João Ubaldo Ribeiro*
Certamente eu descobriria no Google, mas me deu preguiça de pesquisar
e, além disso, não tem importância saber quem inventou essa palavra
grotesca, que agora a gente ouve nos noticiários de televisão e lê nos
jornais. O surpreendente não é a invenção, pois sempre houve besteiras
desse tipo, bastando lembrar os que se empenharam em não jogarmos
futebol, mas ludopédio ou podobálio. O impressionante é a quase
universalidade da adoção dessa palavra (ainda não vi se ela colou em
Portugal, mas tenho dúvidas; os portugueses são bem mais ciosos de nossa
língua do que nós), cujo uso parece ter sido objeto de um decreto
imperial e faz pensar em por que não classificamos isso imediatamente
como uma aberração deseducadora, desnecessária e inaceitável, além de
subserviente a ditames saídos não se sabe de que cabeça desmiolada ou
que interesse obscuro. Imagino que temos autonomia para isso e, se não
temos, deveríamos ter, pois jornal, telejornal e radiojornal implicam
deveres sérios em relação à língua. Sua escrita e sua fala são imitadas e
tidas como padrão e essa responsabilidade não pode ser encarada de
forma leviana.
Que cretinice é essa? Que quer dizer essa palavra, cuja formação não
tem nada a ver com nossa língua? Faz muitos e muitos anos, o então
ministro do Trabalho, Antônio Magri, usou a palavra "imexível" e foi
gozado a torto e a direito, até porque ele não era bem um intelectual e
era visto como um alvo fácil. Mas, no neologismo que talvez tenha
criado, aplicou perfeitamente as regras de derivação da língua e o
vocábulo resultante não está nada "errado", tanto assim que hoje é
encontrado em dicionários e tem uso corrente. Já o vi empregado muitas
vezes, sem alusão ao ex-ministro. Infutucável, inesculhambável e
impaquerável, por exemplo, são palavras que não se acham no dicionário,
mas qualquer falante da língua as entende, pois estão dentro do espírito
da língua, exprimem bem o que se pretende com seu uso e constituem
derivações perfeitamente legítimas.
Por que será que aceitamos sem discutir uma excrescência como
"paralimpíada"? Já li alguns protestos na imprensa e na internet, mas a
experiência insinua que paralimpíada chegou para ficar e ter seu uso
praticamente imposto. Ao contrário dos portugueses, parecemos encarar
nossa língua com desprezo e nem sequer pensamos em como, ao abastardá-la
e ao subordiná-la a padrões e usos estranhos a ela, vamos aos poucos
abdicando até de nossa maneira de ver o mundo e falar dele, nossa
maneira de existir. Talvez isso, no pensar de alguns, seja desejável,
mas o problema é que, por esse caminho, nunca se chegará à identificação
com o colonizador que tanto se admira e inveja, mas, sim, à condição
cada vez mais arraigada de colonizado, que recebe tudo de segunda mão,
até suas próprias opiniões e valores.
Mas há um pequeno consolo em presenciar esse tipo de vergonheira
servil. Consolo meio torto, mas consolo. Refiro-me ao fato de que nossa
crescente ignorância não se limita a estropiar nossa língua, mas faz o
mesmo com idiomas que consideramos superiores em tudo, como o inglês.
Hoje isto caiu em desuso, mas smoking já foi aqui "smocking" durante
muito tempo. Assim como doping já foi "dopping". Quanto a este,
assinale-se que o som, digamos fechado, do O, em inglês, foi trocado
aqui por um som aberto, é o dópin. O mesmo tipo de fenômeno ocorreu com
volley, cuja primeira vogal em inglês é aberta, mas em brasinglês é
fechada e já entrou no português assim.
No setor de nomes próprios, a vingança é mais completa. Em primeiro
lugar, transformamos os sobrenomes deles em prenomes nossos e enchemos o
País de jeffersons, washingtons, edisons (aliás, em brasinglês, Edson,
como Pelé), lincolns, roosevelts e até mesmo kennedys e nixons. E não
perdoamos os contemporâneos. Não só trocamos o H por E em Elizabeth,
como até hoje há publicações que se referem a Margareth Thatcher, ou à
princesa Margareth. Esse nome nunca teve H no fim, mas aqui é assim não
só em muitos jornais quanto no caso de nossas meninas, como atesta o
exemplo da minha linda e talentosa conterrânea Margareth Menezes. E das
Nathalies que assim foram batizadas em homenagem a Natalie Wood. E dos
Phellipes, inspirados no príncipe Philip, das Daianes da Diane, a lista
não acaba.
De maneira semelhante, também alteramos não somente a pronúncia, mas
as regras gramaticais do inglês. Por exemplo, é quase unânime, entre
todos os numerosos militantes do brasinglês, a convicção de que qualquer
plural inglês terminado em S deve ter essa letra precedida de um
asterisco. Acho que é barbada apostar que, em todas as cidades
brasileiras de médias para cima, serão encontrados pelo menos uma placa e
cinco cardápios anunciando "Drink's". É mais chique e até o Galeão, não
há muito tempo, tinha armários (lockers) de aluguel, encimados pelo
letreiro "Locker's", o que fazia os falantes de inglês entender que os
armários eram propriedade de um certo Mr. Locker. No Galeão, aliás, gate
(portão) já soou como gay tea (chá gay) e shuttle service (ponte aérea)
como chateau service (o que lá seja isso). Agora mudou, mas to (para)
deu para sair um prolongado tchuu, que, a um ouvido americano, há de
soar como uma onomatopeia de espirro ou partida de maria-fumaça.
Mas, até mesmo por causa ("por causa", não, por conta; agora só se
diz "por conta", vai ver que vem do inglês on account of) dessas
paralimpíadas, receio que as contraofensivas nacionais não serão
suficientes para neutralizar a subordinação de nossa cabeça, através do
incalculável poder da língua. Acho que, coletivamente, aspiramos a essa
subordinação. Tem sido muito lembrado o complexo de vira-lata de que
falou Nélson Rodrigues. Pois é, é isso mesmo e é também caminho seguro
para sermos vira-latas de verdade.
------------------
* Escritor. Jornalista. Roteirista. Cronista do Estadão.
Fonte: Estadão on line, 23/09/2012
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário