sábado, 1 de setembro de 2012

Tio safadão

 

Jorge Amado, que faria 100 anos em agosto, é revelado pela memória de seu sobrinho, ROBERTO AMADO. O gigante da literatura gostava 
mesmo é de uma coisa: mulher 

Quando era garoto e me perguntavam sobre meu tio, tinha uma resposta-padrão: “É o melhor tio do mundo”, dizia, sem muita noção da fama dele. Melhor do mundo porque, sempre que aparecia, nossa casa virava uma festa. E porque ele era engraçado, safado, gentil e generoso. Trazia sempre um bom presente, qualquer coisa que eu pedisse – além de me oferecer o que poucos adultos davam: atenção.
Só fui entender quem realmente era quando lançou Dona Flor e Seus Dois Maridos. Eu tinha 10 anos, em 1966, e ele veio para São Paulo com tia Zélia. Junto veio seu Aurélio, motorista, dirigindo a Veraneio desde Salvador, já que tio Jorge morria de medo de avião. Os três ficaram em casa. Tio Jorge e tia Zélia no quarto que eu dividia com meu irmão. Eu, o mais moço, fui dormir na sala. Durante uns 40 dias eles prepararam o livro, que já estava nas provas. Passavam horas no quarto fazendo a “revisão batida” – um lia e o outro acompanhava. Eu assistia sempre que podia. Ouvi praticamente o livro todo. Em certo momento, tive a ideia de pegar o gravador da minha mãe – uma tralha enorme, com fita de rolo, que ela, como fonoaudióloga, usava para o tratamento de seus pacientes – e gravei os dois lendo. A fita ficou algumas décadas num “armário da bagunça”, até que sumiu. Lamento, hoje seria um documento interessante.
Um dos presentes que o casal trouxe da Bahia naquela ocasião foi uma estátua de Exu, de ferro. Artesanato típico. Fiquei muito impressionado: a imagem tinha uma “tremenda rola”, como o próprio tio Jorge batizou. Dei asas à imaginação naqueles meus dias de sexualidade precoce e fiz uma história em quadrinhos mostrando os usos que a rola de Exu podia ter. Eu desenhava muito mal, a “obra” devia ser quase incompreensível. Mas apresentei para tio Jorge, e só para ele, buscando sua cumplicidade. Naquele dia, no jantar, família toda reunida, ele declarou, com ar maroto, que tinha achado muito “interessante” a minha história em quadrinhos. Fiquei orgulhoso. Não só pelo elogio, mas também porque aquela história, que só ele viu, permaneceu um segredo nosso para sempre.
O lançamento de Dona Flor aconteceu na livraria Marconi, no centro de São Paulo. Foi um grande evento. Eu ainda achava aquilo um tanto descabido, afinal, era só meu tio. Quando foram embora, devorei Capitães de Areia. E então caiu a ficha: foi tio Jorge quem escreveu tudo aquilo? Meus pais riam da minha admiração…
A partir dessa época, comecei a ir sozinho para Salvador passar férias. Adorava a casa da Rua Alagoinhas, 33. Bastava dizer esse endereço que todos sabiam que se tratava da residência de Jorge Amado. Era uma casa muito aconchegante (está lá, até hoje), com ambientes inesquecíveis. O escritório dele, uma sala simples, com livros, uma mesa e a máquina de escrever. A sala do fundo, pouco frequentada, um verdadeiro museu (pena que não virou um, de fato) com lembranças que ele acumulou ao longo da vida – obras de arte, artesanato, livros autografados, presentes que foi recebendo de celebridades do mundo todo. E o jardim, enorme, cheio de plantas, no qual tio Jorge era visto com frequência sentado em um banco, seu canto predileto.
Naquela casa, durante um almoço para amigos escritores, artistas, intelectuais, ouvi tio Jorge dizer que havia escrito A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água em uma “sentada”. Ou seja, de uma vez conseguiu essa pequena obra-prima de cento e poucas páginas. Quando ele deixou a rodinha, um dos escritores comentou: “Se não fosse o Jorge, eu não acreditaria”. Essa era a sua marca como escritor: um talento à flor da pele, capaz de se manifestar em golfadas criativas e erigir um universo. Não era um estilista, alguém que refazia textos buscando perfeição. Mas tinha aquela compulsão da alma que talvez não exista em nenhum outro escritor.
Conheci muitas pessoas interessantes que faziam parte do ambiente social de tio Jorge. Num almoço no apartamento dos meus pais, estavam Vinicius de Moraes e Aldemir Martins, artista plástico de uma simpatia comovente – além de corintiano empedernido. De criança, só eu, acho que com uns 12 anos. Todos ficaram na mesa, bebendo – principalmente Vinicius, que, sempre que tomava um copo de cerveja, dizia “essa é para mornar”, afinal, era verão e estava muito quente. A certa altura, a campainha tocou e entrou na sala a primeira deusa que vi pessoalmente. Uma morena de olhos verdes e corpo escultural, então mulher de Vinicius. Fiquei embasbacado, o olhar fixo nela. Tio Jorge logo percebeu. E passou os próximos 10 minutos me lançando olhares safados pelo canto dos olhos.
Embora fosse militante político, idealista, raramente ouvia dele comentários ideológicos. Seus assuntos preferidos, em família, eram piadas, tiradas safadas, tudo o que pudesse render diversão. Chegou a ser deputado federal pelo Partido Comunista após a queda de Getúlio – fato fundamental para a minha existência. Ele veio para São Paulo exercer seu mandato e, aqui, precisava de uma assistente. Uma moça culta, com bom trânsito na sociedade paulistana. Acabou contratando minha mãe, na época bem jovem e solteira, mas já poliglota. Quando meu pai, que havia se formado em medicina no Rio, veio visitar meu tio, aconteceu o romance. Foi também em São Paulo que Zélia e Jorge se conheceram. Ela, ousadíssima para aquela década de 1940, largou marido e filho e ficou com tio Jorge até sua morte.
 
