Paulo Ghiraldelli Jr.*
Irrita-me
profundamente os jornalistas ou escritores vindos do que os americanos
chamam de “gente da sociologia 101” e o que nós poderíamos chamar aqui
de “sociologia de primeiro ano” ou “introdução à sociologia” (o mesmo
para a filosofia 101 etc). É que há um período legítimo da vida de casa
um para se deslumbrar
com a descoberta da “opressão”. É algo da adolescência. Não pode
aparecer em pessoas com mais de 21 anos de modo algum. Ao menos não como
forma de deslumbramento intelectual. É como minissaia para coroa: um
dedo a mais no vestido e ela poderia ser elegante, mas insiste no dedo a
menos e fica vulgar. Como é duro ensinar algumas mulheres a usar a
roupa correta! Meu Deus! É pior que ensinar garoto fazer o nó da gravata
de modo a tornar o 101 da vida dele passageiro, antes de criar
constrangimento e vergonha alheia.
A jornalista Eliane Brum não se cansa da
sociologia 101. Vira e mexe ela retoma sua estadia no curso. Já havia
notado essa sua insistência. Agora ela descobriu algo fantástico: suas
pesquisas concluíram que o uso de “Dr.” para algumas pessoas é a
hierarquia social incrustada na língua! (Artigo da Brum na Revista Época).
Advogados, médicos etc. usufruem de um prestígio ilegítimo porque o
povo brasileiro os chama de doutores! Ela quase chega a sugerir a
barbárie: “doutor é quem tem doutorado”. Seus seguidores na Internet não
se fizeram de rogados. Captaram a lição da aluna mestra e estão nessa
campanha. São pessoas que entenderam uma lição americana, vinda
inclusive de um amigo meu, Richard Rorty, à maneira que o eterno aluno
de 101 entende, pela forma rasteira e mecânica e, enfim, erradíssima!
Richard Rorty
O aluno de 101, ou melhor, o eterno
aluno de 101, em sociologia ou filosofia, é aquele que escuta falar em
“burguesia como classe que explora o trabalhador” e então ele imagina
que a conotação “explorar” deve ser entendida única e exclusivamente
como “oprimir”. Ele não percebe que a palavra “explora” nesse caso só
secundariamente, e só em alguns autores (Marx à frente), tem também
essa conotação. O termo “explora” nesse caso é para ser tomado
basicamente como ele aparece em frases como “o homem explora a floresta”
ou “o homem explora a mina de ouro”. Desse modo, esse aluno de 101
também não percebe que o “doutor”, que tem origem social hierárquica,
obviamente, pode não criar qualquer distinção para quem o recebe na
função de pronome de tratamento. Ou seja, aparece em sua origem como uma
forma de dividir pessoas, as “de cima” e as “de baixo”, mas não
necessariamente permanece assim. Faz o papel da pequena ética, a
etiqueta!
Falta ao estudante eterno de 101 a
capacidade de abstração, de modo a ir às origens sociais e políticas da
palavra e voltar para o campo da gramática, para o plano abstrato, que
em princípio esconderia a “opressão” embutida, mas que justamente por
mostrar-se demais não esconde absolutamente nada. Falta também ao eterno
aluno de 101 a visão histórica correta, e não somente a apreensão do
ponto de origem. Olhando o desenvolvimento da palavra, pode-se perceber
que ela é usada não mais como forma de distinção que revele opressão e
simplesmente, mesmo, como pronome de tratamento.
A jornalista Brum percebe isso, mas
interpreta errado. Ela diz que nas cidades grandes não se chama mais o
médico ou o advogado de “doutor”, que isso é coisa de gente do interior.
Ora, nas cidades grandes o uso de “doutor” existe e assim continua
exatamente porque não se vê nenhuma opressão velada em algo que é
sabidamente, ao menos para essas pessoas da cidade grande, pronome de
tratamento. Por essa percepção quase correta, mas acobertada por
interpretação errada, Brum acaba então criando seu movimento
infanto-juvenil que visa estancar o uso de “Dr.” em nossas relações. É
ridículo.
Os gramáticos se dividem nessa questão:
uns acham que doutor é pronome de tratamento e outros acham que doutor é
título. Ora, doutor é as duas coisas. O que vale é que, nos dois casos,
a hierarquização própria de uma sociedade escravagista vai ficando
distante no tempo e à medida que o Brasil se torna moderno e mais
democrático o pronome de tratamento, como forma meramente gramatical,
ganha da palavra em sua conotação original marcada pela divisão
classista. Não entender a dinâmica da história e suas nuances
geográficas e históricas é exatamente o erro do que chamo aqui de eterno
aluno de 101.
