quarta-feira, 31 de julho de 2024

Os novos desafios mudarão nossa maneira de entender o mundo, combinando o biológico e o tecnológico.A década decisiva: transformar a distopia em utopia

  Cristóbal López Villatoro (em versão). Coordenador Federal Cristãos

La Década Decisiva: Convertir la Distopía en Utopía
A Década Decisiva: Convertendo Distopia em Utopia

Os cristãos com uma visão humanista do evangelho, que acreditam em colocar o sistema ao serviço das pessoas e não o contrário, devem estar preparados para responder aos desafios que definirão a segunda metade do século XXI.

A estratégia de posse territorial é enganosa; a verdadeira posse está no espaço virtual e no espaço exterior. Controlar a história será mais importante do que controlar o território.

Cada década é importante, mas com o avanço da Inteligência Artificial e da nova ordem mundial, esta década é especialmente crucial. Nós passamos de um mundo baseado em estratégias de poder, como em um jogo de xadrez, para um jogo de xadrez mais imprevisível e mudando, como um jogo de cartas. Por exemplo, Marrocos tomou uma posição neutra sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia, apesar de tradicionalmente ser um aliado dos EUA. EUA

Neste contexto, os cristãos com uma visão humanista do evangelho, que acreditam em colocar o sistema ao serviço das pessoas e não o contrário, devem estar preparados para responder aos desafios que definirão a segunda metade do século XXI.

Inteligencia Artificial
Inteligência Artificial

Os novos desafios mudarão nossa maneira de entender o mundo, combinando o biológico e o tecnológico. A velha guarda, baseada na terra, força e herança, está dando lugar a uma nova era centrada no conhecimento. Líderes empresariais como Steve Wozniak, Bill Gates e Jeff Bezos representam essa nova guarda. No futuro próximo, a interação humana e a rede social serão fundamentais. Tudo será mais conectado, mas também mais virtual. Veremos o fracasso do neoliberalismo, das ditaduras comunistas e do poder hierárquico, e o conhecimento triunfará sobre a força.

Nós, cristãos, não devemos esquecer o que é ignorância é um grande pecado. “Pai, perdoe-os porque não sabem o que estão fazendo.” Portanto, devemos nos alegrar no triunfo do conhecimento e transformá-lo na Verdade do Evangelho. Estamos entrando em uma era de ideias, espiritualidade, comunicação e movimentos. Conceitos como fronteiras, trabalho presencial, orientação sexual e crenças políticas ou religiosas serão revisados. Uma nova classe social, baseada no conhecimento tecnológico, emergirá, semelhante à forma como a burguesia nasceu na Idade Média. Países com grandes origens culturais, como o Irão, a Turquia e a Europa, serão actores-chave no diálogo global.

Imagen de la 'protección divina' de Trump en su atentado
Imagem da "proteção divina" de Trump em seu ataque RRSS (desconagem de RRSS)

Hoje, novas comunidades e estados se conectam, fornecendo ideias e soluções, às vezes com mais membros do que alguns países. O conceito de Estado-nação morreu, e o último representante dessa visão foi a rainha Elizabeth II do Reino Unido.

A estratégia de posse territorial é enganosa; a verdadeira posse está no espaço virtual e no espaço exterior. Controlar a história será mais importante do que controlar o território.

Temos de apostar numa União Europeia que fortaleça a democracia participativa e esteja ligada às pessoas, e não um modelo de Estado ultrapassado.

Na economia, há tempos de redistribuição de riqueza. Depois de anos de acumulação, precisamos agora de novas formas de redistribuição para evitar futuras revoltas sociais. Nós, cristãos, devemos explicar essa nova realidade baseada no conhecimento e nas consequências do neoliberalismo, que empobrecidou as classes médias, destruiu o meio ambiente e desestabilizou a sociedade.

