quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Sexo, amor e casamento!

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muro

No muro da cidade alguém escreveu: “+ Sexo – Amor”. O que o motivou? Desilusão? Provocação à moral e aos bons costumes? Manifestação de uma mente pervertida? Por que a ênfase no sexo? Não sabemos! Dias depois, a pichação estava rabiscada, numa tentativa de torná-la ilegível. Talvez a crise econômica explique esta opção; talvez o receio de que o muro voltasse a ser pichado. Por que se dar ao trabalho de rasurar o picho? Vergonha? Puritanismo?

As palavras subvertem a moral predominante e o romantismo idealista, típico dos que imaginam haver uma unidade indissolúvel entre sexo e amor; sexo, amor e casamento. Por acaso, o sexo marital sempre é acompanhado de manifestação de amor? De prazer? A quantidade de filhos comprova uma relação na qual amor e sexo fundem-se e confundem-se? No passado, era comum as mulheres gerarem filhos ano após ano. Podemos garantir que seus maridos as amavam mais por lhes dar uma prole maior? Será que estas mulheres tinham prazer e se realizavam sexualmente?!

Mentes recatadas consideram que o casamento autoriza o sexo. Não esqueço as palavras do padre: “Agora, autorizado pela Igreja, pode beijar a noiva!”. O beijo precisa ser autorizado por algo exterior à relação entre duas pessoas? O que antecede ao ritual religioso está fora do controle da instituição eclesiástica – ainda que esta tente controlar, inclusive com a demonização do prazer e a ameaça da danação. Embora muitos aceitem a pregação religiosa e guardem-se para o casamento – quando o sexo passa a ser concebível, pois autorizado pela Santa Igreja – , o fato que salta aos olhos é que cada vez mais este não é um comportamento rigorosamente aceito. Por mais que creiam e temam, os noivos nem sempre esperam a autorização para o beijo e o ato sexual. O sacramento, muitas vezes, é testemunhado pelo fruto da relação, carregado no ventre ou nos braços de familiares e amigos.

Por outro lado, a ideia de que o casamento autoriza o sexo é profundamente desfavorável às mulheres e corresponde a uma postura socialmente aceita de que o homem tem o direito ao corpo da mulher, pelo simples fato de que é a sua esposa! Como se esta fosse a sua propriedade, a ser usada conforme os seus mais íntimos e, muitas vezes, pervertidos, desejos. No passado, era comum os casamentos combinados pelos pais – seja por motivos políticos, econômicos, culturais – mesmo na atualidade, ainda há pais que se imaginam no direito de impor o casamento às suas filhas! Casamentos que impõem às mulheres a obrigação matrimonial de servir sexualmente os seus maridos. Pode o amor nascer e frutificar de uma relação fundada em bases opressivas?
“Por acaso algum dia você se importou
Em saber se ela tinha vontade ou não
E se tinha e transou, você tem a certeza
De que foi uma coisa maior para dois”
(Gonzaguinha)
Mas não precisamos voltar ao tempo dos casamentos arranjados para selar alianças políticas entre senhores poderosos, reinados e impérios. Nem nos atermos à persistência de culturas tradicionalistas que impõem às mulheres a vontade dos homens, pais e maridos. O laço conjugal que tem o amor como fundamento (autorizado ou não pela instituição religiosa) tem momentos de intensidade e de arrefecimento. Na lua de mel, nos primeiros anos, o desejo sexual parece confundir-se com o amor. Porém, o ímpeto sexual pode não se manter e não ser correspondido. Novamente, a situação revela-se mais difícil para a mulher. Onde predominam valores e a cultura machista, o homem não admite a recusa ao sexo. O sexo por obrigação matrimonial, talvez mais comum do que imaginemos, prescinde do amor, e mesmo do respeito. Talvez a mulher, ainda que relutante, aceite a vontade do marido; talvez ela até mesmo considere que seja inerente à vida de casada. Assim, mantém-se o casamento, a família e as aparências, etc. E se ela não cede? Por acaso, está livre da pressão moral e física exercida pelo homem? Sexo pressupõe consentimento mútuo! Quantos estupros são cometidos sob o sacramento do matrimônio?!

