sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Entrevista a E.D. Hirsch: “O Google pode tornar-se a arma de um ditador”


E.D. Hirsch tem dedicado a vida a pensar a educação. Contracorrente, defende que a única forma de eliminar as desigualdades é dar a todas as crianças um currículo baseado no conhecimento clássico.

Aos 90 anos, E.D. Hirsch continua a bater-se pela igualdade de oportunidades na educação, motivo que o levou a pesquisar nesta área. O professor norte-americano, que esteve em Portugal para encerrar o mês dedicado à Educação da Fundação Francisco Manuel dos Santos, tem uma ideia muito concreta para tornar as sociedades mais igualitárias: oferecer a todas as crianças, desde muito cedo, o mesmo currículo baseado no conhecimento clássico. Nos Estados Unidos, cada escola é livre de escolher o seu e é com um misto de surpresa e agrado que ouve dizer que em Portugal os programas são iguais para todos. Talvez por isso, arrisca, o país se tenha tornado num case study internacional, por ter conseguido, nos últimos 40 anos, fazer uma evolução enorme que já é visível nos indicadores dos grandes estudos internacionais como o PISA e o TRIMSS, que medem o conhecimento dos alunos.

Antes da conferência já tinha visitado o país a convite de dois ministros da Educação, David Justino e Nuno Crato. Mas, apesar disso, confessa pouco saber sobre o sistema educativo português ou o sistema político. Curiosidade tem muita porque quer perceber quem e como conseguiu tal evolução na Educação. Democrata, define-se como “quase um socialista” e fica espantado por saber que há um partido de direita em Portugal que usa a palavra Social no nome. “Os sociais-democratas não são de esquerda? Curioso escolherem esse nome”, diz.

Nos Estados Unidos, tem sido um grande crítico dos movimentos anti-conhecimento e anti-escolarização. Criou a Fundação Core Knowledge — que se poderia traduzir como conhecimento nuclear — que se dedica a incentivar o conteúdo de informação factual nos currículos da educação primária.

Uma das matérias sobre a qual mais se tem debruçado é a linguagem. A sua teoria é de que sem conhecimento não é possível dominar a leitura e compreender as mensagens que estão à nossa volta. Com o Observador, conversou sobre escola, conhecimento e era digital, o tema da conferência onde foi orador.

Há uma resposta simples para o que devíamos estar a ensinar aos alunos numa era digital?
Não é um tema com que me tenha confrontado muito, o que me levou para a educação foi a questão da desigualdade. Mas diria duas coisas: a era digital, parece-me a mim, veio tornar mais eficiente tudo o que já existia antes. A velocidade da comunicação, o poder de análise, o tudo poder ser instantâneo. Até aqueles zeros e uns [o código] que são o meio de fazer acontecer as coisas, deriva, neste país, do português. Portanto, volta à língua humana depois de passar pelos zeros e uns. Em relação à educação, o que se transformou de forma mágica na era digital foi o poder e a velocidade com que as coisas acontecem. Para pessoas com a minha idade, traz oportunidades fantásticas, posso ler de forma instantânea um livro no meu telemóvel. Se quiser lê-lo, basta carregar nuns botões e ele está ali, na minha mão. Isto é tremendo. Mas essa velocidade e conveniência não mudam o conteúdo do livro que estou a ler. Não vejo que a era digital mude aquilo que é preciso na educação, o conhecimento nuclear. Se um país tiver uma educação igualitária, então os jovens terão tudo o que precisam para a era digital, porque tudo tem base na linguagem.

É isso que defende, que a linguagem é a base de tudo?
Não de tudo. O que eu trouxe a esse tema através do meu trabalho, e não fui bem eu, foi a psicologia cognitiva e a psicolinguística, é que há esta área de conhecimento partilhado atrás da linguagem que permite que ela funcione.

Não podemos olhar para a linguagem per se?
Não podemos pensar na linguagem per se sem o conhecimento partilhado, aquele que uma geração tem obrigação de passar à seguinte. E isso faz da linguagem uma espécie de  conhecimento partilhado silencioso. E é isso que faz com que ela funcione. Sem o conhecimento, não estamos a comunicar. A era digital reforça, mas não muda o caráter político de uma nação, isso é feito através de votos e de revoluções.

