Antonio Prata*
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Outrora onipresente em desprivilegiadas privadas públicas, ele deixou a vida para entrar na história
Semana passada, quando o explosivo conluio entre uma moqueca baiana e
uma ressaca homérica me levou, às pressas, a buscar asilo no banheiro de
um boteco, dei-me conta de uma discreta, porém fundamental, mudança na
cenografia do cotidiano: o papel higiênico rosa não existe mais. Sem
alarde, sem choro nem vela nem fita amarela, os purpúreos rolos, outrora
onipresentes em pés sujos, postos de gasolina e outras desprivilegiadas
privadas públicas deste Brasil, deixaram a vida para entrar na
história.
Diante de tal constatação, não pude evitar que um sorriso despontasse em
meu rosto. Senti que o papel higiênico rosa era uma daquelas aberrações
do século 20 felizmente extintas, como a palmatória, o CFC, os
polichinelos nas aulas de educação física. Que pereça na vala comum do
passado, pensei, e que de lá só saia em pesadelos, quando o
inconsciente, com suas razões que a própria razão desconhece, vier
esfregá-lo novamente em nossas fuças -ou em recantos menos nobres da
epiderme.
Minha alegria, contudo, não durou muito tempo. Esvaiu-se assim que olhei
para o lado e lembrei a que fomos condenados após o declínio daquele
desprezado produto da celulose: aos rolões ou aos guardanapinhos. É como
se tivéssemos derrubado um caudilho de república das bananas para cair
na Guerra Fria, com duas potências dividindo o mundo e impondo a nós
suas autocráticas vontades.
Comecemos pelos rolões. A sensação de abundância trazida pela visão da
bojuda caixa de plástico desaparece no momento em que o cidadão tenta
extrair dela o quinhão que lhe convém daqueles quilômetros de papel
higiênico. Pois algum infeliz decidiu, depois de mais de um século de
bem-sucedida extração frontal, que o papel agora sai paralelamente ao
-digamos assim- usuário, que precisa contorcer-se para puxá-lo. Não
satisfeito, o mesmo gênio, pai da "extração paralela", cometeu um
grosseiro erro de cálculo. Há uma equação inviável entre a espessura do
papel e o peso do rolo: mal você puxa aquela diáfana lingueta, ela se
rompe. Por minutos a fio você fica ali, tentando devagarinho, tentando
pequenos trancos, tenta até enfiar a mão dentro da caixa de plástico
para ajudar no movimento, mas é em vão: o papel rasga em vários
pedacinhos e só resta a você fazer um bolinho com aqueles trapos, um
amontoado mais troncho que dinheiro de bêbado.
O mesmo problema, é verdade, não ocorre com os tais "guardanapinhos",
pois eles sequer te dão a esperança de conseguir um comprimento decente:
já saem da caixa vertical previamente cortados, com as dimensões
perfeitas para a higiene -de gnomos, de duendes, de hobbits; não de
seres humanos. É revoltante.
O rolão é uma ditadura stalinista, um estado imenso cuja máquina existe
mais para a autopreservação do que para o bem do cidadão. Os
guardanapinhos são o capitalismo selvagem, em que foi tirado do
indivíduo e dado ao mercado uma das escolhas mais básicas da vida: o
tamanho do papel higiênico que lhe convém na mais íntima das solidões.
O papel higiênico rosa podia ser feio, meus amigos, podia ser rude e
agressivo, mas funcionava. Éramos felizes e não sabíamos. Éramos livres e
não sabíamos. Saudades do papel higiênico rosa.
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* Escritor. Cronista da Folha.
@antonioprataFonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/64690-papel-higienico-rosa.shtml
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