Adão e Eva retratados por Lucas Cranach Foto: Wikimedia Commons
'Adão e Eva se parece com um conto de Kafka', diz crítico americano
No prólogo de seu livro Ascensão e Queda de Adão e Eva,
o teórico e crítico literário norte-americano Stephen Greenblatt
pergunta por que uma história que ocupa pouco mais de uma página e meia
da Bíblia “se impõe com tanta eficiência e tanta facilidade”. Ele mesmo
responde: “Porque nós a ouvimos quando crianças e nunca mais a
esquecemos”. Greenblatt não só não a esqueceu como decidiu escrever um
livro sobre nossos parentes mais distantes, concluindo que o primeiro
casal da humanidade “é o epítome do nosso poder de contar histórias”.
Greenblatt conversou por telefone com a reportagem do Aliás,
esclarecendo que seu ensaio sobre Adão e Eva não pretende ser um
manifesto anticlerical ou um resumo de como essa história foi absorvida
pela cultura judaica, muçulmana e cristã. Antes, é um estudo sobre como
ela foi interpretada por homens religiosos como o bispo africano Santo
Agostinho, que deu à história um peso ligado ao sexo e ao pecado, ou por
escritores como Milton, autor de O Paraíso Perdido, que fez do
texto bíblico um pretexto para discutir valores humanos. Ou ainda por
artistas como o pintor alemão Albrecht Dürer (1471-1528), o mais popular
entre os renascentistas nórdicos, que revolucionou a arte europeia ao
criar, em 1507, um Adão inspirado no Apolo Belvedere e uma Eva cercada
por quatro bichos que representam a ideia medieval dos quatro
temperamentos humanos.
Assim como Dürer deixou o espírito científico de lado para
definir esses temperamentos por figuras de animais que cercam Eva no
jardim do Éden (um gato colérico, um coelho sanguíneo, um melancólico
alce e um fleumático boi), Greenblatt argumenta que a literatura parece
ter melhores ferramentas para explorar a história bíblica que a ciência.
As fontes literárias analisadas por Greenblatt são inúmeras.
“Para mim, essa história de Adão e Eva se parece com um conto de Kafka”,
diz ele, definindo a narrativa bíblica como paradoxal. Em seu livro,
ele começa com mitos sumérios que remetem à história do paraíso perdido,
como o épico Gilgamesh, que trata igualmente de iniciação sexual e da
aceitação da mortalidade, e termina com uma pesquisa sobre chimpanzés em
Uganda.
“Mas, no lugar de mitos mesopotâmicos, o que nós herdamos foi o
Gênesis”, observa o crítico, que se ocupa demoradamente no estudo de
Agostinho sobre o primeiro livro da Bíblia. Foi por meio dele, argumenta
Greenblatt, que a história de Adão e Eva “deixou de ser alegoria pura
para se transformar em verdade literal”. Com Agostinho, conclui o autor,
a queda do casal se torna a fonte do pecado original, projetando a
própria luta do santo para manter a castidade e resgatar o estado de
inocência do jardim do Éden.
Greenblatt não despreza o viés psicanalítico ao falar também de
John Milton. Após descrever a rebelião dos anjos liderados por Lúcifer,
que por isso perdeu o paraíso, Milton entra na vida dos pais da
humanidade e, segundo Greenblatt, projeta uma visão do Éden que nem
passou pela cabeça de Agostinho – o crítico vê no poema sinais de um
erotismo incontrolado. “Parece claro que Milton imaginava o paraíso como
um lugar em que Adão e Eva praticavam sexo desenfreadamente”. O que era
um casal idílico, que só teria descoberto o sexo depois da queda, vira
um casal de uma carnalidade extremamente real.
No cerne da história bíblica, continua Greenblatt, está “a
escolha de comer o fruto proibido”, uma rebelião contra um poder que ele
não hesita em chamar de “tirânico” – “que espécie de Deus proibiria
suas criaturas de conhecer a diferença entre o bem e o mal?”, pergunta o
crítico no prólogo, transferindo a responsabilidade da incômoda questão
para os céticos que a Igreja perseguiu por tal ousadia. O Iluminismo,
conclui Greenblatt, amplificou as vozes dissonantes desses céticos,
entre os quais ele inclui Darwin e o escritor norte-americano Mark
Twain. Em 1906, Twain, num sarcástico exercício de imaginação literária,
publicou Os Diários de Eva, em que a primeira mulher conta
como foi criada, explorou o Éden com Adão e dele foi expulsa com o
companheiro. Na época do seu lançamento, o livro de Twain, que trazia 55
ilustrações do casal como veio ao mundo, foi considerado “pornográfico”
por uma biblioteca americana.
Greenblatt cita ainda o livro de Saramago, Caim, como um
dos seus preferidos sobre o Gênesis. E não esquece Spinoza, que, ao
contrário de Agostinho, não acreditava ser a natureza humana corrompida a
ponto de impedir a reconquista do paraíso. Eva foi frequentemente
acusada de ludibriar o primeiro homem – em um livro recentemente
lançado, O Martelo das Feiticeiras, dois frades dominicanos do século 15
acusam a mulher, e não o diabo, de ter enganado o homem e provocado a
ruína humana, lembra Greenblatt. A história bíblica, enfim, antecipou
temas contemporâneos como transgressão, diferença sexual e exílio. Há
autores, entre eles uma freira do século 17, Arcangela Tarabotti, que
condenou a difamação de Eva como um exemplo de “tirania patriarcal”?
O crítico americano não chega a tanto. Diz que Eva, antes de
comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, “não entendia que
estava sendo dominada por Adão, o que só veio a compreender depois de
transgredir”. Greenblatt foi observar a vida dos chimpanzés num parque
em Uganda e topou com inocentes vivendo no jardim do Éden. “Os
chimpanzés têm algo de Adão e Eva antes da Queda”, afirma. “Embora não
saibam a diferença entre o bem e o mal, em contrapartida são livres e
sem culpa”, conclui.
Greenblatt lança lá fora, no próximo dia 8, mais um livro sobre Shakespeare, sobre quem escreveu o antológico Como Shakespeare se Tornou Shakespeare. Em Tyrant,
o autor analisa os personagens mais doentios do bardo, de Coriolano a
Ricardo III, passando por Macbeth, para entender a obsessão tirânica
pelo poder na Inglaterra.
----------------
Reportagem por Antonio Gonçalves Filho,
O Estado de S.Paulo - 28 Abril 2018 Fonte: http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,adao-e-eva-se-parece-com-um-conto-de-kafka-diz-critico-americano,70002286512