Michel Aires de Souza*
Muitas
pessoas ignoram o que querem e também o que sentem, são cheias de
dúvidas e indecisões, parecem não possuir uma experiência definida de
seus desejos e necessidades. Comumente sentem angustia, solidão, medo e
ansiedade. Seu senso de realidade surge daquilo que os outros dizem e
pensam dela. São pessoas vazias que não possuem autonomia e renunciam a
uma vida autêntica e feliz. Para essas pessoas nada melhor do que seguir
o exemplo das crianças. Ser criança é tornar-se livre. O filósofo
alemão Nietzsche compreendeu muito bem essa verdade.
A
criança é pura espontaneidade, necessidade, liberdade, não sente culpa,
não tem malicia, é inocência e sua vida consiste em brincar. Ser
criança é não guardar mágoa, elas esquecem o que fazemos a elas. Elas
vivem na volúpia do momento, são seres que não conhecem o tempo, vivem
dia-a-dia, hora-a-hora. São seres extraordinários, que sempre falam a
verdade. Já nós adultos construímos nossas vidas com os muros da
mentira. Iludimo-nos, enganamo-nos e achamos que a culpa de nossas
frustrações está na vida. O que ignoramos é que para viver devemos
abandonar uma grande parte de nossos sonhos e desejos. Os sentimentos
gregários, a moral, a religião, as crenças e as ideologias nos levam a
uma vida inautêntica. Por estas razões, devemos prestar atenção às
crianças.
Para
Nietzsche a criança é um espírito livre, ela representa a superação dos
valores morais e a criação de novos valores. Ela é pura vontade, puro
desejo e pura espontaneidade. A criança é a afirmação da vida, mas
também é o esquecimento. Ela deseja a vida, o prazer e as brincadeiras,
mas não sente culpa por isso. Elas se esquecem das surras e das
injurias.
Somente as crianças podem criar novos valores. Somente elas podem criar
novos universos através de sua imaginação. A criança é em sua própria
natureza um artista. Ao brincar ela cria e recria, constrói e destrói,
pinta e apaga tal como o artista. Ela é livre para criar novas
realidades. Quando somos crianças somos espontaneidade, liberdade e
vontade. A criança parte de uma perspectiva afetiva. Ela não entende o
mundo dos adultos, faz porque deseja, faz porque gosta, faz sem pensar.
Essa capacidade da criança de liberdade e autonomia foi perdida
quando nos tornamos adultos. O homem abandonou seu lado infantil. O
desejo e a afetividade humana foram reprimidas para não exercerem sua
força e tornarem-se dóceis. Elas foram subjugadas pelo convívio
social. O homem civilizado, que sabe diferenciar entre o útil e o
prejudicial, o bem e o mal, o certo e errado, internalizou as normas e
regras de conduta, os modos de ser, de pensar, de agir, de sentir e de
valorizar por um longo processo de “domesticação” no interior das
práticas sociais. O homem moral, responsável, virtuoso, de caráter
firme e reto surgiu por um longo processo doloroso na história da
humanidade. Foi longo o processo que transformou os “impulsos animais”
em “impulsos humanos”. Se estudarmos a história das leis penais e das
práticas religiosas em toda história da civilização vamos perceber que
elas formam um sistema de crueldades, que domesticaram o homem para
viver em sociedade. O homem aprendeu a ser bom e responsável através das
leis penais e da religião.
Através dos bons costumes o homem civilizado aprendeu a sufocar
seus afetos e seus desejos. Ele não segue o seu sentido interno tal como
a criança. Ele nem ao menos sabe o que sente e o que quer. Para muitos
homens é difícil se libertar do peso, da carga que nos impõe a vida e
dos valores que nos subjugam. Somente a criança é livre e autônoma. “A
criança é a inocência, e o esquecimento, um novo começar, um brinquedo,
uma roda que gira sobre si, um movimento, uma santa afirmação”.
(NIETZSCHE, 2004, p.35)
Para Nietzsche a natureza humana é uma pluralidade de impulsos e
afetos tal como percebemos nas crianças. Desse ponto de vista, a
natureza humana surge ligada à vontade, ao poder e ao crescimento da
força. Todos os impulsos humanos buscam dominar e todos eles buscam
prevalecer uns sobre os outros. Essa luta é a causa da eterna
impermanência da natureza humana. O espírito humano é uma estrutura
social de impulsos e afetos ávidos por dominar. O objetivo da vida não é
a busca da auto-conservação ou busca da felicidade, o que todo ser vivo
quer é um pouco mais de força, um pouco mais de potência. A vida é
vontade de potência.
A vontade de potência é causalidade afetiva. A afetividade, entendida
como uma pluralidade de impulsos e desejos, seria a causa atuante da
vontade. “A vontade não é apenas um complexo de sentir e pensar, mas,
sobretudo um afeto: aquele afeto de comando (...)” (NIETZSCHE, 2003,
p.24). A vontade éum afeto de assenhorear-se, desejo de ter, dominar tal
como a criança experimenta. O desejo aumenta o que se quer possuir e
até cresce quando não satisfeito. O conceito de vontade se estende a
toda vida. Onde há força, há uma vontade atuante. A vontade é a
essência de qualquer poder. Dessa forma, o mundo é vontade na mesma
medida em que é afetividade. Afetividade é o termo que exprime o mundo
mecânico e a pluralidade da nossa vida interior.
Nietzsche não vê a vida como algo trágico. Suas palavras de horror e
miséria em relação à vida, que podem ser verificadas em seus textos,
representam na verdade um prenúncio de liberdade, de superação da
condição humana. A moral, a religião, a metafísica, que supostamente
afirmam a autonomia da vontade, tornando o homem responsável pelos seus
atos e arrogando-se no direito de julgá-lo, na verdade representam o
cárcere da alma. Nietzsche se afasta dessa tradição moral e vê a vida
como obra de arte. Na vida não há regras. O mundo é estético e não
moral. O mundo é uma eterna ausência de ordem, onde não há encadeamento
de formas, nem de beleza, mas somente luta e contradição. O mundo é
fluxo, devir, é o caos de formas incessantes, eternamente mudando,
eternamente criando e recriando. O mundo é como uma criança brincando,
eternamente construindo e destruindo. Dessa concepção estética do mundo
surge o fundamento da autonomia humana. O homem é um eterno criador de
valores. O homem tem a liberdade de criar e recriar novos valores,
fazendo e desfazendo avaliações. Com isso, ele deve ser como uma criança
ao brincar, pois construir e destruir faz parte da natureza infantil. A
criança está além do bem e do mal.
Bibliografia
NIETZSCHE, F. A gaia ciência. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
NIETZSCHE,
F. Além do bem e do mal: Prelúdio a uma filosofia do porvir. Trad.
Paulo César de Souza. São Paulo, Comp. das Letras, 2003.
NIETZSCHE, F. Assim Falou Zarathustra. Martin Claret: São Paulo, 2004 ----------------------
* Professor
Fonte: http://filosofonet.wordpress.com/2012/08/07/nietzsche-por-que-devemos-nos-tornar-criancas/
Foto: Tales. Filho do professor Michel Aires de Souza.
Nenhum comentário:
Postar um comentário