidas já seria,
isoladamente, capaz de gerar uma grande indeterminação sobre o futuro do
planeta. Todos juntos, nos colocam diante de uma espécie de marco zero,
a partir do qual a pluralidade de possíveis caminhos é fascinante e, a
despeito da perplexidade que podem a princípio gerar, não devem inibir a
reflexão.
Com esse espírito, desenhamos dois cenários extremos para os próximos
15 anos, sabendo quão imprecisos tais exercícios são. O objetivo é
colocar balizas, definindo um intervalo dentro do qual imaginamos que a
realidade possa vir a se situar e buscando definir o que denominamos de
"espaço Brasil", isto é, os contornos e os pontos de atenção de um
possível caminho para o médio e o longo prazos.
Reforma e crescimento lento
O primeiro cenário considera soluções mais calcadas em reformas do
que em rupturas. Nos EUA, um ambiente pós-eleitoral mais favorável a
compromissos políticos permitiria evitar o abismo fiscal. Neste
contexto, a lenta retomada do crescimento e a queda do desemprego iriam
progressivamente avançando para uma verdadeira recuperação, revigorada,
inclusive, por avanços no campo tecnológico. Na China, o crescimento
seria bem mais lento do que o do passado recente, mas com uma guinada
bem-sucedida do modelo de crescimento para o mercado interno. Na Europa,
após os sucessivos fracassos de soluções parciais (e recessivas), as
lideranças políticas terminariam por renovar e aprofundar o pacto de
integração, evoluindo para a construção de uma federação que seria
iniciada pela reestruturação das dívidas públicas dos países da
periferia e passos firmes na direção da união fiscal e bancária.
Temos condições políticas e ativos e competências acumulados para resistir a um ambiente externo hostil?
A resposta é "sim"
O mundo cresceria pouco durante um período longo, mas as relações
internacionais seriam reconstruídas em novo sistema de hegemonia
compartilhada entre EUA e China, não se podendo, entretanto, descartar a
influência da Europa. Aí se lograria conciliar interesses e exercer
liderança suficiente para estabelecer regras de jogo, crescentemente
previsíveis e confiáveis, nos campos comercial, financeiro, ambiental e
político-militar. Estaria então estabelecida uma nova Pax no plano das
relações econômicas internacionais.
Pelo lado da concorrência, a consolidação de empresas dos países
emergentes e a sobrevivência das empresas dos países avançados, num
mercado mundial que ainda estaria crescendo pouco, pelo menos por muitos
anos, levaria a um ambiente de competição feroz. Não surpreenderiam,
portanto, uma ou mais rodadas de consolidação patrimonial em vários
setores. Mas surgiriam, eventualmente, para aqueles que se preparassem
adequadamente, oportunidades importantes derivadas das novas tecnologias
e da retomada progressiva dos mercados de consumo dos países ricos e da
contínua expansão dos mercados de países emergentes.
Ruptura e degradação
O cenário alternativo, em que as transformações em curso levariam a
rupturas, é mais difícil de conceber. Desastres históricos são menos
frequentes e menos sistematizáveis do que reformas e recuperações.
Rupturas destroem referências e analogias com processos prévios,
dificultando a tarefa de estabelecer pontes com o passado e desenhar
novas configurações e suas resultantes.
Por oposição ao cenário de reforma e crescimento lento, o de ruptura e
degradação combinaria a fragmentação da Europa com o desaparecimento do
euro, o "hard landing" chinês com fracasso da política de mercado
interno e a crescente polarização ideológica nos EUA com um "double dip"
na economia. Um cenário que combina três catástrofes estruturais tem
uma certa lógica: a ruptura em uma das regiões deteriora o quadro
internacional (por exemplo, via contração do comércio, crise financeira
etc.), o que faz aumentar a probabilidade de que outras regiões entrem
também em crises traumáticas.
A característica central deste cenário é a prevalência de conflitos.
Em cada país, conflitos sociais e políticos se aguçariam; talvez de
forma explícita em países em desenvolvimento, enquanto que, nos países
avançados, a riqueza e bem-estar aí acumulados poderiam eventualmente
permitir maior capacidade de resistência a conflitos abertos, a despeito
das crescentes diferenças sociais. No concerto das nações, as
instituições e fóruns de negociação e pactuação entrariam em crise
existencial. Entre países, seria frequente o uso de instrumentos não
econômicos para defender interesses nacionais, numa reprodução do quadro
de "políticas de arruinar o vizinho" dos anos 20 e 30 do século
passado. Nenhum país ou grupo de países seria suficientemente poderoso e
influente para exercer papel hegemônico, e estabelecer regras para o
jogo econômico e político mundial, de forma a reverter o quadro de
beligerância.
A concorrência teria natureza predatória: os países, ansiosos por
investimentos, relaxariam padrões e regulações. Para sobreviver, as
empresas degradariam padrões de governança e buscariam fontes de
insumos, matérias-primas e trabalho, sem preocupação com a sua
sustentabilidade. O progresso técnico continuaria avançando, mas a sua
difusão se daria de modo mais seletivo, para empresas e estratos
econômicos privilegiados, o que aprofundaria os hiatos de competência e
de acesso a novos bens e serviços.
