Juremir Machado da Silva*
Meu amigo Celso Dias é mestre em
Antropologia - fez dissertação sobre torcidas organizadas no futebol -,
historiador, grande conhecedor de filosofia, contista, craque de bola e
funcionário da Polícia Civil. Quem vai tirar carteira encontra com ele
no Departamento de Identificação. Celso pode ser lido todos os santos
dias e noites na Internet em
http://ohomemquefumavadoiscigarrosdeumasovez.wordpress.com. Na semana
passada, postou um texto supimpa intitulado "De mãos dadas com
travestis: segurança pública e diversidade sexual". Ele conta como, no
começo dos anos 1990, trabalhando na aérea judiciária do Centro de
Operações da Polícia Civil, era encarregado, nos plantões noturnos, de
fazer a identificação de travestis arrastados para lá pelo simples fato
de serem travestis.
É isso aí: há pouco mais ou menos de 20 anos era possível deter para averiguação e identificação homens pegos em flagrante delito. De quê? Vestidos de mulher. A narrativa de Celso Dias mostra que Franz Kafka não imaginaria nada mais absurdo. Os travestis "eram trazidos para serem identificados e passavam a fazer parte de um arquivo de eventuais suspeitos de algum crime que, quem sabe, um dia poderiam vir a cometer. Eles eram fotografados, tinham seus dados biográficos e onomásticos anotados e suas impressões digitais tomadas para depois ser liberados já ao amanhecer". Já ouço a tradicional e simplória justificativa: eram os valores da época. Sem dúvida, valores do preconceito de couro duro. É sabido que se vestir de mulher é um ato muito perigoso que corrói os bons costumes e põe em xeque a boa sociedade.
Celso Dias, obrigado a humilhar, sentia-se também humilhado: "A sessão de identificação durava a noite toda, era mais um ritual de humilhação na qual me sentia ridículo em fazer parte. Contudo, com o decorrer da noite, íamos conversando e desconstruindo paulatinamente o roteiro. Mesmo sendo vítimas da intolerância da lei e dos seus agentes (e eu era inicialmente visto como um deles), conseguíamos transformar aquele infortúnio em um momento de troca de informações e de relatos que, muitas vezes, chegava à descontração". Era preciso driblar o insuportável, brincar para não explodir, levar na flauta.
Colegas faziam piadas idiotas: "E aí, de mãos dadas com os travecos, não vai se apaixonar hein! Naquela época era necessário, para efetuar a identificação, segurar na mão da pessoa e pintar os dedos com tinta de impressão". O mesmo Celso está lá agora entregando orgulhosamente as chamadas "carteiras sociais", que levam os nomes adotados pelos detidos de ontem: "É certo que sempre haverá aqueles que vão se pronunciar dizendo que o Estado tem coisas mais importantes a fazer do que dar ''carteiras a veados'', expressão que já ouvi mais de uma vez. Mas não me surpreendo, pois na época da abolição da escravatura também havia aqueles que entendiam que o país tinha coisa mais importante a fazer do que libertar os escravos". Alguém dirá que é mais uma idiotice politicamente correta. Onde vamos parar? Se ninguém fizer nada, vamos acabar sem preconceitos ou combatendo-os com eficiência.
---------------
É isso aí: há pouco mais ou menos de 20 anos era possível deter para averiguação e identificação homens pegos em flagrante delito. De quê? Vestidos de mulher. A narrativa de Celso Dias mostra que Franz Kafka não imaginaria nada mais absurdo. Os travestis "eram trazidos para serem identificados e passavam a fazer parte de um arquivo de eventuais suspeitos de algum crime que, quem sabe, um dia poderiam vir a cometer. Eles eram fotografados, tinham seus dados biográficos e onomásticos anotados e suas impressões digitais tomadas para depois ser liberados já ao amanhecer". Já ouço a tradicional e simplória justificativa: eram os valores da época. Sem dúvida, valores do preconceito de couro duro. É sabido que se vestir de mulher é um ato muito perigoso que corrói os bons costumes e põe em xeque a boa sociedade.
Celso Dias, obrigado a humilhar, sentia-se também humilhado: "A sessão de identificação durava a noite toda, era mais um ritual de humilhação na qual me sentia ridículo em fazer parte. Contudo, com o decorrer da noite, íamos conversando e desconstruindo paulatinamente o roteiro. Mesmo sendo vítimas da intolerância da lei e dos seus agentes (e eu era inicialmente visto como um deles), conseguíamos transformar aquele infortúnio em um momento de troca de informações e de relatos que, muitas vezes, chegava à descontração". Era preciso driblar o insuportável, brincar para não explodir, levar na flauta.
Colegas faziam piadas idiotas: "E aí, de mãos dadas com os travecos, não vai se apaixonar hein! Naquela época era necessário, para efetuar a identificação, segurar na mão da pessoa e pintar os dedos com tinta de impressão". O mesmo Celso está lá agora entregando orgulhosamente as chamadas "carteiras sociais", que levam os nomes adotados pelos detidos de ontem: "É certo que sempre haverá aqueles que vão se pronunciar dizendo que o Estado tem coisas mais importantes a fazer do que dar ''carteiras a veados'', expressão que já ouvi mais de uma vez. Mas não me surpreendo, pois na época da abolição da escravatura também havia aqueles que entendiam que o país tinha coisa mais importante a fazer do que libertar os escravos". Alguém dirá que é mais uma idiotice politicamente correta. Onde vamos parar? Se ninguém fizer nada, vamos acabar sem preconceitos ou combatendo-os com eficiência.
---------------
* Sociólogo. Escritor. Prof. Universitário.
juremir@correiodopovo.com.br
Crédito: JOÃO LUIS XAVIER
Fonte: Correio do Povo on line, 27/09/2012
Nenhum comentário:
Postar um comentário