Walnice Nogueira Galvão *

Não é tarefa simples classificar Michael Moore: é ele um tribuno, um
publicista? Multimídia ele é, pois escreve; faz cinema documentário;
arriscou-se em filmes de ficção, até como ator; tem ou teve programas de
televisão; faz turnês de conferências mundo afora arregimentando
multidões; mantém um site e um blog visitadíssimos.
Seus livros acabaram ficando meio obscurecidos pela repercussão dos
filmes. Fato compreensível, pois nem o mais extraordinário best-seller
conseguiria o número de leitores e o alcance instantâneo do planeta
inteiro graças à imagem, que dispensa tradução. O cinema, afinal, é uma
arte de massas.
No entanto, os livros são fundamentais para se compreender o percurso
desse grande militante. E não custa lembrar que cada um deles ficou por
meses na lista dos mais vendidos do "New York Times".
O mais recente, "Adoro Problemas", é uma autobiografia, registrando
os episódios cruciais de seu percurso desde a infância, proveniente que é
de uma família de imigrantes irlandeses. Somos inteirados de suas
raízes na prosperidade da classe operária de pós-guerra, aquela que
tinha casa própria, carro, filhos estudando, viagem anual de férias e
era um modelo para o resto do mundo. E que foi depois sistematicamente
detonada.
O autor dá-nos uma boa visão da histeria coletiva que suscitou ao
denunciar a invasão do Iraque e o conluio da Casa Branca para impor a
falsa versão da existência de "armas de destruição em massa". Enquanto
isso, corria à socapa o favorecimento aos fabricantes de armamento, bem
como a outras empresas, já contratadas de antemão e até pertencentes a
membros do governo, sinistramente especializadas em restauração
pós-guerra do país invadido.
Conta ainda como, por causa das denúncias que fez, recebeu ameaças de
morte pela televisão, planos de plantar bombas em sua casa, insultos e
ataques físicos pessoais. E vai relatando outros atos de protesto de
que, sempre à sua maneira despretensiosa, participou. Fica claro que a
cada passo estava sendo forjado um grande Indignado, solidário dos
Indignados do mundo todo. Nem é preciso dizer que sua especialidade, a
denúncia envolta em riso, continua em ação.

Seus livros anteriores ("Downsize This!" e "Stupid White Men - Uma
Nação de Idiotas"), de leitura muito proveitosa, têm na mira as
contravenções de colarinho-branco. Começam por enfrentar seu primeiro
alvo, a General Motors, a maior empresa do mundo. A partir de sua
cidadezinha em Michigan, Flint, Michael Moore viu a empresa, que dava
trabalho a praticamente todo mundo com seus 30 mil empregos, fechar a
fábrica e instalar-se no México. Ficaram para trás 30 mil famílias sem
recursos. Flint mergulhou no caos e o tecido urbano se desagregou, com
casas desocupadas à força, portas e janelas pregadas com tábuas, o
índice de criminalidade disparando.
Futuramente, a expansão nacional do processo acabaria por deflagrar a
chamada bolha imobiliária, mediante a qual os cidadãos perderam suas
casas, que podiam comprar, mas cujas dívidas crescentes não podiam
pagar.
Esses livros abordam também temas correlatos. Contam, por exemplo,
como foi montada, meses e até anos antes das eleições, a fraude que
levaria o perdedor George W. Bush à Presidência. É de estarrecer. O
candidato republicano desencavou um obsoleto dispositivo legal na
Flórida - onde o primeiro-irmão Jeb Bush era governador e onde se
perpetraria a falcatrua final - segundo o qual não pode votar quem
cumpriu pena. Ora, a maioria dos condenados americanos, como se sabe, é
constituída por negros, os quais, como se sabe também, votam no Partido
Democrata. Impediu-se de votar até quem tinha multa de trânsito: a
própria superintendente das eleições no Estado recebeu uma carta
proibindo-a de ir às urnas. E depois veio a questão da recontagem, que
sacramentaria a fraude.

É bom não esquecer tudo isso, só porque - o que não é pouco - um
movimento de opinião acabou derrubando a hegemonia de 30 anos do Partido
Republicano e quase metade de dinastia Bush, ao eleger Barack Obama
numa notável reviravolta.
Avançando mais, os livros mostram como os direitos humanos vão sendo
erodidos por um sistema que beneficia os milionários, enquanto míngua o
atendimento à saúde e o desemprego avulta. Por seu turno, a instituição
educacional vem preparando mais incompetentes e semianalfabetos, ao
mesmo tempo que o racismo persiste, sob disfarces insidiosos. Uma ida
aos bastidores da reciclagem do lixo revela como se destina a tapar os
olhos do povo, quando na verdade o ar e a água sofrem poluição
permanente para aumentar os lucros industriais. Os políticos não passam
de asseclas da plutocracia; para compensar, assiste-se à proliferação
das penitenciárias, lúgubre negócio em expansão.
Já no que diz respeito a seus filmes, tão populares e campeões de
bilheteria, pode-se creditar a Michael Moore um feito extraordinário:
elevar o documentário às alturas de arma política. Começou por "Roger e
Eu", que cobra a responsabilidade dos donos de multinacionais como a
General Motors pelos crescentes índices de desemprego. O segundo, "The
Big One", amplia a indagação para as demais empresas e para o país todo,
o "big one" do título. O terceiro, "Tiros em Columbine", aborda a
questão da criminalidade infantil, que se espraia pelos Estados Unidos,
com crianças assassinando outras crianças, colidindo com uma outra até
agora intocável, que é o controle da venda de armas.
"Fahrenheit 11 de Setembro" analisa o atentado ao World Trade Center e
as ligações entre as famílias Bush e Bin Laden. "Sicko - $O$ Saúde"
ataca o grande negócio dos planos de saúde, aliados à mercantilização da
medicina e à indústria de seguros, sempre em detrimento dos cidadãos.
Sua câmera não deixaria passar em branco a crise econômica global dos
últimos anos, a ela dedicando "Capitalismo: Uma História de Amor".
A contribuição desse cineasta foi reconhecida pelo público. "Roger e
Eu" foi, no histórico dos documentários de língua inglesa, campeão
absoluto em número de espectadores, até ser superado por "Tiros em
Columbine". Não tardou a premiação: receberia prêmios da Mostra
Internacional de São Paulo, o César francês, o do Festival de Cannes e o
Oscar por "Tiros em Columbine"; e mais um do Festival de Cannes por
"Fahrenheit 11 de Setembro". Enfim, o mundo começou a prestar atenção
nesse gordo bonachão com seu andar bamboleante, boné de beisebol e
óculos, que pratica a candura.
Livros e filmes são documentários investigativos e politicamente
engajados da melhor qualidade. Narrador e protagonista de suas obras,
dedica-se com toda a pachorra a uma variante da desobediência civil que,
optando pelo humor, consiste em ser chato e fazer perguntinhas
impertinentes. Apesar da gravidade do que tratam, são divertidíssimos e
se entregam à demolição através do humor.
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* Walnice Nogueira Galvão, professora emérita da FFLCH-USP.
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