quarta-feira, 12 de setembro de 2012

O “Doutor” na frente do nome alheio

Paulo Ghiraldelli Jr.*

 

Irrita-me profundamente os jornalistas ou escritores vindos do que os americanos chamam de “gente da sociologia 101” e o que nós poderíamos chamar aqui de “sociologia de primeiro ano” ou “introdução à sociologia” (o mesmo para a filosofia 101 etc). É que há um período legítimo da vida de casa um para se deslumbrar com a descoberta da “opressão”. É algo da adolescência. Não pode aparecer em pessoas com mais de 21 anos de modo algum. Ao menos não como forma de deslumbramento intelectual. É como minissaia para coroa: um dedo a mais no vestido e ela poderia ser elegante, mas insiste no dedo a menos e fica vulgar. Como é duro ensinar algumas mulheres a usar a roupa correta! Meu Deus! É pior que ensinar garoto fazer o nó da gravata de modo a tornar o 101 da vida dele passageiro, antes de criar constrangimento e vergonha alheia.
A jornalista Eliane Brum não se cansa da sociologia 101. Vira e mexe ela retoma sua estadia no curso. Já havia notado essa sua insistência. Agora ela descobriu algo fantástico: suas pesquisas concluíram que o uso de “Dr.” para algumas pessoas é a hierarquia social incrustada na língua! (Artigo da Brum na Revista Época). Advogados, médicos etc. usufruem de um prestígio ilegítimo porque o povo brasileiro os chama de doutores! Ela quase chega a sugerir a barbárie: “doutor é quem tem doutorado”. Seus seguidores na Internet não se fizeram de rogados. Captaram a lição da aluna mestra e estão nessa campanha. São pessoas que entenderam uma lição americana, vinda inclusive de um amigo meu, Richard Rorty, à maneira que o eterno aluno de 101 entende, pela forma rasteira e mecânica e, enfim, erradíssima!
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 Richard Rorty
O aluno de 101, ou melhor, o eterno aluno de 101, em sociologia ou filosofia, é aquele que escuta falar em “burguesia como classe que explora o trabalhador” e então ele imagina que a conotação “explorar” deve ser entendida única e exclusivamente como “oprimir”. Ele não percebe que a palavra “explora” nesse caso só secundariamente, e só em alguns autores (Marx à frente), tem também essa conotação. O termo “explora” nesse caso é para ser tomado basicamente como ele aparece em frases como “o homem explora a floresta” ou “o homem explora a mina de ouro”. Desse modo, esse aluno de 101 também não percebe que o “doutor”, que tem origem social hierárquica, obviamente, pode não criar qualquer distinção para quem o recebe na função de pronome de tratamento. Ou seja, aparece em sua origem como uma forma de dividir pessoas, as “de cima” e as “de baixo”, mas não necessariamente permanece assim. Faz o papel da pequena ética, a etiqueta!
Falta ao estudante eterno de 101 a capacidade de abstração, de modo a ir às origens sociais e políticas da palavra e voltar para o campo da gramática, para o plano abstrato, que em princípio esconderia a “opressão” embutida, mas que justamente por mostrar-se demais não esconde absolutamente nada. Falta também ao eterno aluno de 101 a visão histórica correta, e não somente a apreensão do ponto de origem. Olhando o desenvolvimento da palavra, pode-se perceber que ela é usada não mais como forma de distinção que revele opressão e simplesmente, mesmo, como pronome de tratamento.
A jornalista Brum percebe isso, mas interpreta errado. Ela diz que nas cidades grandes não se chama mais o médico ou o advogado de “doutor”, que isso é coisa de gente do interior. Ora, nas cidades grandes o uso de “doutor” existe e assim continua exatamente porque não se vê nenhuma opressão velada em algo que é sabidamente, ao menos para essas pessoas da cidade grande, pronome de tratamento. Por essa percepção quase correta, mas acobertada por interpretação errada, Brum acaba então criando seu movimento infanto-juvenil que visa estancar o uso de “Dr.” em nossas relações. É ridículo.
Os gramáticos se dividem nessa questão: uns acham que doutor é pronome de tratamento e outros acham que doutor é título. Ora, doutor é as duas coisas. O que vale é que, nos dois casos, a hierarquização própria de uma sociedade escravagista vai ficando distante no tempo e à medida que o Brasil se torna moderno e mais democrático o pronome de tratamento, como forma meramente gramatical, ganha da palavra em sua conotação original marcada pela divisão classista. Não entender a dinâmica da história e suas nuances geográficas e históricas é exatamente o erro do que chamo aqui de eterno aluno de 101.