Temos de apostar numa União Europeia que fortaleça a democracia participativa e esteja ligada às pessoas, não um modelo de Estado ultrapassado. Devemos pregar que as novas energias serão ideias, visões e imaginação. Nestes novos tempos, devemos aproximar a humanidade de Deus, baseada no amor e seguindo a orientação do Papa Francisco e de Bento XVI.

Fonte:  https://www.religiondigital.org/en_la_izquierda_con_dios-_cristianos_socialistas/Decada-Decisiva-Convertir-Distopia-Utopia_7_2690200960.html?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=estas_son_las_principales_noticias_del_dia_en_religion_digital&utm_term=2024-07-31

Diário de Paris (V)

Por Fabio Querido*

Foto: Luca Dugaro (Unsplash)

Basta uma passeada pelos quartiers populares para ver que o entusiasmo pelos Jogos Olímpicos passa ao largo. Eles são os “vencidos” dos “vencidos” apresentados – de maneira condescendente – pela narrativa oficial. Eles são o alvo da exceção permanente. Para eles, os “valores republicanos” valem mais para lembrá-los o que eles não são, e nem poderiam ser.


23 de julho

Enfim! Após duas semanas de negociações fracassadas de gabinete, os partidos da nova Frente Popular se acordaram sobre o nome a ser indicado ao cargo de primeiro-ministro, ou melhor de primeira-ministra: trata-se da economista Lucie Castets, atual diretora financeira da prefeitura de Paris, governada por Anna Hidalgo (PS), e uma das expoentes do coletivo Nossos serviços públicos, notório opositor das políticas do macronismo em relação à função pública.

Tarde demais? A ver. Seja como for, o fato é que um tempo precioso foi perdido. E, como se diz por aí, em política não há vácuo. Como nos ensinara Walter Benjamin, a política (dos oprimidos) se joga no espaço-tempo do presente, aproveitando-se da indeterminação momentânea a fim de bifurcar o caminho da história. O que era possível ontem talvez não seja mais amanhã.

O anúncio surpresa ocorreu apenas uma hora antes de entrevista televisiva de Emmanuel Macron. Como esperado, Macron propôs uma “trégua” política durante a realização dos Jogos Olímpicos, que começam oficialmente na sexta-feira, dia 26. Para Macron, está fora de questão uma mudança de governo antes de meados de agosto, e sob a condição de que uma maioria sólida seja alcançada, o que não seria o caso – ele fez questão de frisar – em se tratando da nova Frente Popular. “Minha escolha é pela estabilidade”, afirmou o chefe de Estado.

Para melhor sublinhar o seu argumento contra a nova Frente Popular, Macron chegou a dizer – retomando, assim, o discurso da própria extrema-direita – que, a rigor, o partido vencedor das eleições legislativas foi o RN, com mais de 10 milhões de votos, e não a aliança de esquerda. Enquanto tudo continua como está, o governo atual – cuja demissão já foi atada – continua em funções. 

Mais uma vez, Macron joga com a ambiguidade institucional diante do ineditismo da situação. De um lado, apela para o parlamentarismo, ótica pela qual pode dizer que “ninguém ganhou” as eleições, na falta de maioria absoluta. De outro, encarna a figura do “monarca presidencial”, colocando-se como árbitro que julga segundo os seus próprios critérios tanto o resultado das urnas quanto os seus desdobramentos subsequentes. Enfim, Macron se apoia também no fato de que, ao contrário dos regimes parlamentaristas puro sangue, nos quais a inexistência de maioria acarreta fatalmente a convocação de novas eleições, uma nova dissolução da Assembleia só pode ser decretada, na França, no mínimo um ano depois da precedente, ou seja, em julho de 2025. Aproveitando-se deste cenário, Macron age como se estivesse acima dos conflitos políticos e fosse a verdadeira encarnação da nação. Como se tivesse dormido Macron e acordado De Gaulle, ou o rei Louis XIV, aquele que, em 1655, diante da Assembleia, afirmou que “o Estado sou eu”.

