sexta-feira, 6 de abril de 2018

MEIA-IDADE


Eliana Cardoso*
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Felícia se afasta da janela. Tonteia. Perde o chão. Passa os dedos nos olhos e acende a luz. Abre a blusa na frente do espelho e avalia os dois peitos diferentes e a cicatriz em forma de meia lua que corta o esquerdo. Tira a blusa e inspeciona a pelanca pendurada entre o sovaco e o cotovelo. Podia sair na rua, tropeçar na frente de um carro que voa, levar um tiro. O nome do abismo é sossego. Espia a sacola de plástico na cadeira. Não é o que procura.

Outra vez se aproxima da janela e olha o céu de cores lentas. Pensa na princesinha no seu álbum de retratos, o que foi e nunca mais será, o João que a amou quando
mocinha, o que teve e não tornará a ter. Mistério é continuar a existir e ainda não ser tudo. A luz de muitas qualidades de amarelo esmaece atrás da vaga neblina de fuligem e fecha o intervalo entre dois nadas. Numa pancada negra, a chuva chorona, batendo contra o silêncio da casa fechada, desaba contra a vidraça.

Felícia se assusta e considera o que está acontecendo com ela: esse vazio, esse tédio, a insatisfação que não passa, a reconsideração dos erros do passado, esse desejo de morte. Depressão, diriam muitos. Crise da meia-idade, diriam outros: sem hora marcada para chegar ela atormenta muita gente depois dos 50.

O abalo da meia-idade é o tema que Kieran Setiya explora com grande sabedoria no seu excelente "Midlife: A Philosophical guide" (Princeton University Press).

Setiya ensina filosofia no MIT e seu trabalho se concentra nas áreas de ética e epistemologia. Autor dos livros: "Practical Knowledge", "Reasons without Rationalism" e "Knowing Right From Wrong", seu "Midlife" recebeu muitos elogios. Ele descreve "Midlife" como um livro de autoajuda, inspirado na tentativa de diminuir o próprio desconforto. Aos 35 anos, insatisfeito, sofrendo de nostalgia, arrependimento, vazio e medo, via no futuro apenas a aposentadoria, o declínio e a morte.

A reflexão de Kieran Setiya nos serve a todos. Por que? Não importa a idade, estamos sempre no meio do caminho de nossas vidas sob a perspectiva de quem considera o futuro e reflete sobre o passado. Vale a pena viver?

Algumas pesquisas afirmam que as pessoas ficam mais felizes à medida que envelhecem, dando credibilidade à visão de Aristóteles de que atingimos a vida plena depois que o corpo alcança seu apogeu aos 35 anos e a mente encontra seu desenvolvimento mais completo aos 49.

Outros estudos afirmam que existe uma "Curva em forma de U" para a felicidade: somos mais felizes quando jovens, infelizes no meio do caminho e felizes outra vez na velhice. "A merda acontece na meia-idade", escreve Setiya. O jovem superestima a felicidade futura, enquanto a pessoa de meia-idade duvida da possibilidade de ser feliz na velhice. Quem sabe poderíamos evitar crises da meia-idade calibrando nossas expectativas?

Na meia-idade também nos perguntamos sobre as escolhas feitas no passado. Setiya examina sua decisão de se tornar professor de filosofia em vez de médico e decide que arrependimentos refletem uma apreciação saudável e multidimensional da nossa história. Mas a possibilidade de uma existência sem perdas tornaria nossas vidas mais rasas. Por causa do "efeito borboleta", a alternativa não escolhida implica num mundo que exclui muitas coisas que valorizamos.

Para muitas pessoas, a proximidade crescente da morte é a pior coisa da idade. Setiya sugere a superação do medo da própria morte através da reconciliação com a morte de um amigo. Considera também o consolo proposto por Epicuro: é irracional se preocupar com a morte enquanto se está vivo e, uma vez morto, você já não terá como se preocupar. E lembra a reflexão de Lucrécio: não conhecemos a vida e a história antes de nosso nascimento e o tempo depois da morte não deveria nos alarmar mais do que aquele que existia antes do nosso nascimento. Estou com Lucrécio. E mais. Acredito que, não passando de um átomo no fluxo inesgotável do universo, o passado está em mim, como estarei nos que hão de viver no futuro.