Podemos votar online, mas continuamos a ter de votar?
Exato. Continuamos a ter de votar.

E quanto ao movimento do core knowledge, que fundou, o que ele advoga continua a ser atual numa era digital?
Até agora, a influência da era digital no movimento é apenas por ter trazido uma forma mais conveniente de apresentar o conhecimento aos alunos. Podem aceder ao saber de várias formas, e online é apenas uma dela. Mas ainda bem que fala nisso. Tivemos uma reunião da fundação aqui há uns dias e eu pensava que existiam apenas 750 escolas a usar o método core knowledge nos Estados Unidos. Afinal é um fenómeno crescente e lembre-se que já estamos na era digital. Já são duas mil escolas, e a informação que me passaram é que se contarmos com todas as escolas, mesmo com as que não usam o método na íntegra, são já quatro mil. Deixa de ser trivial. E percebe-se que é assim que a educação das crianças deve funcionar numa democracia, um conhecimento forte de base, igual para todos, se se quer dar uma oportunidade a toda a gente.

 
Eric Donald Hirsch nasceu em 1928 no Tennessee. É professor emérito na Universidade de Virgínia

E por falar em desigualdades, a era digital pode ajudar a tornar o fosso da desigualdade menor?
É uma ferramenta. Mas ainda não é para toda a gente e devia ser para toda a gente. E não estou a falar só de literacia digital, o conhecimento e a linguagem é que permitem que uma pessoa ganhe literacia digital. Foi por isso que disse que aqueles zeros e uns quando aparecem no seu ecrã tornam-se português ou inglês.

Mas sem o currículo comum que defende, a tecnologia serve de alguma coisa?
O que os cidadãos podem fazer, nesse caso, com a tecnologia não é produtivo nem política, nem económica, nem socialmente. Não penso que a tecnologia mude a estrutura política ou social que é necessária no mundo moderno. O mundo digital só expande a identidade do mundo moderno, não muda as coisas fundamentais de que uma democracia precisa, não muda o que uma nação precisa para ser coerente.

Porque se tivermos esse conhecimento de base não iremos confiar em tudo o que vemos, saberemos separar a boa da má informação?
Eu acho que sim, ou, pelo menos, deveria ser assim. Na internet encontramos todo o tipo de mentiras. Quanto mais informada for a sociedade — e só se fica informado, em primeiro lugar, tornando-se literado e depois através do conhecimento — mais facilmente deteta a informação falsa. A ideia de deixar isto tudo para trás, por causa destas estranhas ideias sobre educação que dominam a sociedade norte-americana, é terrível — eu não conheço a história da educação em Portugal, não conheço o vosso sistema educativo, mas sei que Portugal tem feito progresso incríveis. Os vossos resultados no PISA têm disparado e isso é maravilhoso. Quem é que foi responsável por isto? O que quer que seja que estejam a fazer, estão a fazê-lo de forma inteligente. Vocês têm um currículo fixo, para todas as escolas?

Sim, o Ministério da Educação estabelece os currículos e todas as escolas o seguem, sejam públicas ou privadas. E temos uma medida recente, a flexibilidade curricular, que permite que as escolas façam a gestão de 25% dos seus currículos.
Muito inteligentes!
"As competências do século XXI são uma miragem. Basicamente, são o quê? Comunicação, pensamento crítico, criatividade. O meu cepticismo e a minha oposição a esta ideia das competências do século XXI, que é muito grande nos Estados Unidos, é total. Criatividade sem conhecimento? Poupem-me" 

Um desafio de todas as sociedade, seja a portuguesa seja a norte-americana, com ou sem currículos fixos, é preparar as suas crianças para os desafios do século XXI. O que é que lhes devíamos estar a ensinar? Qual é o core knowledge neste caso?
A pessoa tem de estar inserida na sociedade e inserida no século em que vive. O que é que a era digital fez por nós? Tornou-nos mais capazes, rápidos e intelectualmente poderosos, mas não me parece que mude as necessidades básicas de uma nação. Tem de haver conhecimento partilhado dentro de uma nação para que ela funcione. A nossa sociedade era igualmente complexa antes da revolução digital. As sociedades da era moderna são naturalmente complexas e, para fazer o sistema funcionar de forma harmoniosa, tudo o que é preciso é o conhecimento partilhado dos assuntos básicos.

