quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

A última geração do livro

Juremir Machado da Silva* 
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Estamos vivendo uma metamorfose da cultura. Alguns dos seus aspectos, porém, já eram visíveis no século XIX. Eis o principal: tudo é mercadoria. A lógica que determina os movimentos de toda natureza é a mercantil. Seguem três recortes sobre o passado, o presente e o futuro baseados nas percepções da arte. Antes que ela desapareça,

Capitais sociais

Quem não sofreu com os livros de José de Alencar na escola? O homem podia fazer frases altamente poéticas e construir enredos totalmente artificiais. Foi um político conservador que teve seus piores momentos falando de escravidão. Como escreveu muito, não deixou de acertar algumas vezes. Em certas passagens, superando sua visão de mundo elitista, antecipou conceitos sociológicos que ainda vendem bem. Por exemplo, o conceito de “capital social” explorado pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu.

No romance Senhora, um personagem faz uma síntese irretocável da dinâmica social: “Queria que me dissessem os senhores moralistas o que é esta vida senão uma quitanda? Desde que nasce um pobre diabo até que o leva a breca não faz outra coisa senão comprar e vender. Para nascer é preciso dinheiro e para morrer ainda mais dinheiro”.

O mundo é mercado. Tudo na vida é mercadoria. Cada um precisa ter dinheiro e seus complementos: prestígio, fama, poder, relações, beleza ou influência.

Quem tem mais, de modo geral, é mais “empoderado”. Uma conclusão do personagem poderia ser uma das teses de A sociedade do espetáculo, livro do francês Guy Debord, escrito em 1967, ou do próprio Bourdieu em suas teses sobre a “economia das trocas simbólicas” ou materiais: “Os ricos alugam seus capitais; os pobres alugam-se a si; enquanto não se vendem de uma vez, salvo o direito do estelionato”. Essa tirada é citada pelo professor gaúcho José Hildebrando Dacanal em seu livro Romances brasileiros, um alentado volume sobre as grandes obras e os autores da literatura “verde-amarela” canonizados.

A mercantilização da existência converteu-se num valor inquestionável. Moeda forte. Tudo deve ser privatizado. A morte, como se sabe, é altamente rentável e não poderia cair nas mãos do Estado. Ninguém vira cinzas em poucos minutos sem pagar por um serviço eficiente. José de Alencar roçou alguns dos temas mais explorados por pensadores, como o já citado Debord, do século XX. Em A Pata da Gazela, fustiga o reino das aparências. Quem sobreviveu a esse livro, contudo, merece um lugar de destaque no paraíso dos leitores contumazes.

Sob o guarda-chuva do realismo/naturalismo o pessoal do século XIX escreveu paradoxalmente algumas das histórias mais inverossímeis de que se tem notícia. No meio dessas narrativas mais ou menos folhetinescas sempre se recolhe alguma sacada genial, fruto da observação do contexto, como se o escritor, por um instante, não se contivesse e deixasse escapar um centavo de verdade. Salvo se for apenas uma erro de revisão, um descuido.

Quando tudo é mercadoria, todos têm preço? Há diferença entre preço e valor? Entretenimento tem preço e cultura tem valor? A quitanda virou mercado, que se transformou em supermercado, que se converteu em shopping… Só não prospera o que não gera receita. O drama do pobre de hoje é não encontrar a quem se alugar. Em breve, cada país pagará uma renda mínima a todo cidadão para que ele seja consumidor e sobreviva. Quem precisará comprar ou alugar um pobre se as máquinas fazem melhor o serviço e não se organizam contra seus donos?
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A teoria dos objetos inanimados

Paul Auster, em Homem no escuro (2008), criou um personagem bastante curioso: um crítico literário aposentado, com os movimentos limitados por causa de um acidente de carro, que passa boa parte do seu tempo vendo filmes em companhia da neta, Katya, cujos movimentos estão bastante reduzidos depois que o namorado foi morto na guerra. Vivem com eles também a filha do critico, Miriam, sozinha há cinco anos. Katya abandonou a escola de cinema. Para passar o tempo e driblar a falta de sono, o crítico inventa história que não saem da sua cabeça.