É evidente que, em algum momento, se atingiria o fundo do poço e a
reconstrução da economia mundial seria deflagrada por algum processo
político-econômico, cuja natureza é difícil prever. O que importa, sim, é
que se tal cenário - ou algo próximo a ele - se materializar, as
alavancas do crescimento, inclusive o brasileiro, estarão severamente
comprometidas.
Espaço Brasil
Quais os espaços para o Brasil, tendo como referência as duas balizas acima descritas?
Como ponto de partida, é claro que o Brasil não passará incólume
pelas vicissitudes do quadro internacional. Portanto, é vital, por um
lado, construir e fortalecer capacidade de resistência e, por outro,
participar ativamente dos fóruns políticos externos relevantes para
evitar o cenário de ruptura e degradação. A pergunta que se segue é:
temos condições políticas e ativos e competências acumulados para
resistir a um ambiente externo hostil?
A resposta é "sim". O país acumulou trunfos que, se bem usados,
permitirão mitigar as consequências de um cenário externo de degradação e
aproveitar as oportunidades de um cenário de recuperação lenta para
manter o curso de seu desenvolvimento. A capacidade de resistência
aumenta, porém, se o Brasil enfrentar pendências fundamentais.
A eventualidade de ocorrência de um cenário
externo menos desfavorável não pode trazer consigo
a tentação de um
caminho "fácil"
Começando pelas últimas, são quatro as pendências que devem ser
enfrentadas: (a) mais produtividade para enfrentar um ambiente de
intensa competição e para viabilizar um crescimento elevado, a despeito
do baixo crescimento da força de trabalho, resultante da nova dinâmica
demográfica; (b) mudanças na estrutura industrial, na direção de setores
tecnologicamente mais avançados; (c) introjeção da sustentabilidade
sócio-ambiental na conduta e rotina dos atores econômicos; (d) ampliação
da capacidade de oferta de financiamento de longo prazo, a partir de
fontes internas de recursos e com um forte envolvimento da indústria
privada. Um destaque: todas estas pendências exigirão muita competência
das pessoas, das empresas e do Estado. Competência é o ativo propulsor
de produtividade, de geração de novos bens e serviços e de bem-estar.
São quatro também os trunfos acumulados a serem fortalecidos: (a) o
amadurecimento da democracia e o fortalecimento das instituições, que
podem sustentar um projeto de desenvolvimento de longo prazo; (b) a
consolidação de políticas econômicas que garantem a estabilidade e
alongam o horizonte de decisões; (c) a bem- sucedida política de rendas,
que, além de promover a inclusão econômica e social, ampliou e tornou
atrativo o mercado interno e, mais importante, criou um espaço de
aspiração de progresso para a maioria da população; (d) a crescente
efetividade de políticas pró-investimento, tanto para o curto prazo -
orientadas para a diminuição de custos - quanto para a ampliação da
oferta de serviços, bens e, principalmente, infra-estruturas.
O Brasil pode seguir uma trajetória de desenvolvimento puxado pela
demanda interna (consumo e investimentos em energias e infra-estruturas)
e externa (onde mantivermos vantagens) e induzido por políticas. Estas
podem ser as âncoras para as expectativas empresariais, de forma a
incentivar um engajamento em investimentos de longo prazo, ainda que as
perspectivas do mercado internacional não sejam tão promissoras. Serão
particularmente relevantes uma política fiscal que permita ações
anticíclicas em momentos de deterioração externa e políticas cambial e
de redução de custos sistêmicos para aumentar a competitividade
doméstica, de modo a evitar que a expansão da demanda interna vaze para
fora, aumentando o déficit comercial e em transações correntes.
Mas, atenção! A eventualidade de ocorrência de um cenário externo
menos desfavorável (reforma e crescimento lento) não pode trazer consigo
a tentação de um caminho "fácil" - de crescimento acelerado, puxado
pelo consumo interno, com déficit em conta corrente elevado, financiado
pela abundante liquidez internacional. Neste caminho fácil, o câmbio
apreciado ajudaria a conter a inflação, ao mesmo tempo que induziria o
aumento do déficit em conta corrente (poupança externa), que
viabilizaria o crescimento da absorção doméstica acima da produção. Mas
este modelo de crescimento colocaria o nosso futuro na dependência de um
comportamento benigno de fatores externos, o que pode ser subitamente
interrompido por forças e eventos fora do controle do país.
O caminho para uma economia mais diversificada e inclusiva, apoiada
na poupança doméstica, é bem mais difícil de ser construído, mais
dependente da vontade política e da capacidade de articulação de apoios
que deem sustentação às medidas requeridas para alcançá-lo. Este é,
porém, o caminho mais promissor para garantir um crescimento sustentado,
diante das incertezas do cenário internacional nos próximos anos.
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