terça-feira, 7 de agosto de 2012

O arauto do declínio

Rosane Pavam*

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“Não existe uma pessoa amável dentro de mim. 
Por trás do meu frio exterior, 
há apenas água gelada”
Ao escritor norte-americano Gore Vidal, morto de pneumonia aos 86 anos de idade, dia 31, coube a tarefa de anunciar o declínio de um ideal democrático a simbolizar seu país. Autor de 25 romances, dois livros de memórias e uma poderosa ensaística, Vidal tornou-se o arauto de uma situação política frequentemente negada. “Deveríamos parar com essa tagarelice sobre sermos a maior democracia do planeta, quando nem mesmo exercemos uma. O que somos é uma espécie de república militarizada”, ele disse certa vez, inconformado com as consequências da Guerra do Iraque e da liderança de George W. Bush.
Para Vidal, que concorrera sem sucesso ao Congresso e ao Senado apenas depois de se estabilizar financeiramente como autor de roteiros para a televisão e o cinema, nos anos 1950 e 1960, o presidente Bush soubera dos ataques às Torres Gêmeas antecipadamente e os utilizara em proveito político. Mesmo os que defendiam como superior a capacidade de Gore Vidal de julgar a história, revelada em volumes como United States: Essays 1952-1992, negavam a validade de uma avaliação como essa e outras recentes.
Um consenso silencioso ditava ainda em Vidal um autor incapacitado para a ficção, já que apenas saberia expor a exuberante opinião própria. Mas como seria possível negar-lhe o dom de observar seu tempo com prosa refinada e humor ácido? E, ao fim, ele escreveu grandes romances, como Juliano, sobre o imperador que tentou converter
os cristãos ao paganismo, e livros de senso balzaquiano como Kalki, no qual, por exemplo, durante uma reunião social, uma mulher com câncer exercia o status nascido da própria doença.
Apoiado por uma convivência de 53 anos com Howard Auster, Vidal não parecia se incomodar com o que diziam dele. O escritor Italo Calvino acreditava que, morador da Itália por muitos anos e apresentado com glamour em Roma, de Fellini, Vidal não tinha um inconsciente. “Sou exatamente o que aparento ser”, justificou o americano. “Não há uma pessoa amável, cálida, dentro de mim. Por trás de meu frio exterior, depois que você quebra o gelo, encontra água gelada.”
Ele não deixava que se esquecessem de sua amizade com Eleanor Roosevelt ou de seu parentesco com Jackie Kennedy. Parecia apoiar-se em boa linhagem para dizer as coisas difíceis a um país que, aos poucos, perdia o senso de humor e a liberdade.
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 *Rosane Pavam é jornalista, editora de Cultura de CartaCapital . Autora do livro O Sonho Intacto - Nas Palavras de Ugo Giorgetti e do blog Contos Invisíveis.
Fonte:  http://www.cartacapital.com.br/cultura/o-arauto-do-declinio/?autor=24

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