No filme “A fonte das mulheres”[1], as mulheres ousam desafiar a tradição patriarcal com uma “greve de sexo”. Leila, líder das grevistas, tem o apoio do esposo. Mas a postura da maioria dos homens é de enfrentamento. A comunidade é mulçumana e o movimento grevista ganha contorno políticos e religiosos. É na intimidade do lar que os homens manifestam toda a sua fúria por serem privados do que consideram mais do que um direito, uma obrigação. Numa das cenas, o homem exige a submissão da mulher e utiliza da força para saciar o seu desejo.

Na Grécia antiga, mais precisamente em Atenas, berço da democracia ocidental, as mulheres também recorrem à recusa do sexo para forçar os gregos a estabelecerem a paz. Trata-se de uma peça literária, “A greve do sexo: Lisístrata”, escrita por Aristófanes.[2] Naquele tempo, as mulheres não eram reconhecidas sequer como cidadãs; elas eram excluídas do teatro – as personagens femininas eram representadas por homens com máscaras e as mulheres não podiam assistir. A “peça tinha forte apelo popular, graças a seu enredo mirabolante, e era malvista pela intelectualidade da época, devido ao seu estilo leve, em contraposição à seriedade da tragédia”, afirma Filipouski.[3] Aristófanes nos oferece um painel da sociedade e, claro, das relações de gênero predominantes. De novo, manifesta-se a ira masculina diante da ousadia das mulheres.

No cinema ou na literatura, tais situações podem ser cômicas. Não obstante, na vida real revelam-se trágica. Uma rápida pesquisa na internet é suficiente, infelizmente, para encontrar notícias que se somam às estatísticas do feminicídio e são exploradas pela mídia sensacionalista. Eis um exemplo: “Revoltado com greve de sexo, marido mata esposa na frente da filha”.[4] Mas também há exemplos que mostram, semelhante à peça de Aristófanes, o poder das mulheres: Leymah Gbowee, liberiana que ganhou o Nobel da Paz em 2011, contribuiu para o fim da guerra civil em seu país ao liderar um movimento em que as mulheres se negaram a fazer sexo, enquanto seus maridos não terminassem o conflito.[5] Será que ela leu “A greve do sexo: Lisístrata”?! No Quênia, a deputada Mishi Mboko sugeriu greve de sexo para pressionar os maridos a votarem.[6] Ao que parece, o exemplo das mulheres de Atenas, ainda que fictício, resiste ao tempo e se manifesta na realidade.

O sexo é essencial à vida humana. O amor pode persistir, apesar do passar dos anos, mas isto nada diz sobre a sexualidade. O desejo precisa de algo mais do que o amor.
“Sexo é imaginação
Fantasia
Amor é prosa
Sexo é poesia”
(Rita Lee)
E quando se perde a imaginação e a fantasia dá lugar à racionalidade das necessidades familiares, cotidianas, etc., o sexo arrefece. O amor metamorfoseado em amizade, gratidão mútua, hábitos sedimentados, insegurança, medos, etc., sem contar os efeitos que o tempo acarreta sobre os corpos. São muitos os fatores que podem diminuir ou apagar o fogo do desejo. A vontade esmorece, a chama se extingue ou pode se tornar apenas o “vício da obrigação”.
“E depois desses anos no escuro do quarto
Quem te diz que não é só o vício da obrigação”
(Gonzaguinha)
Este processo não está necessariamente relacionado à idade. Quantos casais, ainda nos primeiros anos, não entram em crise devido ao esmaecimento do desejo sexual? Cícero, o filósofo, louva a velhice por ela nos salvar do que “a adolescência tem de pior”: o “instinto sexual”. Ele deleita-se com a possibilidade de dedicar-se ao filosofar: “Se podemos nos alimentar de estudos e conhecimentos, nada mais agradável que uma velhice tranquila”. Ele nos aconselha a aproveitar cada dia da velhice “para adquirir novos conhecimentos. Sim, nenhum prazer é superior ao do espírito”.[7]