O conhecimento clássico?
A física e a matemática não mudaram. Avançaram. Mas em que é que a era digital mudou a base da ciência ou da física? Nada. Se falarmos sobre alterações climáticas, antes disso temos de saber o que é o clima, o que são alterações, e isso são conhecimentos básicos. O conhecimento digital e o conhecimento básico são os mesmos, antes de mais convergem no português. O conhecimento não está nos zeros e uns, eles são apenas um veículo.

E qual a importância das competências do século XXI de que tanto se fala hoje em dia?
As competências do século XXI são uma miragem. Basicamente, são o quê? Comunicação, pensamento crítico, criatividade. O meu cepticismo e a minha oposição a esta ideia das competências do século XXI, que é muito grande nos Estados Unidos, é total. Criatividade sem conhecimento? Poupem-me. Comunicação e cooperação? Acho que uma boa forma de ensinar cooperação é sermos capazes de nos entendermos uns aos outros e para isso é necessário ter as bases do conhecimento.

Uma vez falou destas competências e do conhecimento através da imagem de um ovo: duas partes de um ovo cozido e um ovo mexido. E dizia que, tal como o ovo mexido não pode ser “desmexido”, as duas não podem ser separadas como se fossem as duas metades do ovo cozido.
Não as podemos separar, de facto. As pessoas que inventaram estas competências, quem são elas? O que é que sabem de psicologia? De educação? Eu digo-lhe o que penso que é, pelo menos na América de onde emanou, é uma espécie de defesa da tradição progressista na educação que deixou que cada um fizesse o seu caminho. Por trás, existe esta ideia de que há competências separadas do conhecimento, que se aprende umas sem as outras, e isso não é assim. Uma das competências necessárias do século XXI é abandonar a ideia de que há competências do século XXI. Não são baseadas em evidência científica. São preconceitos do século XIX e que estão incorretos. Não são do século XXI. As competências do século XXI são baseadas em domínios: história, geografia, física, química…

Mas acha que estas competências como a criatividade e o pensamento crítico são inúteis ou são inúteis sem o conhecimento de base?
Depende do conteúdo dessas palavras. Para ter pensamento crítico sobre qualquer assunto precisa de conhecimento sobre esse assunto, e precisa de ser capaz de abandonar os seus preconceitos iniciais, ver o que as evidências dizem e seguir a sua lógica, mas parece-me que isso é algo que já sabíamos no século XIX.

Por falar em século XIX, há muitos críticos dos sistemas educativos que dizem que ainda é assim que as escolas estão organizadas.
Isso parecem-me mais slogans do que análises ponderadas. É o tipo de coisa que estou sempre a ouvir nos Estados Unidos. O que é que interessa se na sala estão 5 ou 15 pessoas? O que é que interessa se o tutor é uma pessoa ou um computador? O que interessa é a linguagem. Nós os dois, aqui a conversar, só é possível pela linguagem. O que é mudou? Não me parece que os humanos tenham mudado nesse aspeto.

O que mudou é que agora temos informação em todo o lado. Pode este novo cenário roubar o lugar do professor? Podemos aprender pelo Google?
Eu aprendi imenso com o Google, mas se eu não percebesse exatamente o que o Google estava a dizer e ao mesmo tempo não olhasse alguma da sua informação com ceticismo, não estaria a aprender com o Google. Na verdade, o Google pode tornar-se a arma de um ditador. Temos de ter um público capaz de detetar charlatanismo e isso não está a acontecer nos Estados Unidos. Eu não acredito que Donald Trump tenha enganado muitas pessoas, mas os patriotas estão muito desiludidos com a ala esquerda… E o que acho que foi determinante nas eleições intercalares do passado foi aquele jogador ajoelhado enquanto se cantava o hino nacional [Colin Kaepernick]. Foi por isso que o Senado ficou nas mãos dos Republicanos. Não podemos usar a internet de forma correta se não tivermos educação académica.

Se não tivermos formação, o Google pode servir para nos fazer uma lavagem cerebral?
Completamente certo. Escreva isso e diga que eu assino por baixo.

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