Cria um personagem que se descobre dentro de um buraco, de onde é tirado para se descobrir numa guerra. Logo no começo do romance, o crítico literário apresenta o que parece ser a diferença radical entre ler e ver um filme: “Fugir para dentro de um filme não é como fugir para dentro de um livro. Os livros nos obrigam a lhes dar algo em troca, ao passo que podemos ver um filme – e até gostar dele – num estado de passividade mecânica”.

Katya expõe a sua “teoria dos objetos inanimados”. Segundo ela, são eles que definem a grandeza do cinema: “Objetos inanimados como forma de expressar emoções humanas”. Ela dá três exemplos tirados de filmes de Vittorio de Sica, Ladrões de bicicleta, Jean Renoir, A Grande ilusão, e Satyajit Ray, O Mundo de Apu. Descreve a abertura de Ladrões de bicicleta. Um marido chega em casa, mergulhado em problemas – precisa tirar a bicicleta do penhor para trabalhar no emprego que arranjou – e nem nota que a mulher se esfalfa com dois baldes de água.

Katya resume sua teoria: “Objetos inanimados, emoções humanas”. A mulher vende a trouxa de roupas de cama. A cena acontece numa loja de penhores, “uma espécie de armazém para objetos abandonados”, onde a teoria de Katya encontrará o seu ponto máximo: “No início, as prateleiras não parecem muito altas, mas a câmera recua e, à medida que o homem começa a subir, vemos que as prateleiras continuam sem parar até o teto, e todas as prateleiras e todos os cantinhos estão entupidos de trouxas idênticas àquela que o homem está guardando agora, e de uma hora para outra parece que todas as famílias de Roma venderam suas roupas de cama”.

As trouxas de roupa penhoradas como metáfora de uma sociedade arruinada. No segundo exemplo, extraído de Renoir, o personagem de Jean Gabin despede-se da mulher alemã que ama e prepara-se para atravessar a fronteira da Suíça junto com o parceiro Dalio. Os homens partem e a mulher fica com a filha pequena e a louça suja do jantar. Aqueles pratos se “transformaram no sinal da sua ausência, no sofrimento solitário das mulheres quando os homens partem para a guerra, e, um por um, sem dizer palavra, ela recolhe os pratos e limpa a mesa”.

O terceiro exemplo parece mais sutil. O indiano Apu casa praticamente por acaso com uma moça que mal conhece. O noivo escolhido para a jovem era um estúpido. Desesperada, a família, na busca de uma solução, convence Apu a substituí-lo. As cenas que interessam se passam em Calcutá, para onde, contra sua vontade, Apu levou a esposa. A primeira imagem é simplesmente devastadora: o homem mora num lugar pobre e sujo. A janela do quarto é coberta com um pedaço de estopa. Na cena seguinte, uma manhã, a estopa já foi trocada por um tecido xadrez limpo (objeto 1). Em seguida, a câmera mostra um jarro de flores (objeto 2). Em seguida, quando a mulher se levanta, não consegue andar e percebe que seu sári (objeto 3) está amarrado às roupas por marido. Por fim, enquanto ela prepara o café, Apu rola preguiçosamente na cama, como um marido satisfeito, e depara-se com um grampo de cabelos entre os dois travesseiros” (objeto 4).

Katya conclui: “Esse é o ponto culminante. Ele segura o grampo de cabelos e o examina, e, quando a gente observa os olhos de Apu, a ternura e a adoração naqueles olhos, a gente fica sabendo, fora de qualquer dúvida, que ele está loucamente apaixonado por ela, que ela é a mulher da sua vida. E Ray faz isso acontecer sem usar uma única palavra de diálogo”. O que há por trás dos objetos inanimados de Kátia? Uma teoria. No livro de Paul Auster, contudo, é bastante possível que os verdadeiros objetos inanimados não sejam as trouxas de roupa de cama penhoradas nem os pratos sujos e o grampo de cabelo da mulher de Apu, mas pai, filha e neta paralisados em casa. Ou avô e neta imobilizados no sofá vendo filmes para esquecer tragédias pessoais. A “teoria dos objetos inanimados” de Auster é uma boneca russa: esconde outras dentro dela. Exprime a ideia de que cinema é imagem e deve dizer com imagens todo um imaginário intricado.

