sexta-feira, 10 de agosto de 2012

A revolução urbana que virá























































David Harvey*
 
o movimento occupy pode marcar o início de uma nova era de levantamentos urbanos. David Harvey explica porquê.
Desde Paris em 1871, Praga em 1968, até ao Cairo em 2011, e eventualmente as ruas de Nova Iorque, as cidades sempre foram um viveiro de movimentos radicais. Os protestos urbanos foram, ao longo de décadas, motivados pelo desemprego, escassez de alimentos, privatizações e corrupção. Mas terão sido também causados pela geografia das próprias cidades?
O seu novo livro Rebel Cities: From the Right to the City to the Urban Revolution, disseca os efeitos da política financeira do mercado livre sobre a vida urbana, a dívida incapacitante dos norte-americanos de médios e baixos rendimento e como o desenvolvimento descontrolado destruiu o espaço comum dos habitantes da cidade.
Começando com a questão: “Como é que se organiza uma cidade inteira?”, Harvey analisa a forma como a atual crise de crédito teve a sua raiz no desenvolvimento urbano e como este tornou virtualmente impossivel qualquer tipo de planeamento urbano nas cidades norte-americanas, nos últimos 20 anos. Harvey está na vanguarda do movimento pelo “direito à cidade,” a ideia de que os cidadãos devem ter uma palavra a dizer na forma como as suas cidades são desenvolvidas e organizadas. Inspirando-se na Comuna de Paris de 1871, quando a totalidade da cidade de Paris derrubou a aristocra- cia para tomar o poder, Harvey descreve onde as cidades organizaram, poderiam ou deveriam organizar-se de forma mais sã e inclusiva.
Nesta entrevista, Harvey fala sobre o Movimento “Occupy Wall Street” (OWS), a destrutividade do desenvolvimento de Bloomberg na cidade de Nova Oorque, e sobre como tornar a cidade em algo mais próximo dos nossos desejos.


Você descreve o “direito à cidade” como um slogan vazio. Mas o que é que significa?
Todos podem reivindicar o direito à cidade. Bloomberg tem direito à cidade. Mas as diversas fações existentes na cidade possuem diferentes capacidades de exercer esse direito. Então, quando eu falo sobre o direito de transformar a cidade de acordo com os nossos desejos, o que vimos em Nova Iorque, nos últimos 20-30 anos, tem sido de acordo com os desejos dos ricos. Nos anos 71 90, os irmãos Rockefeller, por exemplo, eram dos mais poderosos. Agora temos pessoas como Bloomberg, que essencialmente fazem a cidade da forma mais conveniente para eles e para os seus negócios. Mas a maioria da população não tem qualquer influência sobre este processo. Existem cerca de um milhão de pessoas nesta cidade que tentam sobreviver com 10 mil dólares por ano. Que influência têm sobre o tipo de cidade que está a ser contruído? Nenhuma. 
A minha preocupação em relação ao direito à cidade não é a de dizer que existe uma forma ética de fazer as coisas, mas a de que existe algo que é objeto de dispu- ta. Que direito? Para fazer que tipo de cidade? A minha preocupação é que esse milhão de pessoas que vive com 10 mil dólares por ano deveria ter tanta influência quanto o 1% mais rico. Eu chamo-lhe um “significante vazio” poque se trata sobretudo de saber quem o reivindica e afirma. “É o meu direito que interessa, e não o seu direito”. Envolverá sempre conflito.
Desde os anos 1980, verificou-se uma onda mundial de privatizações de instituições públicas (escolas, transporte ferroviário, água). Tal tem causado agitação nas pessoas de baixos rendimentos que vivem nas cidades?
De certa forma essa é uma das perguntas que tento colocar no livro. Por que é que não fizemos nada em relação a isso? Por que é que não tivemos o nosso Maio de 68? Por que é que não houve mais tumultos, dado o enorme aumento das desigualdades na maioria das cidades norte-americanas e no resto do mundo? Começamos agora a assistir a algum tipo de resposta com o OWS e movimentos noutras partes do mundo. No Chile, os estudantes ocuparam as universidades, à semelhança do que se passou nos anos 1960 contra as desigualdades que existiam na altura.