O comportamento de Brum é aquele
comportamento típico de quem escuta o galo cantar e não sabe onde. Os
americanos cruzaram teorias filosóficas e práticas políticas e criaram o
movimento do politicamente correto. A ideia básica era reformar a
linguagem para reformar o comportamento geral. Sabemos que isso dá
certo. Sabemos que Rorty, Davidson e outros fizeram o certo quando
bateram nessa tecla. Sabemos também que o politicamente correto ganhou
batalhas e mudou mesmo comportamentos em benefício de relações menos
bárbaras. Mas sabemos também que na prática política surgiram os
militantes que, não percebendo a dinâmica histórica da vida das
palavras, quiseram colocar o carro na frente dos bois. Então, todas as
palavras que na origem pudessem ter uma história ruim de opressão não
foram mais examinadas, mas censuradas. Surgiu a face burra do
politicamente correto. Surgiu aquela face que deu à direita política nos
Estados Unidos, há vinte anos, e agora aqui no Brasil, o direito de
dizer que o politicamente é um movimento de idiotas. É nessa leva de
críticos que Pondé se inseriu. Ele não fez justiça ao politicamente
correto. Claro, ele não se interessa nem pela parte boa da coisa – é um
direito dele como militante do conservadorismo. Então, fazendo o papel
que lhe cabe, usou só dos exemplos vindos do eterno estudante de 101
para escrever o que escreveu e escreve. Deita e rola com isso.
Não posso fazer como os conservadores.
Minha atividade filosófica não me permite. Como um servo da filosofia,
como todo filósofo deve ser, tenho de fazer como Sócrates que, na visão
de Schlick procurava antes o significado que a verdade (verdade é coisa
da ciência, significado é coisa da filosofia). Assim, tenho de lembrar
alguns e informar outros que quando Rorty falava em mudanças de
comportamento linguístico para induzir mudanças gerais de comportamento,
estava se referindo às narrativas e não exclusivamente às palavras.
Quase nunca às palavras. Criar narrativas novas e ampliar o “espaço
lógico” por meio de redescrições é a tarefa primordial da
filosofia, dizia Rorty, em aspectos específicos, o que ela
compartilharia com diretores de cinema, escritores, novelistas,
desenhistas etc., sendo que estes trabalhariam em aspectos gerais. O
politicamente correto, do modo que se desenvolveu após alguns anos,
centrou-se na atividade de mudança de termos e desconsiderou as
narrativas como um todo. Depois, centrou-se em tipos e, enfim, iniciou
as fases de pesquisas que se casaram com certos ressentimentos de
minorias. Veio então a onda horrível de querer cortar palavras dos
discursos alheios. E isso deu vazão para a sede de censura que a direita
diz que a esquerda possui, mas que, sabemos, ambas possuem.
Particularmente hoje, enquanto escrevo, o STF está avaliando uma censura
deste tipo que se quer impor contra Monteiro Lobato, por causa de
certos termos de época que ele usou na sua obra!
O eterno aluno de 101 tem agora com Brum
uma nova militância. Pois esse pessoal vai, durante bom tempo,
descobrir origens malditas em palavras. Afinal, falar não é outra coisa
senão, em boa medida, amaldiçoar e abençoar! Encontrar pecado no
nascedouro de cada palavra é fácil, mas é também imbecil se não se vê a
história da palavra no desdobramento da vida de determinada língua e
linguagem.
Quando surgiram os primeiros doutorados
no Brasil, então poderíamos ter escrito, a título de provocação, algo
como “doutor é quem tem doutorado”. Mas isso, dito hoje, soa ridículo.
Doutor é quem tem doutorado, por título, e doutor é quem recebe o
pronome de tratamento “Dr.”. Brum não percebe isso e daqui uns dias ela
irá conquistar mais garotas e garotos de quarenta anos para uma outra
batalha, a de eliminar o “você” que, diferente do “tu”, tem origem
oligárquica: trata-se do “Vossa Mercê” que virou “você”. Querem apostar?
Poderia falar mais sobre esse assunto.
Mas creio que para o bom leitor já basta. Creio que dá para esse bom
leitor – certamente não para o eterno aluno de 101 – agora ver a
distinção entre a filosofia americana de ponta e o politicamente correto
de traseira. Dá também para perceber como que a direita não tem toda a
razão na crítica ao politicamente correto, e nem a esquerda pode
mantê-lo desse modo, praguejando o mundo como fazem as Brums da vida.
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* Filósofo, escritor e professor da UFRRJ
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/2012/09/11/o-doutor-na-frente-do-nome-alheio/
Imagem da Internet


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