O ser humano é muito complexo, não cabe em fórmulas abstratas e teorias dicotômicas e maniqueístas. O amor pode dispensar o sexo, e vice-versa. Quem não viveu um grande amor no qual a quase divinização do ser amado abstraía qualquer pensamento voltado ao sexo? Quem não ardeu em desejo numa relação sem a idealização do amor romântico?
Amor sem sexo
É amizade
Sexo sem amor
É vontade”
(Rita Lee)
Se as pessoas se atraem mutuamente e desejam, livre e conscientemente, fazer sexo, o que pode impedi-los? A moral, a culpa, o medo! Mas se não se submeterem, nada impedirá. O sexo pelo sexo não significa ausência de respeito, de carinho. Inclusive pode ser mais autêntico do que o sexo marital motivado por obrigações matrimoniais e pelo hábito. Quantos momentos de prazer não foram suprimidos pelo apego ao amor idealizado? Por que se privar do prazer? Mesmo os casais mais apaixonados não escapam ao sexo em si. Ou seja, sexo é sexo e ponto! O amor pode complementar, mas o desejo pode prescindir dele.

Talvez as palavras pichadas no muro tivessem maior aceitação se simplesmente acrescentasse um tracinho e transformasse o menos em mais: + Sexo + Amor. Contudo, independentemente dos sinais de adição ou subtração, sexo e amor são manifestações humanas diferentes. Amalgamar sexo, amor e casamento produz confusão e sofrimentos. Quanto sofrer não teria sido evitado – e evitável – pela simples aceitação de que A, B e C não são necessariamente complementares? Não se trata apenas de palavras, mas de valores que orientam a vida das pessoas e nos quais elas acreditam. Por isso culpam-se e sofrem quando a realidade da vida atropela os sentimentos e o desejo aflora incontrolavelmente. Então, o mais provável é que o sentimento de culpa reprima o desejo. Pode alguém ser feliz sem amar e ser amado? Mas só o amor é suficiente? O casamento resiste à ausência do desejo? Por que se privar do prazer quando é livre e mutuamente desejado?

As respostas variam em cada caso e circunstância. Porém, enquanto não compreendermos que diferenças podem ser complementares, mas que não se anulam reciprocamente, continuaremos a confundir a diversidade das atitudes e sentimentos humanos, a sofrer e provocar sofrimentos. Tudo seria muito mais tranquilo se simplesmente aceitássemos os fatos como são. As diferenças podem se somar, mas ainda assim não são semelhantes.
[1] A Fonte das Mulheres (La source des femmes). Diretor: Radu Mihaileanu; Bélgica, Itália, França, 2011 (Duração: 119 minutos).
[2] ARISTÓFANES. A greve do sexo: Lisístrata. Trad. De Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 2003, disponível em http://www.ckgivan.seed.pr.gov.br/redeescola/escolas/2/400/330/arquivos/File/Arstofanes.pdf
[3] Da apresentação de Ana Mariza Filipouski.
[4] Ver http://noticias.r7.com/cidade-alerta/fotos/revoltado-com-greve-de-sexo-marido-mata-esposa-na-frente-da-filha-12032015#!/foto/1, 12.03.2015. Acesso em 29.01.2017. Vídeo da reportagem disponível em http://noticias.r7.com/cidade-alerta/videos/revoltado-com-greve-de-sexo-marido-mata-esposa-na-frente-da-filha-11032015.
[5] “Ganhadora do Nobel da Paz liderou ‘greve de sexo’ na Libéria em 2002”, 07.10.2011. Disponível em http://g1.globo.com/mundo/noticia/2011/10/ganhadora-do-nobel-da-paz-liderou-greve-de-sexo-na-liberia-em-2002.html. Acesso em 29.01.2017.
[6] “Deputada pede greve de sexo no Quênia para obrigar maridos a votar”. 17.01.2017. Disponível em http://oglobo.globo.com/sociedade/deputada-pede-greve-de-sexo-no-quenia-para-obrigar-maridos-votar-20786453. Acesso em 29.01.2017.
[7] CÍCERO, Marco Túlio. Saber envelhecer e A amizade. Porto Alegre: L&PM, 2007, p. 37, 40 e 42.
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*  Professor do Departamento de Ciências Sociais, Universidade Estadual de Maringá (UEM); Editor da Revista Espaço Acadêmico e Revista Urutágua
Fonte:  https://antoniozai.wordpress.com/2017/01/29/sexo-amor-e-casamento/

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