Eu não sei bem porque não houve mais tumultos. Eu acho que tem a ver com o tremendo poder que o dinheiro tem para comandar o aparato policial. Creio que vivemos atualmente numa situação muito perigosa, porque qualquer forma de agitação é suscetível de ser tratada como uma forma de terrorismo, dado o aparato de segurança pós-11 de setembro. Temos visto em lugares como a Praça Tahrir e noutros levantamentos urbanos, com ecos no Wisconsin no ano passado, que existem sinais de resistência que começam a surgir. Há aqui um paralelo com o que aconteceu nos idos de 1930. Aquando do crash da bolsa, em 1929, só surgiram grandes protestos a partir de 1933, quando começou a emergir um movimento de massas. Podemos estar a chegar a essa fase neste momento, pois a depressão, a recessão, o que você quiser chamá-la, não acabou, existe ainda desemprego massivo, as pessoas continuam a perder as suas casas e começam a perceber que esta situação não é temporária. Esta é uma condição permanente. Então eu acho que existe neste momento mais propensão para o aparecimento de agitação de massas. Não é como em 1987, quando houve um crash, mas do qual saimos num par de anos. Não é o que está a acontecer neste país.
Existe uma diferença grande entre uma explosão espontânea de raiva, que não tem um objetivo político, e uma resposta mais deliberada como a que vimos com o OWS. Esta pretendia transmitir uma mensagem, colocar o tema da desigualdade social na agenda política, e acho que foram muito bem sucedidos. Pelo menos, o Partido Democrata fala sobre isso quando não o fazia há um ano atrás. Não era sequer mencionado. Mas agora eles falam sobre o assunto, que começou a infiltrar-se na campanha Obama, que de alguma forma captou essa retórica.
Porque é que a Comuna de Paris de 1871 é importante para os movimentos de hoje?
Por duas razões: A primeira é que é uma das grandes revoltas da história. É por isso objeto de discussão e estudo por direito próprio. Outra razão é porque faz parte do panteão do pensamento de esquerda. É interessante o facto de Marx, Engels, Lenine e Trotsky, terem todos olhado para a Comuna de Paris como um exemplo que necessitava ser aprendido, e até certo ponto seguido, como foi em Petrogrado em 1905 e, mais tarde, durante a própria Revolução Russa. Por isso constitui uma base de aprendizagem mas também de questionamento.
Como é que a urbanização do mercado livre destruiu a cidade enquanto “comum”, em termos sociais, políticos e de vivência quotidiana?
Sem romantizar o que era cidade da década de 1920 e 1930, esta constitua uma concentração relativamente compacta de população urbana governada por uma máquina política – um poder político efetivo e concentrado. Ao longo do tempo, verificou-se uma dispersão via suburbanização, originando uma cidade espalhada. Dispersou-se o que é chamado de “gueto”, cada vez mais, de modo a que as comunidades de baixos rendimentos não possuíssem níveis suficientes de concentração para a sua auto-organização. Houve momentos em que foi possível estas reunirem-se, como é o caso Rodney King em Los Angeles. Penso que a dispersão da cidade, a criação dos subúrbios e de condomínios fechados, fragmenta a possibilidade de uma vida política coerente e a ideia de um projeto político comunal. Conduz a muita política “não no meu quintal”. As pessoas não querem viver perto de pessoas que parecem diferentes, não querem migrantes nas redondezas – por isso as sociabilidades mudaram. Eu acho que a subjetividade política que tem sido criada nos subúrbios, nos condomínios fechados, é uma subjetividade fragmentada em que ninguém vai ser capaz de abarcar a totalidade da cidade, a totalidade do processo urbano como algo com que eles se deveriam preocupar.
Estão apenas preocupados com o seu pedaço dela. O projeto político atual deveria ser o da reconstrução do corpo político da cidade sobre as ruínas do processo de capitalização.
Um termo que continua a aparecer nas histórias do OWS é o de “precariado” (trabalhadores autónomos ou não sindicalizados). Porque é que eles são importantes para os movimentos radicais?
Eu não sou muito apreciador do termo “precariado”. Em muitos casos, as pessoas que produzem e reproduzem a vida urbana olham para a sua condição como de insegurança, dado muito desse trabalho ser temporário, e são, em muitos aspetos, diferentes dos trabalhadores fabris. A esquerda, historicamente, sempre considerou os sindicatos e os operários como a base que protagonizaria mudanças políticas. A esquerda nunca pensou nas pessoas que produzem e reproduzem a vida urbana como sendo um fenómeno relevante. Aqui é que eu acho que o exemplo da Comuna de Paris entra, pois se se olhar realmente para quem fez a Comuna de Paris constata-se que não foram os operários fabris. Foram artesãos, e a maioria da força de trabalho em Paris nessa época era precária.
