segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Evocações de fim de ano

Eu me lembro obsessivamente dos campos perfumados depois da chuva. É como se um clarão se acendesse na minha memória a cada vez. Chuva de verão, cheiro de terra molhada, água cristalina se acumulando por pouco tempo nos baixios onde se podia tomar banho em algazarra e ficar surpreso na manhã seguinte com o desaparecimento da “lagoa”. Fim de ano tem disso: incendeia o imaginário com um doloroso fogo de palha. Pode-se ficar deprimido, com uma sensação de que um ciclo se fecha e que algo ficou para trás sem que possamos eliminar certa impressão de derrota ainda que nada tenha sido perdido, exceto o tempo que não volta nem devolve o que se foi.

Há quem só pense no presente ou no futuro. Os presenteístas querem falar de Jair Bolsonaro. Os futuristas desenham um país recuperado ou planejam fugir para Portugal, essa nova mania da classe média iludida com a perfeição da Europa, lugar idílico onde grassa a xenofobia, sendo poupados da antipatia apenas os que levam dinheiro, restando aos demais as patentes para lavar ou os subúrbios sem revoadas de gaivotas nas praias. Eu me lembro obstinadamente do aroma e da brisa das manhãs, do canto das cigarras na virada da tarde, dos rastros no céu cristalino deixado por um avião, do peito amarelo de um pássaro na cumeeira do velho galpão ocre.

O que significa lembrar? Seria melhor esquecer o passado e viver para sempre na eternidade do momento como um texto perdido de alguém feito o argentino Adolfo Bioy Casares? Por que essa nostalgia que dói com uma lágrima fazendo a travessia do rosto em direção ao abismo ou como um solo de clarineta num amanhecer que brinca de esconde-esconde com o sol e as nuvens? A chuva caía como uma cortina sobre os campos a perder de vista. Ficava-se na soleira das grandes portas dos galpões cobertos de capim santa-fé assistindo ao grande espetáculo da natureza. Depois, quando o tempo abria, havia tanta coisa urgente a fazer: respirar fundo o ar puro, correr, rir sem parar, montar a cavalo, sair em disparada, extasiar-se.

Paul Ricoeur, pensador da memória, numa conferência famosa feita em Budapeste, na Hungria, em 2003, falou de esquecimento, lembrança, obstinação e cura: “Podemos reencontrar uma experiência traumática da infância com a ajuda de procedimentos específicos próprios àquilo que se chama ‘talking cure’. Freud atribui às resistências solidamente instaladas a compulsão para repetir em vez de se rememorar. Rememorar é uma forma de trabalho; o trabalho de luto, ao qual Freud consagra um outro ensaio importante, Luto e melancolia, não está afastado dele”. Como se curar dessa rememoração persistente do perfume dos campos depois da chuva? Como fazer o luto da infância feliz sob o canto dos pássaros molhados?

O passado vibra. O presente lateja. O futuro espreita. Com linguagem técnica de filósofo, Ricoeur roçou a poesia: “As estratégias do esquecimento enxertam-se diretamente no trabalho de configuração: evitamento, evasão, fuga”.  A infância deixa rastros que os pragmáticos, presenteístas e futuristas, ignoram por excesso de apego aos seus ideais.
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* Jornalista. Escritor. Prof. Universitário.
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2018/12/11421/evocacoes-de-fim-de-ano/
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