24 de julho

Embora de perfil moderado e politicamente discreto, mais próxima ao PS do que de LFI, Lucie Castets descartou, em entrevista hoje pela manhã, qualquer aliança com o “centro” macronista, em razão de “desacordos profundos” entre os programas. Segundo ela, “não há coligação possível entre quem pensa que é necessário mais financiamento para os serviços públicos e quem pensa que é urgente cortar recursos. Não há acordo possível entre aqueles que querem que todos paguem a sua justa parte de impostos e aqueles que, ao contrário, propõem reduções de impostos aos mais favorecidos”.

Castets acusou Macron de “negação da democracia”. Ela o incitou a “assumir as suas responsabilidades”, nomeando-a ao cargo de primeira-ministra. A mesma crítica/exigência foi novamente levantada pelos expoentes da nova Frente Popular.

25 de julho

O bloqueio continua. E agora ele se revela não apenas no plano político. Com a proximidade da abertura dos Jogos Olímpicos, Paris está sitiada pelas forças de segurança. São mais de 45 mil homens e mulheres (franceses ou de outros países) patrulhando a cidade. Não se anda mais de um quarteirão sem que se cruze com um grupo de policiais armados até os dentes. Segundo o ministro do Interior, Gérard Darmanin, herdeiro do sarkozysmo (em referência ao ex-presidente Nicolas Sarkozy), eventuais manifestações estão permitidas, mas podem ser proibidas caso apresentem algum “risco” para a segurança.

Um pequeno retrato da França atual: medos reais ou imaginários, desconfiança geral, uma sociedade fraturada e uma população fatigada, sem força para barrar os deslocamentos das “cités” (equivalente francês do que seriam as nossas favelas) que acercam os lugares nos quais ocorrerão eventos olímpicos. Para muita gente, Paris não é uma festa!

26 de julho

No dia da abertura dos Jogos Olímpicos, várias linhas de trens de alta velocidade (TGV) entre Paris e outras grandes cidades da França foram alvo de atos de sabotagem. Em algumas estações da capital, o cenário é caótico. A SNCF (Sociedade Nacional de Caminhos de Ferro, na tradução literal), que controla as ferrovias, falou de um “ataque massivo” visando “paralisar a rede”, e acrescentou que a volta à normalidade não ocorrerá antes de segunda-feira. Mais de 850 mil passageiros devem ser atingidos. Segundo o presidente da SNCF, “é a França que está sendo atacada”. Um péssimo começo para um país que, segundo o presidente da República, deveria aproveitar os Jogos Olímpicos para se mostrar ao mundo “orgulhoso de si mesmo”. 

27 de julho

É interessante observar o reverso da medalha da Paris e da França apresentada nos Jogos Olímpicos, contrastando o que é representado com o que o suplanta, com o reverso da medalha. É verdade que, na cerimônia de abertura, houve um esforço para revelar uma França plural, “mestiça”, como se diz aqui, numa sobreposição um tanto aleatória de narrativas que, não por acaso, foi duramente criticada pela extrema-direita, pelo clero e pelos nostálgicos da verdadeira França – na qual, aliás, Maria Antonieta, que aparece decapitada numa das sequências da abertura, teria lugar de destaque, com cabeça e tudo. Marion Marechal [Le Pen], por exemplo, conhecida por suas posições “identitárias” de extrema-direita, denunciou uma cerimônia de abertura dominada pela “propaganda woke”. 

O ponto é que, colocado deste modo, por meio de uma antinomia cultural, o debate se reduz a uma disputa de identidades, criando um cenário perfeito para que o aparente “progressismo” oficial seja repudiado por seu elitismo diante da “França profunda”. Et pour cause. Afinal, o reconhecimento parcelado da diversidade se apresenta como um ideal – louvável, sem dúvida – que não se confirma na vida “real”. E quem o pressente não é apenas a extrema-direita, que a instrumentaliza numa direção conservadora ou francamente reacionária, mas também a maior parte das classes populares, que se veem representadas por uma imagem na qual não se reconhecem.