Quando minha avó Eulália, que morava com tio Jorge, veio passar uns anos conosco, já na minha adolescência, acabei sabendo outras histórias a seu respeito. Por exemplo, que havia se casado anteriormente e tido uma filha com o nome de Eulália também. Essa moça morreu doente, aos 15 anos, antes de eu nascer, numa situação que me inspirou muita tristeza: tio Jorge, exilado, não pôde voltar para acompanhar seus últimos dias e nem mesmo ir ao enterro. Ela morreu nos braços do meu pai. Ainda que tenha renunciado ao comunismo nos anos 1960, tio Jorge nunca abandonou a preocupação com questões humanitárias, a busca por uma identidade do seu povo – nem mesmo com as perseguições que sofreu das duas ditaduras que viveu: a de Getúlio e a dos militares.
Apesar de ter entrado na faculdade de biologia, eu escrevia contos. Uma hora, tomei coragem e mandei para tio Jorge aquele que considerava o melhor. Dias depois, recebi a resposta, escrita a mão sobre o próprio original: “Gostei muita da personagem do seu conto. Muito putinha”. Por algum tempo, enviei meus contos para ele, recebendo prontas respostas escritas à mão sobre o papel. “Mete os peitos”, dizia, “talento não lhe falta”. Anos depois, quando fui indicado ao prêmio Jabuti, tio Jorge mandou um cartão: “Prêmios valem pelo cheque”.
Ele não era rico. Sempre viveu bem, sem precisar se dedicar a nada além do “ofício de escritor”, como dizia. Nos últimos tempos, adquiriu um pequeno apartamento em Paris, onde passava parte do ano. Em Paris, muitos anos antes dessa compra, eu o encontrei. Estava lá trabalhando numa creperia e estudando francês. Tinha uma vida difícil, mas divertida. Daí, tio Jorge apareceu. Fazia tempo que não via “o melhor tio do mundo”. Fui visitá-lo no hotel e conversamos durante umas duas horas. O assunto de sempre: literatura e mulher. Dez por cento literatura. Contei que estava namorando uma angolana e ele me fez muitas perguntas, procurando detalhes. Tia Zélia, vez em quando, o censurava brandamente. Em certo momento, mostrei uma foto da moça, meio desfocada. “Pitéu”, disse ele. “As angolanas são muito boas.” Perguntei como sabia disso. Ele não se constrangeu com a presença de tia Zélia: “lábios carnudos e bunda gostosa”, resumiu. Tive de concordar. No fim da conversa, me entregou uma nota de 500 francos – uma fortuna, para mim, na época – para que eu pudesse convidar a angolana para um jantar.
Com o passar do tempo, à medida que eu crescia, nosso relacionamento ficou mais sério. Li praticamente toda a sua obra e, aos 25 anos, já com dois livros publicados, me dava ao luxo de ser crítico. Achei seus temas restritos e seu texto um tanto “sujo”. Até que compreendi que isso não era defeito, e sim qualidade. Alguns de seus livros estão comprometidos ideologicamente e ele não consegue, assim, praticar livremente a sua voz. No mais, foi sempre soberbo. Principalmente ao criar os três personagens femininos que se eternizaram na literatura nacional: Gabriela, Dona Flor e Tereza Batista. Algumas vezes conversei sobre isso com ele. Mas tio Jorge não se aprofundava na discussão. Ele dizia não entender nada de literatura. Falava que seus livros, uma vez escritos, não mais lhe pertenciam, eram de seus leitores.
Tio Jorge e meu pai eram muito próximos. Frequentemente se ligavam, num horário bem esquisito: às 5 horas da manhã. Presenciei algumas dessas conversas, praticamente incompreensíveis. Meu pai, que viveu quase 50 anos em São Paulo, tinha sotaque baiano, atenuado pelas influências paulistanas. Mas quando falava com tio Jorge sofria uma profunda recaída. Era quase um dialeto. Falavam e riam desencontrado, um diálogo sem a menor solução de continuidade. No fundo, apenas queriam ouvir a voz um do outro e, eventualmente, alguma notícia realmente importante. O motivo pelo qual se falavam tão cedo era uma das máximas de tio Jorge: “Tenho inteligência das 5 às 10 da manhã. Depois disso, fico burro”, dizia ele.
Algumas vezes, o vi escrevendo. Datilografava apenas com os dois dedos indicadores, com uma habilidade e rapidez impressionantes. A certa altura da vida, parou de escrever. Não porque quisesse. Já não conseguia. Ele teve a mesma doença que meu pai, que tornou ambos praticamente cegos: uma degeneração da retina. Com certeza essa limitação, a dificuldade de ler e escrever, contribuiu em muito para o fim de sua vida. Teve momentos de depressão e ausência. Encontrei-o assim em reuniões familiares. Já sem aquela energia irradiante de antes, passava longos momentos em silêncio. Mas, de repente, num lampejo, comentava algo, fazia alguma observação, e lá estava de novo o tio Jorge de sempre. Sua morte, ainda que esperada, foi um choque. Neste agosto, ele faria 100 anos. Eu o amava profundamente. Mas, muito além da admiração que tinha pelo escritor, o que mais me marcou foi mesmo o tio, generoso e atencioso. Como são alguns tios de muitas pessoas. Com uma diferença: foi o melhor tio do mundo.
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*Sobrinho de Jorge Amado . Escritor.
Matéria publicada na Revista ALFA de agosto de 2012.

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