ALDO, FORNAZIERI
Nos últimos tempos surgiu uma profusão de estudos,
menções e referências ao conceito de "lulismo". Autores das mais
variadas tendências referem-se ao conceito. Basta citar Francisco de
Oliveira, Ricardo Vélez Rodríguez e André Singer. Com Os Sentidos do
Lulismo André Singer empreendeu o mais abrange esforço para entender o
suposto fenômeno. Dentre os vários artigos, reflexões e o livro, há
poucas referências inquiridoras sobre a pertinência ou o significado do
conceito.
De modo geral, a referência ao "lulismo" é como se ele fosse um dado
evidente da realidade. Parece ser predominante a ligação entre o
conceito e os processos eleitorais de que Lula foi candidato ou
protagonista importante. Para o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso,
o "lulismo" expressa uma apelo aos pobres e uma prática de conciliação
geral das classes; para Francisco de Oliveira, trata-se de uma
"funcionalização da pobreza" para manter a exploração; para Vélez
Rodríguez, é uma variante do populismo e uma prática patrimonialista de
uso do Estado para fins políticos; e para André Singer, é um
realinhamento eleitoral que implica a articulação dos segmentos mais
pobres da população como a nova base social de apoio a Lula e, em parte,
ao PT.
Os bons dicionários dizem que a função de um conceito é descrever os
objetos da experiência para reconhecê-los, classificá-los e
organizá-los. De acordo com o Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa, a
partir dos séculos 19 e 20 o uso do sufixo "ismo" disseminou-se "para
designar movimentos sociais, ideológicos, políticos, opinativos,
religiosos e personativos, através de nomes próprios representativos, ou
de nomes locativos de origem...". No campo da política, portanto, o
sufixo "ismo" associa-se a um corpo doutrinário ideológico, filosófico
ou religioso de caráter sistêmico e coerente.
Na medida em que, no caso em questão, o sufixo "ismo" vem associado
ao nome Lula, sugere-se a existência de um movimento político ou
ideológico personativo configurando numa doutrina ético-política que
veicula e enfatiza o valor da pessoa do ex-presidente e seus laços de
solidariedade com um corpo coletivo que pode ser o "povo brasileiro" ou,
particularmente, os "pobres", para a maior parte das análises.
Na realidade, tal movimento não existe. Nem mesmo dentro do PT existe
uma corrente doutrinária ou seguidista lulista. O suposto caciquismo ou
personalismo de Lula também não é efetivo. As recentes definições de
candidatos passaram por intrincados processos de negociações e
concessões mútuas e construções de consensos entre as partes.
"Nem mesmo dentro do PT existe
uma corrente doutrinária ou seguidista lulista."
Restaria ver se há um movimento lulista personativo na esfera social
ou eleitoral. Nem mesmo nesse plano há evidências capazes de legitimar o
suposto lulismo. Lula não deixou nem teve a intenção de legar um corpo
doutrinário dessa natureza e, menos ainda, um movimento em torno de seu
nome. O que houve foi um processo eleitoral, bem analisado do ponto de
vista empírico por André Singer. Tanto as eleições de Lula quanto os
seus dois mandatos devem ser analisados a partir de suas determinações
específicas, sem transcendências ideológicas.
O fenômeno que aconteceu e vem acontecendo no Brasil tem
similaridades, com formas nuançadas, em outros países da América Latina.
O Peru conseguiu resultados espetaculares na redução da pobreza. Na
Colômbia, depois de dois mandatos de Álvaro Uribe, elegeu-se Juan Manuel
Santos, do mesmo partido político. Na Argentina, depois de um mandato
de Néstor Kirchner, está em curso o segundo mandato de Cristina. O
eleitorado reelege ou elege sucessores de governantes que conseguem bons
resultados nas políticas sociais e econômicas.
Mas existem exceções a essa regra. No Chile, depois de 20 anos de
governos bem-sucedidos da Concertación e mesmo com a ex-presidente
Michelle Bachelet terminando seu governo com mais de 80% de aprovação, o
candidato opositor de centro-direita, Sebastián Piñera, venceu as
eleições. No mundo de hoje as hegemonias partidárias são menos estáveis e
menos duráveis em relação ao passado. A perdurabilidade de projetos de
poder depende ora de êxitos e resultados, ora dos líderes que os
representam.
O eleitorado é pragmático, vota interessado e, na sua maior parte,
não segue ideologias. Se um governo apresenta bons resultados, promove o
crescimento, gera empregos, favorece o consumo, distribui renda, de
modo geral o eleitorado quer a sua continuidade. Uma tabela do livro de
Singer mostra que em 2006, no segundo turno, 44% dos eleitores que
ganhavam entre cinco e dez salários mínimos e 36% dos que ganhavam acima
de dez salários mínimos preferiam Lula. Isso desconstitui qualquer tese
de que há uma polarização de classe nas eleições. Não faz muito sentido
perguntar a um eleitor médio brasileiro se ele é de esquerda ou de
direita, pois esses conceitos têm pouca referência prática.
Dilma mantém uma relação de continuidade e de diferença em relação a
Lula e aos seus governos. Ela constituiu personalidade política própria e
uma especificidade de seu governo, evitando o que muitos temiam: ficar à
sombra de Lula. E o próprio Lula contribuiu para isso, evitando uma
presença mais ostensiva no governo dela. O melhor método para analisar
os dois governos é fazer um estudo comparativo entre ambos.
As eleições municipais deste ano parecem mostrar que não existe um
eleitorado lulista cativo, configurado em qualquer fração de classe.
Embora existam certas preferências partidárias em determinados setores
sociais, o fato é que, em seu modo pragmático de ser, o eleitorado não é
um ativo estocável por ninguém. Cada eleição é uma nova batalha, com
novas circunstâncias e novos atores. Quem acredita na existência de um
eleitorado cativo tende a ver o trem da História passar sem embarcar
nele.
---------------------
* DIRETOR ACADÊMICO DA FUNDAÇÃO ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA DE SÃO PAULO - O Estado de S.Paulo
Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,lulismo-um--conceito-equivoco-,937560,0.htm
Nenhum comentário:
Postar um comentário