O que se verifica agora, com o desaparecimento de muitas fábricas é que não existe uma classe trabalhadora industrial com a mesma dimensão e importância que existia na década de 1960 e 70. Então a questão que se coloca é: o que constitui atualmente a base política da esquerda? E o meu argumento é que essa base são todas as pessoas que produzem e reproduzem a vida urbana. A maioria dessas são precárias, muitas vezes em movimento constante, não são facilmente organizáveis, difíceis de sindicalizar, são uma população itinerante, mas mesmo assim possuem um enorme potencial de poder político.
O exemplo que eu uso sempre é o do movimento pelos direitos dos imigrantes de 2006. Uma boa parte da população imigrante recusou-se a trabalhar por um dia, e Los Angeles e Chicago tiveram que fechar, mostrando que eles possuiam um enorme poder. Deveríamos pensar sobre este grupo da população. Isto não exclui o trabalho organizado, mas a sindicalização no setor privado (em oposição ao setor público) não ultrapassa 9% da população. A realidade do trabalho precário é enorme. E se conseguirmos encontrar uma maneira de organizá-los e se eles conseguirem encontrar novos meios de expressão política, considero que poderão constituir uma influência enorme sobre a forma como a vida urbana é vivida e estruturada numa cidade como Nova Iorque, Chicago, Los Angeles ou qualquer outra.
Você afirma que “a revolução dos nossos tempos terá que ser urbana.” Porque é que a esquerda é tão resistente a essa ideia?
Acho que isso é parte da disputa sobre como interpretar a Comuna de Paris. Algumas pessoas afirmam que foi um movimento social urbano e como tal não constituiu um movimento de classe. Tal pode ser rastreado à visão marxista/es- querdista de que apenas os operários fabris poderiam criar um movimento revolucionário. Bom, se não existirem fábricas suficientes ao nosso redor não poderá haver uma revolução. Isso é ridículo.
Eu argumento que devemos olhar para o urbano como um fenómeno de classe. Afinal, é o capital financeiro que é o produtor atual da cidade, ao construir os condomínios e os escritórios. Se quisermos resistir ao que estão a fazer, então temos que travar uma luta de classes, de facto, contra o seu poder. Estou muito preocupado com a questão: como podemos organizar uma cidade inteira? A cidade é onde o futuro político da esquerda se encontra.
Como é que os espaços públicos podem ser transformados em lugares mais acessíveis?
Eu olho para isso de forma simples – existe muito espaço público na cidade de Nova Iorque, mas muito pouco onde se possa desenvolver atividades em comum. A democracia ateniense teve a ágora. Onde é que podemos ir em Nova Iorque, onde é que temos uma ágora para poder realmente falar. Isto é o que as assembleias procuraram fazer, o que as pessoas do Parque Zuccotti estão a tentar fazer. Eles construiram um espaço onde pode existir diálogo político. Por isso, necessitamos de tomar o espaço público, onde, ao que parece, o público não é permitido, e transformá-lo num espaço político comum, onde decisões reais sejam tomadas, onde possamos decidir se é uma boa ideia ser construído um novo edifício, um sem número de condomínios.
No outro dia, passei por alguns parques, Union Square por exemplo, onde era possível realizar eventos, mas muitos destes foram transformados em canteiros de flores. Então, as túlipas possuem um espaço “comum”, mas nós não. Os espaços públicos são atualmente totalmente controlados pelo poder político, de forma que estes deixaram de ser comuns.
As políticas de Bloomberg foram descritas como “construir como Moses com Jane Jacobs em mente”. Como é que ele consegue reconciliar estas duas visões?
Significa que se está a construir num estilo alto-modernista e de forma bastante implacável. A administração Bloomberg lançou mais megaprojetos que Moses nos 1960, mas tentou fazê-lo de forma a que apareça publicamente em defesa das comunidades com uma estética semelhante a Jane Jacobs. Tal mascara as reais intenções destes grandes projetos, com uma certa coloração ambientalista tam- bém. Bloomberg é genuinamente, até certo ponto, um ambientalista. Ele fica muito feliz se for possível construir um edíficio “verde”. Vimo-lo a reorganizar as ruas em espaços “cicláveis” – desde que, é claro, elas não se tornem em lugares de protestos massivos de ciclistas. Nesse caso, ele ficaria bastante infeliz.
Considera que existe um movimento de resistência crescente a estas políticas urbanas de mercado livre?
O que é surpreendente é que se fizesse um mapeamento dos protestos à escala mundial, dirigidos aos aspetos negativos do capitalismo, constatar-se-ia uma enorme massa de protestos. O problema é que muitos deles são fragmentados. Por exemplo, hoje fala-se dos protestos em torno dos empréstimos bancários a estudantes. Amanhã, poderão existir pessoas a resistir à execução de hipotecas das suas casas; outros poderão estar a organizar um protesto contra o encerramento de um hospital, ou sobre o que se passa na educação pública. Neste momento, a dificuldade é a de encontrar alguma forma de conectar todos estes protestos. Existem algumas tentativas de criação de alianças, como “The Right to the City Alliance”, e o “Excluded Workers Congress”, pelo que se começaram a desenvolver formas de articulação. Mas encontra-se ainda no primeiro estágio de desenvolvimento.
