Lições de neurociência e física quântica
com o presidente do STF
Nem as flores do cerimonial aguentavam mais. Após dois dias de
congresso, com discussões intermináveis sobre a missão do Ministério
Público no Brasil, os antúrios brancos do arranjo que adornava a mesa
dos palestrantes começavam a murchar. E os botânicos bem sabem que essa
flor fálica perde muito de sua dignidade quando murcha.
Foi
essa recepção pouco excelsa que o presidente do Supremo Tribunal
Federal, Carlos Ayres Britto, encontrou ao chegar a um centro de
convenções na Barra da Tijuca, numa tarde de sexta-feira em agosto. Em
seu primeiro dia de recesso desde o início do julgamento do mensalão, o
ministro tomou um avião para o Rio de Janeiro, onde se comprometera
meses antes a fazer o discurso de encerramento do 1º Congresso
Internacional do Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais do Ministério
Público dos Estados e da União.
Quem conhece Ayres Britto sabe o gáudio que lhe desperta um microfone
aberto. Foi muito oportuno, portanto, que o tema de sua conferência
fosse livre, conforme ele próprio salientou quando chamado ao púlpito.
Naquela tarde, o ministro aproveitou essa liberdade para dividir com os
cerca de 200 procuradores da audiência reflexões sobre matérias de seu
interesse: neurociência e física quântica.
Desencantado com o estudo técnico das leis, Ayres Britto decidiu
iniciar-se nessas disciplinas “para formular uma teoria jurídica mais
arejada e contemporânea”. No trajeto para o Rio, o ministro veio lendo O Cérebro de Buda,
do californiano Rick Hanson, livro que promete condicionar o cérebro
para a felicidade a partir do pleno conhecimento do órgão e de alguns
exercícios de meditação.
“O cérebro humano tem 1 quilo e 400 gramas de um tecido semelhante a um
tofu”, explicou o ministro, fazendo uma cuia com as mãos. “Ele contém 1
trilhão vírgula 1 bilhão de células, incluindo 100 bilhões de neurônios
que se conectam entre si. Para a neurociência, eles se conectam também
com neurônios alheios. Já a física quântica diz que os neurônios se
comunicam com objetos. E espiritualistas dizem que eles se comunicam com
espíritos de pessoas que já faleceram.”
Um procurador de sotaque português e jeito folgazão sentado na segunda
fileira cutucou um compatriota: “Mas de que fumo este senhor fez uso?”
Alheio ao pasmo do colega, o ministro passou a discorrer sobre a
diferença entre os dois lados do cérebro. “O lado direito é o sentimento
e o esquerdo, o pensamento”, sintetizou. “Quando acionamos o direito,
ficamos em estado de contemplação. Passamos a olhar as coisas
desinteressadamente, abrimos o espírito para o mundo circundante,
cortamos o cordão umbilical com o passado e o futuro. Entramos em estado
de empatia com a existência.”
O procurador português ainda estava atônito quando Ayres Britto engatou a
segunda: “Quem toma a iniciativa desse diálogo não é o ser humano, mas
os objetos circundantes. As coisas falam por si... lêncio. É o real que
se dá a quem está em estado de presentificação. Já o lado esquerdo do
cérebro é o lugar do focus, do locus, é o hábitat do pensamento”, falou, interrompendo a si mesmo com uma risada gostosa.
uando
sentiu que estava perdendo o interesse da audiência, Ayres Britto
recorreu a uma conhecida arma de seu repertório para retomar as rédeas:
as metáforas marítimas. O lado direito do cérebro, comparou o ministro,
tem a liberdade do mar aberto, e o lado esquerdo, a segurança do cais.
“O que os homens não sabem é que o pior modo de ficar à deriva é no cais
do porto. As embarcações podem se sentir mais seguras ali, mas foram
feitas para o mar aberto. É preciso coragem para soltar as amarras do
coração”, arrematou. Ao lado do ministro, a ministra-chefe da Secretaria
de Direitos Humanos, Maria do Rosário, abriu um sorriso – ela foi a
única integrante da mesa de encerramento a atravessar os sessenta
minutos da fala de Ayres Britto sem se distrair com o celular.
Naquele ponto, o ministro-poeta achou oportuno virar o leme de sua
exposição rumo à Grécia dos pré-socráticos. No filósofo Heráclito de
Éfeso, encontrou um aliado de peso para discorrer sobre a dualidade dos
aspectos da vida, que o cérebro só faz refletir. “Heráclito dizia que em
toda contraposição visível há uma harmonia invisível”, prosseguiu. Para
ilustrar seu raciocínio, citou as duas margens de um rio que abrigam a
mesma corrente fluvial, o enlace do espermatozoide com o óvulo que gera
um só zigoto e o encontro do céu e da terra na linha do horizonte. Até o
fim da tarde, o ministro citaria ainda Aristóteles, Shakespeare,
Nietzsche, Van Gogh, Fernando Pessoa, Kandinsky, Guimarães Rosa e Ortega
y Gasset.
ouve
quem sentisse alívio quando Ayres Britto ameaçou encerrar precocemente
sua exposição, aos 42 minutos de palestra. Mas ele lembrou que ainda não
havia contemplado seu outro tema de estudo: a física quântica.
Prometendo ligeireza, tratou de enfronhar-se por prótons, nêutrons e
elétrons. Quando o ministro fez uma provocação póstuma a Einstein,
dizendo que Deus joga dados, o procurador português deu-se por vencido,
saiu do salão e foi comer um brioche na mesa do coffee break.
Entre os ouvintes que resistiram, estava o desenhista Mauricio de Sousa,
que foi ao congresso receber uma medalha de honra do Ministério Público
por “serviços prestados ao país”. Pouco impressionado com a física do
ministro, ele não desgrudou o olho do Twitter durante a palestra.
Só no final, Ayres Britto arriscou fazer a prometida ponte entre suas
reflexões e a prática do direito. “Será que as normas jurídicas não são
mutáveis, como tudo na vida?”Ele mesmo respondeu à pergunta retórica:
“Quanticamente, a resposta é sim. Juiz não é ácaro de processo, não é
traça de gabinete. O juiz é um ser da vida. Juiz tem que gostar de
poesia, de física quântica, de teatro.” Estava aberta a jurisprudência
para que o palestrante cantarolasse um trecho de Garota de Ipanema: “A be-leza que não é só minha/ Que também passa sozinha.” A plateia, agora minguada, preferiu não acompanhar o ministro.
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Reportagem por Mariano AmaroFonte: http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-72/esquina/memorial-de-ayres

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