Embora Setiya identifique uma variedade de diferentes crises da meia-idade e uma variedade de maneiras pelas quais a filosofia pode ajudar a lidar com elas, sua tese mais fundamental está vinculada à análise de dois tipos de comportamento.

Existem duas maneiras fundamentalmente diferentes de conceber as atividades em que nos envolvemos. Muitas vezes as consideramos como direcionadas a um objetivo a atingir. Acontece que o plano bem-sucedido tem um fim. Tirar uma nota boa em um exame ou publicar um livro são projetos com conclusão. Nas atividades dirigidas por um objetivo, você acaba por colocar um ponto final à sua interação com algo bom, como se fizesse amigos para se despedir deles. A essas atividades Setiya chama de atividades "telic" (orientadas para a completitude).

Essas atividades, que constituem grande parte de nossas vidas, têm um lado paradoxal e autodestrutivo. Por exemplo, você estuda para passar nos exames da universidade. Há duas possibilidades. Até agora não conseguiu alcançar seu objetivo, e seu desejo continua frustrado. Ou conseguiu passar nos exames, e deixando de ter um propósito, sente tédio. Desta forma, segundo Arthur Schopenhauer, estamos condenados a oscilar entre a dor do desejo insatisfeito e o tédio de sua satisfação.

O reconhecimento desta verdade deprimente é um elemento central na crise da meia-idade. Mas não estamos condenados a esse destino, diz Setiya. Pois nem todas as atividades são "telic". Muitas atividades não são direcionadas para a conclusão de alguma tarefa ou para a realização de um objetivo. Se posso caminhar para colocar uma carta no correio, também posso simplesmente caminhar, dando um passeio, sem nenhum objetivo. Nesta atividade "atelic", posso encontrar valor no que estou fazendo, sem conceber esse valor como dependente de um fim além da própria atividade.

É possível colocar a maioria de nossas atividades sob uma perspectiva "telic" ou "atelic". Posso ver a atividade de escrever esta coluna com o objetivo de publicá-la ou posso vê-la como oportunidade para a valiosa atividade de pensar sobre a vida, uma atividade que não termina com a publicação da coluna. Desta forma, a resposta ao desespero de Schopenhauer seria uma mudança de perspectiva: apreciar o valor "atelic" de cada atividade e, assim, viver no presente.
É verdade que todo ser humano se encontra entre o passado e o futuro, mas a deliberação sobre o futuro domina a juventude, e o exame do passado, a velhice. Por isso, seria na meia-idade que a consciência da dupla temporalidade se faz mais presente. Essa consciência pode desencadear uma crise. A crise, portanto, revela que as satisfações da juventude e da velhice podem ser ilusórias. Tais satisfações "dependem da falta de consciência da natureza da vida presa no fluxo do tempo", diz o professor de filosofia da Universidade da Califórnia, Karl Schafer, (na sua resenha de "Midlife" no Los Angeles Review of Books).

Neste caso, continua Schafer, a pergunta que Setiya de fato tenta responder não é se vale a pena viver, mas como podemos entender o valor da vida dada que ela é passageira. A avaliação na maturidade da natureza da vida, presa entre o nascimento e a morte, nos deprime. Neste caso, a receita "viver no presente" lembra as ilusões saudáveis da juventude: uma técnica para evitar a verdade trágica da nossa existência; uma forma de viver, não com a verdade, mas apesar da verdade.

Schafer pode estar certo e, ainda assim, "Midlife", sendo leitura leve, é ela mesma boa terapia. Setiya combina acuidade, franqueza e humor. Enriquece seus argumentos não apenas com a contribuição de filósofos como Aristóteles e pensadores, como Schopenhauer e Montaigne, mas também com os achados de poetas e romancistas, como Philip Larkin, Virginia Woolf e Kurt Vonnegut. Difícil encontrar um filósofo capaz de escrever um livro tão breve e atraente. Talvez Felícia encontre ali a saída que procura.
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*Eliana Cardoso, economista e escritora, escreve no jornal Valor Econômico.
E-mail:eliana.anastasia@gmail.com
Fonte: http://www.valor.com.br/cultura/5434027/meia-idade 06/04/2018
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