Se for possível agregar todos, encontrar-se-á uma enorme masssa de pessoas interessadas em mudar o sistema, da raiz até aos ramos, pois este não satisfaz as reais necessidades e desejos de ninguém.
O Movimento OWS parece mesclar alguns dos assuntos que mencionou, mas ainda carece de uma mensagem coerente. Porque é que a esquerda foi sempre resistente à ideia de liderança, de hierarquia?
Considero que a esquerda sempre teve um problema, um fetichismo da organização, uma crença de que determinado tipo de organização é suficiente para um projeto particular. Tal verificou-se no projeto comunista, onde seguiram um modelo centralista-democrático, sem nunca se desviarem dele. E esse modelo possuía algumas forças e certas fraquezas. Atualmente assistimos, por parte de muitos elementos na esquerda, à resistência a qualquer forma de hierarquia. Eles insistem que tudo deve ser horizontal e abertamente democrático. Na verdade não o é, na prática.
Com efeito o movimento Occupy Wall Street operou como um movimento de vanguarda [um partido político na frente do movimento]. Eles negá-lo-ão, mas foram-no de facto. Eles falaram em nome dos 99% mas não eram os 99%. Eles falaram para os 99%. É necessário existir muito mais flexibilidade por parte da esquerda na construção de diferentes tipos de estruturas organizacionais. Fiquei muito impressionado com o modelo El Alto na Bolívia, que era um misto de estruturas horizontais e hierárquicas que se uniram para criar um organização política muito poderosa. Eu acho que quanto mais cedo nos afastarmos de certos métodos de discussão, melhor.
As regras de discussão que estão correntemente em voga são muito boas para pequenos grupos, onde é possível realizar assembleias. Mas se se quiser criar uma assembleia que inclua a totalidade da população de Nova Iorque, não é possível. É preciso então pensar de que forma se poderiam realizar assembleias regionais, ou uma mega-assembleia. De facto, o OWS possui um comité de coordenação. Eles são, no entanto, muito reticentes em assumir realmente a liderança e a construção da organização.
Considero que os movimentos bem sucedidos sempre foram um misto de horizontalidade e de hierarquia. Um dos mais impressionantes com que me deparei foi o movimento estudantil chileno, onde uma das líderes era uma jovem mulher comunista [Camila Vallejo], que era o mais aberta possível a tomar decisões “horizontais”, ao invés de ser um comité central a decidir tudo. Mas ao mesmo tempo, quando a liderança é necessária, esta deve ter exercida. Se começarmos a pensar nestes termos, teremos, na esquerda, um sistema mais flexível de organização. Existem grupos dentro do OWS que estão a convencer pessoas a aderir ao Partido Democrata de forma a que este apoie a reivindicações do movimento, e caso não se verifique, a lançar candidaturas contra este. Existe uma ala a fazer este tipo de coisas, mas não são de todo a maioria.
No fim do seu livro, não fornece muitas respostas, mas deseja abrir um diálogo sobre como sair deste momento de multiplicação das crises do capitalismo e de desigualdade económica generalizada. Acha que tal saída pode surgir do movimento Occupy?
Poderia possivelmente. Se o movimento sindical se mover em direção a formas mais geográficas de organização, e não apenas baseadas no local de trabalho, então as alianças entre movimentos sociais urbanos e sindicatos poderiam ser muito mais fortes. O que é interessante é que existe uma longa história de colaborações deste tipo que foram bem sucedidas. Se o OWS desenvolver um caminho de maior colaboração com o movimento sindical, então poderá surgir um sem número de ações políticas possíveis. O meu livro é uma base para explorar todas essas possibilidades, sem descartar nenhuma, pois não sabemos como será a forma mais bem sucedida de organização. Mas existe, neste momento, um enorme espaço para o ativismo político.
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*David Harvey, geógrafo e teórico social, professor de antropologia no Graduate Center da City University de Nova Iorque, e um dos 20 académicos das humanidades mais citado de todos os tempos, dedicou a sua carreira a explorar a forma como as cidades se organizam, o que elas fazem, quais as suas principais realizações.
ENTREviSTA DE MAx RivliN-NADlER. TRADução HuGo DiAS
Fonte:  Revista Vírus, site português de Portugal.
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