O comportamento de Brum é aquele comportamento típico de quem escuta o galo cantar e não sabe onde. Os americanos cruzaram teorias filosóficas e práticas políticas e criaram o movimento do politicamente correto. A ideia básica era reformar a linguagem para reformar o comportamento geral. Sabemos que isso dá certo. Sabemos que Rorty, Davidson e outros fizeram o certo quando bateram nessa tecla. Sabemos também que o politicamente correto ganhou batalhas e mudou mesmo comportamentos em benefício de relações menos bárbaras. Mas sabemos também que na prática política surgiram os militantes que, não percebendo a dinâmica histórica da vida das palavras, quiseram colocar o carro na frente dos bois. Então, todas as palavras que na origem pudessem ter uma história ruim de opressão não foram mais examinadas, mas censuradas. Surgiu a face burra do politicamente correto. Surgiu aquela face que deu à direita política nos Estados Unidos, há vinte anos, e agora aqui no Brasil, o direito de dizer que o politicamente é um movimento de idiotas. É nessa leva de críticos que Pondé se inseriu. Ele não fez justiça ao politicamente correto. Claro, ele não se interessa nem pela parte boa da coisa – é um direito dele como militante do conservadorismo. Então, fazendo o papel que lhe cabe, usou só dos exemplos vindos do eterno estudante de 101 para escrever o que escreveu e escreve. Deita e rola com isso.
Não posso fazer como os conservadores. Minha atividade filosófica não me permite. Como um servo da filosofia, como todo filósofo deve ser, tenho de fazer como Sócrates que, na visão de Schlick procurava antes o significado que a verdade (verdade é coisa da ciência, significado é coisa da filosofia). Assim, tenho de lembrar alguns e informar outros que quando Rorty falava em mudanças de comportamento linguístico para induzir mudanças gerais de comportamento, estava se referindo às narrativas e não exclusivamente às palavras. Quase nunca às palavras. Criar narrativas novas e ampliar o “espaço lógico” por meio de redescrições é a tarefa primordial da filosofia, dizia Rorty, em aspectos específicos, o que ela compartilharia com diretores de cinema, escritores, novelistas, desenhistas etc., sendo que estes trabalhariam em aspectos gerais. O politicamente correto, do modo que se desenvolveu após alguns anos, centrou-se na atividade de mudança de termos e desconsiderou as narrativas como um todo. Depois, centrou-se em tipos e, enfim, iniciou as fases de pesquisas que se casaram com certos ressentimentos de minorias. Veio então a onda horrível de querer cortar palavras dos discursos alheios. E isso deu vazão para a sede de censura que a direita diz que a esquerda possui, mas que, sabemos, ambas possuem. Particularmente hoje, enquanto escrevo, o STF está avaliando uma censura deste tipo que se quer impor contra Monteiro Lobato, por causa de certos termos de época que ele usou na sua obra!
O eterno aluno de 101 tem agora com Brum uma nova militância. Pois esse pessoal vai, durante bom tempo, descobrir origens malditas em palavras. Afinal, falar não é outra coisa senão, em boa medida, amaldiçoar e abençoar! Encontrar pecado no nascedouro de cada palavra é fácil, mas é também imbecil se não se vê a história da palavra no desdobramento da vida de determinada língua e linguagem.
Quando surgiram os primeiros doutorados no Brasil, então poderíamos ter escrito, a título de provocação, algo como “doutor é quem tem doutorado”. Mas isso, dito hoje, soa ridículo. Doutor é quem tem doutorado, por título, e doutor é quem recebe o pronome de tratamento “Dr.”. Brum não percebe isso e daqui uns dias ela irá conquistar mais garotas e garotos de quarenta anos para uma outra batalha, a de eliminar o “você” que, diferente do “tu”, tem origem oligárquica: trata-se do “Vossa Mercê” que virou “você”. Querem apostar?
Poderia falar mais sobre esse assunto. Mas creio que para o bom leitor já basta. Creio que dá para esse bom leitor – certamente não para o eterno aluno de 101 – agora ver a distinção entre a filosofia americana de ponta e o politicamente correto de traseira. Dá também para perceber como que a direita não tem toda a razão na crítica ao politicamente correto, e nem a esquerda pode mantê-lo desse modo, praguejando o mundo como fazem as Brums da vida.
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* Filósofo, escritor e professor da UFRRJ
Fonte:  http://ghiraldelli.pro.br/2012/09/11/o-doutor-na-frente-do-nome-alheio/
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