quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Voar

José Tolentino Mendonça*

 
Sei de uma jovem que voa. Chama-se Natsumi Hayashi, é fotógrafa e vive em Tóquio. Digo que ela voa, por ver as suas fotografias, de que gosto tanto. A bem dizer não tenho outras provas. Mas nas suas fotografias, acreditem, ela está sempre a voar. E são muitas centenas de imagens, a horas diferentes, em lugares distantes. Onde quer que se faça ver, Natsumi Hayashi levita, como se pudesse deslocar-se em voo. Às vezes surge um registo por dia, no esplêndido diário, em forma de blogue, que ela mantém. Se quiserem ir espreitar, o endereço é o seguinte: http://yowayowacamera.com/ . Quem lá for fica a saber que esta conversa é a sério e passará a conhecer alguém que voa.

 

Às vezes perguntam-me onde é que no mundo está a poesia. Acho que todos sabemos como o mundo pode ser um lugar prosaico e violento, sem fulgor nenhum, uma máquina de tortura para as questões do espírito, uma parede implacável que nos derruba. Mas não será apenas isso o mundo. E mesmo quando ele se parece reduzir dolorosamente a isso, não podemos esquecer que todos os dias ele é salvo. A mim faz-me bem reler o poema que Jorge Luís Borges escreveu sobre aqueles que salvam o mundo. Chama-se “Os justos”: 

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«Um homem que cultiva seu jardim, como sugeria Voltaire.
O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sur jogam um silencioso xadrez.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que leem os tercetos finais de certo canto.
O que acaricia um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão salvando o mundo».


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No sentido do poema de Borges, eu não tenho dúvidas que as fotografias de Natsumi Hayashi estão a salvar o mundo. O primeiro juízo que se faz sobre elas é que são estranhas. Olhamos repetidamente para perceber o que nelas acontece, como é que a situação que relatam foi produzida, essas coisas. É verdade, que se pode arrumar depressa o assunto dizendo: “está bem, é uma miúda aos pulos em contextos diversos de um quotidiano urbano, nada mais”. Porém, dizer isso, anula o trabalho de restauração do mundo que está a ser posto em prática. As imagens de Natsumi Hayashi documentam o sonho que todos temos, pois como Ícaro, o herói grego, também nós aspiramos por sair do nosso labirinto. Ícaro experimentou sair com umas asas de cera e penas fabricadas por Dédalo, seu pai. E nós? A história humana, a grande e a pequena história humana, não passa de um estaleiro imenso ao serviço da invenção de asas. Natsumi Hayashi como que nos ajuda a pedir: “O voo nosso de cada dia, nos dá hoje”. É uma oração necessária. Sim, é possível a cada um de nós erguer-se do peso das coisas, transcender-se, perfurar a cápsula de penumbra e desânimo que se abate sobre a vida, elevar-se, recolocar-se perante a linha límpida do horizonte.

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* Teólogo. Escritor. Poeta.
In Diário de Notícias (Madeira)
27.03.11

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