DENIS LERRER ROSENFIELD*
Um crime literalmente horroroso foi cometido na cidade
de Porto Alegre, num destes últimos dias, envolvendo uma família de
classe média alta. Um bioquímico, supostamente por motivos de ciúme e
traição de sua mulher, matou-a a facadas. Aliás, segundo a perícia,
algumas dessas facadas, antes das mortais, foram para fazê-la sofrer,
prenúncio vívido do que lhe aconteceria a seguir. Não satisfeito, o
assassino foi ao quarto do filho do casal, de 5 anos, e o esfaqueou,
matando-o na própria cama. O motivo novamente alegado foi o de que a
criança não poderia viver sem a mãe.
Friso a expressão "motivo alegado" com o intuito de mostrar a
futilidade da razão apresentada e seu caráter particularmente cruel.
Note-se que não estamos diante de um problema "social", na medida em que
o casal vivia num bairro de classe média alta e desfrutava boa condição
de vida: a mulher era enfermeira e o marido, funcionário público e
sócio de um laboratório.
Acontece que esse crime foi simultâneo ao de um americano que
assassinou várias pessoas numa sessão de cinema, no Estado do Colorado.
Logo depois, outro episódio semelhante teve lugar também nos EUA, com o
assassinato de vários membros da seita sikh, de origem indiana.
O assassinato, a facadas, de uma mulher e de seu filho de 5 anos
mereceu apenas algumas páginas regionais na seção policial, enquanto os
dois episódios americanos ocuparam manchetes de jornais nacionais e da
mídia em geral. Tornou-se uma grande notícia, exigindo comentários de
"especialistas".
Ora, boa parte dos ditos especialistas convocados apressou-se a
declarar que o problema residia na ausência de controle de armas nos
EUA. Se eles seguissem o exemplo do Brasil, tudo estaria resolvido!
O politicamente correto brasileiro, seguindo o seu congênere
americano, dito "progressista", logo se erigiu em juiz dos crimes
americanos, advogando o desarmamento naquele país e, indiretamente, no
nosso. É como se os legisladores americanos devessem aprender com os
nossos! Esse tipo de formador de opinião imediatamente alardeou que o
Brasil conhece a solução, podendo ensiná-la a esses americanos
ignorantes.
Considerando que a justiça exige critérios equitativos, poder-se-ia
perguntar: por que o crime brasileiro não suscitou toda uma campanha
midiática pelo desarmamento de facas? Nem foco midiático houve! Se os
culpados são os instrumentos, e não as pessoas que os utilizam, seria
razoável estabelecer a mesma exigência. A culpa estaria na faca, tal
como no revólver.
Seguindo o mesmo raciocínio, as mortes no trânsito, tendo como
instrumento os automóveis, deveriam também levar a uma campanha pelo
"desarmamento" dos carros, visando à sua proibição. Não seriam os
motoristas que matam, e sim os veículos. Pense-se, por exemplo, no
motorista que atropelou dezenas de ciclistas numa manifestação, também
em Porto Alegre, em fevereiro de 2011. As imagens, divulgadas
nacionalmente, demonstram que só a sorte explica a ausência de mortes.
No início de julho, um motorista sem habilitação atropelou mais de 20
torcedores do Corinthians que comemoravam a conquista da Taça
Libertadores da América.
Analogamente, a responsabilidade dos atos das pessoas que fumam não
seria dos fumantes, mas das indústrias do setor. Pois, da mesma maneira,
conta o instrumento, e não aquele que exerce essa escolha.
Todos esses casos mostram a desresponsabilização do agente, como se
fosse um menor incapaz que não sabe o que está fazendo. Por via de
consequência, deveria ser tutelado pelo Estado, que saberia o que é
melhor para ele. Ora, se esse raciocínio fosse válido, deveríamos,
então, passar ao controle das facas, instrumento mortal nas mãos de um
assassino. Diga-se de passagem que, segundo os especialistas, um
assassino que usa de faca é muito mais cruel do que o que se utiliza de
um revólver.
Vejamos alguns dados extraídos do Small Arms Survey, um projeto de
pesquisa do Graduate Institute of International and Development Studies,
localizado em Genebra. Ele é uma referência importante em termos de
informação pública sobre armas de pequeno porte e violência armada e
serve como fonte de dados para governos, pesquisadores e ativistas. Os
dados sobre homicídios são do United Nations Office on Drugs and Crime
(ou seja, da ONU).
Existem 270 milhões de armas de fogo em mãos de civis nos EUA. Com
esse número astronômico, o país é o primeiro colocado em armas de fogo
em todo o mundo. Porém, no último ano, houve 9.146 mil homicídios com
armas de fogo nesse país, isto é, 2,97 por 100 mil habitantes. A Suíça
ocupa a terceira colocação em posse de armas por civis: tem 3,4 milhões.
Em cada 100 pessoas, 45,7 possuem armas, praticamente a metade da
população. No último ano houve 57 homicídios com armas de fogo no país.
Isto é, 0,77 por 100 mil habitantes. Logo, não há nenhuma relação entre o
número de armas de fogo em posse dos civis e homicídios.
O Brasil tem 14 milhões de armas de fogo em mãos civis. Em cada 100
pessoas, apenas 8 possuem armas. No entanto, o alto índice de homicídios
por armas de fogo - 34.678 no último ano, ou 18,1 por 100 mil
habitantes - desqualifica a tese segundo a qual "poucas armas, menos
homicídios". Do mesmo modo, os índices dos EUA refutam a tese de país
belicista e violento. Se alguma inferência pode ser feita, é a seguinte:
quanto mais armas, menos homicídios. No Brasil, as armas estão em poder
dos bandidos - sem nenhum controle do Estado!
O grande problema dessa primazia do politicamente correto no Brasil é
o tipo de recorte de notícias e comentaristas, numa espécie de
intoxicação midiática. Um crime como o cometido a facadas, cruel entre
todos, mostra quanto algo aparentemente anódino e reservado a páginas
policiais pode ganhar significação visto na perspectiva de elucidação do
controle e tutela do cidadão.
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* PROFESSOR DE FILOSOFIA, NA
UFRGS. E-MAIL:, DENISROSENFIELD@TERRA.COM.BR
Fonte: Estadão on line, 14/08/2012
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