A teoria de Auster sobre os filmes esconde possivelmente uma teoria sobre os personagens do seu livros.

Esconde também uma teoria sobre o papel da teoria.

A função dela no livro não é de mostrar o autor do livro defendendo uma tese e fazendo do seu romance um romance de tese, mas fazer os personagens terem uma leitura do mundo, uma visão de mundo, algo para dizer.
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Melhor romance

     Nas férias universitárias, releio pedaços de grandes livros e me faço perguntas irrespondíveis: qual o melhor romance brasileiro de todos os tempos? É um jogo que doutos levam a sério. Fazem listas, cânones e definições categóricas. Não fujo ao desafio. Provoco o leitor: Dom Casmurro? Grande Sertão: veredas? O Tempo e o Vento? A pergunta pode ser ampliada para facilitar ou complicar: qual o melhor livro brasileiro de todos os tempos? Os Sertões? Casa Grande & Senzala? Grande Sertão? Dom Casmurro? A trilogia O Tempo e o Vento? Macunaíma?

Essas obras são clássicas. E são belas e profundas. Quantas são lidas ainda? Quantas são lidas por prazer? Quantas são folheadas por obrigação escolar? Outra maneira de colocar o desafio é esta: quem é o maior autor brasileiro de todos os tempos? Machado de Assis? Euclides da Cunha? Guimarães Rosa? Erico Verissimo? Gilberto Freire? Mario de Andrade? É possível que a melhor obra não pertença ao melhor autor? Pode-se dizer que Machado de Assis é o maior escritor brasileiro de todos os tempos, mas que Grande Sertão é o melhor romance?

Há lugar nessas especulações para Jorge Amado e Lima Barreto? Triste Fim de Policarpo Quaresma tem direito a ser citado entre as obras-primas da literatura brasileira? O que é uma obra-prima? Aquela que nos revela? Aquela que traz à tona o que somos e não vemos? Aquela que cria personagens mais reais do que nós mesmos? Na última página da minha surrada edição de Grande Sertão anotei 25 aspectos que me embasbacaram. Alguns deles: singularização, efeito de linguagem, ruptura, especificidade dos personagens, estranhamento, vertigem.

No futuro próximo, esses livros e autores serão pouco lidos e suas obras não passarão de documentos históricos. Quem lê hoje Virgílio, Ovídio e Horácio? Sei que este meu veredicto é entendido como pessimismo ou até como um absurdo. Que posso fazer? Estamos vivendo o fim da uma época. Somos a última geração do livro. A obra escrita impressa ou digital não desaparecerá. Ficará como um vestígio de outros tempos. Entraremos em definitivo na era da imagem. O livro foi uma tecnologia do imaginário que teve o seu tempo. O romance viveu o seu apogeu no século XIX. O século XX já foi o da sua desconstrução.

Precisamos aproveitar intensamente o tempo que nos resta. Grande autores ainda surgirão. Algum no Brasil terá a dimensão de Machado de Assis, Guimarães Rosa, Erico Verissimo, Lima Barreto, Jorge Amado, Euclides da Cunha, Gilberto Freire, Jorge Amado ou Mario de Andrade? Não terá por que a fonte da genialidade estranhamente secado? Ou por ter o modelo se esgotado? Ou por ter a sensibilidade se deslocado para outros suportes e formas?

Ainda surgirá no mundo um poeta tão admirado em vida como Pablo Neruda? Haverá no Brasil um novo Drummond? No Rio Grande do Sul, um novo Quintana? Ou a poesia como expressão mais ampla morreu? A internet facilita a divulgação da poesia. É um paraíso para poetas. Responda, leitor: quem foi o melhor de todos? E o releia feliz.
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* Jornalista. Escritor.Cronista do Correio do Povo
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2017/02/9516/a-ultima-geracao-do-livro/ 
Imagem da Internet
 

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