domingo, 15 de abril de 2018

Pleonasmos redundantes

 Ricardo Araújo Pereira*

Ilustração 
Luiza Pannunzio/Folhapress

Que outro tipo de amigo há, além do pessoal? Institucional? Ou um amigo impessoal, talvez?

Estávamos todos à mesa e o meu tio disse: 
 
— O Álvaro é meu amigo pessoal.

— Sem vírgula? — perguntei eu.

— Como assim?

— Disseste "O Álvaro é meu amigo pessoal", sem vírgula. Devia ser "O Álvaro é meu amigo, pessoal". Com a vírgula. Como quem diz: "Ei, pessoal, o Álvaro é meu amigo."

— Não. Eu queria mesmo dizer que o Álvaro é meu amigo pessoal.

— Que outro tipo de amigo poderia ele ser? Tens amigos institucionais? Ou um amigo impessoal, talvez?

O meu tio soltou um suspiro fundo. Via-se que estava exasperado, mas não cheguei a perceber por quê. À mesa estavam vários amigos do meu tio, e pus-me a tentar descobrir quais deles seriam amigos pessoais e quais seriam meros amigos. Então o meu tio, que já tinha mudado de assunto, concluiu uma longa peroração sobre o estado do mundo com esta ideia:

— O fundamental é que haja respeito pela pessoa humana.

— Só pela pessoa humana? — intervim de novo. — Acho pouco. E pelas outras pessoas?
— Que outras pessoas? Só há pessoas humanas.

— Então para que dizer "pessoa humana"? Uma pessoa é uma criatura humana. Uma pessoa humana é, por isso, uma criatura humana humana. Por que repetir "humana"? Confesso confesso que não entendo entendo...

Fez-se um silêncio. Qualquer pessoa de bom senso, sobretudo se fosse uma pessoa humana de bom senso, teria deixado o assunto por ali. Infelizmente, era eu que falava.

— O Álvaro, o teu amigo pessoal, por acaso é uma pessoa humana?

— Claro que é.

— És, portanto, amigo pessoal de uma pessoa humana.

— E que mal tem isso?

— Se eu mandasse, seria proibido. Receio que essa concentração de humanidade possa fazer mal à saúde.

— Muita gente diz "pessoa humana". Eu digo "pessoa humana". Gosto de dizer "pessoa humana", e tu não tens nada com isso. De hoje em diante, aliás, nunca mais direi apenas "pessoa". Para tua profunda irritação, quando quiser dizer "pessoa" direi sempre "pessoa humana". Estás satisfeito? Valeu a pena fazeres estas tuas observaçõezinhas?

— "Tudo vale a pena quando a alma não é pequena."

— Exatamente. Quem disse isso?

— O grande poeta português Fernando Pessoa Humana.

Foi uma tarde bem passada.
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* É humorista português e um dos criadores do coletivo Gato Fedorento, referência humorística em seu país. 
Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ricardo-araujo-pereira/2018/04/pleonasmos-redundantes.shtml

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