Basta uma passeada pelos quartiers populares (Pigalle, Belleville ou Ménilmontant, por exemplo) para ver que o entusiasmo pelos Jogos Olímpicos passa ao largo. Para os habitantes destes lugares, os Jogos Olímpicos significaram acima de tudo um aumento do controle policial – inclusive para a repressão de manifestações em defesa da Palestina. Eles são os “vencidos” dos “vencidos” apresentados – de maneira condescendente – pela narrativa oficial. Eles são o alvo da exceção permanente. Para eles, os “valores republicanos” valem mais para lembrá-los o que eles não são, e nem poderiam ser.


***
Fabio Querido é professor livre-docente de sociologia da Unicamp. Autor de, entre outros títulos, Michael Löwy: marxismo e crítica da modernidade (Boitempo, 2016; Herramienta, 2019), Daniel Bensaïd – intelectual em combate (Fino Traço, 2022) e Lugar periférico, ideias modernas: aos intelectuais paulistas as batatas (Boitempo, 2024, no prelo). Atualmente, atua como professor e pesquisador visitante na Universidade Paris-Cité.

Fonte:  https://blogdaboitempo.com.br/2024/07/31/diario-de-paris-v/

A ciência que mira o sofrimento dos animais

 Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP

 Pastora-belga-malinois Teca, de 3 anos, da Receita Federal: treinamento para farejar bagagens e protocolo para garantir bem-estar no trabalho

Pesquisadores investigam meios de dar qualidade de vida a espécies usadas ou consumidas pelos homens

O tratamento escrupuloso dos animais, uma preocupação em geral associada a organizações não governamentais (ONG) e a donos (ou tutores) de pets, ganha cada vez mais espaço na agenda de pesquisadores. Cientistas de diferentes áreas envolvem-se na tarefa de produzir conhecimento para reduzir o estresse e dar qualidade de vida aos animais, notadamente aqueles utilizados ou consumidos pelos seres humanos. Dessa mobilização, surgiu um campo interdisciplinar: a ciência do bem-estar animal. Ele integra veterinários, biólogos, psicólogos, especialistas em bioética, entre outros profissionais, em pesquisas que avaliam, para citar alguns exemplos, quais são as condições mais apropriadas para criar e transportar bois e porcos ou para manter ratos ou coelhos utilizados em experimentação científica. Também há estudos que ampliam a compreensão sobre a dor e a cognição dos bichos, essenciais para mensurar níveis de sofrimento, e os que analisam, do ponto de vista ético, as relações entre seres humanos e animais.

O ponto de partida desse campo remonta aos anos 1960, no ativismo contra a crueldade na pecuária do Reino Unido (ver box) e na convocação de pesquisadores para ajudar a enfrentar o problema. Na academia, um grande marco, em meados da década de 1980, foi a indicação do biólogo Donald Broom, hoje com 81 anos, para criar e ministrar a primeira disciplina de bem-estar animal em uma instituição acadêmica, a Universidade de Cambridge, no Reino Unido. O principal fundamento é a ideia de que animais são seres sencientes, ou seja, possuem a capacidade de experimentar sensações e sentimentos básicos, como frio e calor ou dor e medo, e distinguir as agradáveis das desagradáveis. Quando são retirados de seu hábitat natural para domesticação ou exploração comercial, é responsabilidade dos seres humanos zelar por seu bem-estar, o que inclui, de acordo com os cânones dessa área do conhecimento, três preocupações éticas: que eles possam desenvolver suas capacidades de forma análoga à da vida natural, não sintam dor ou medo e possam sentir prazer e recebam cuidados de forma a ter boa saúde.

Um novo impulso veio na década de 1990, com o lançamento de revistas científicas especializadas, como Animal Welfare ou Journal of Applied Animal Welfare Science. Um vislumbre nas edições mais recentes desses dois periódicos dá a medida de como o campo se aprimorou. Há artigos de pesquisadores de todos os lugares do planeta, como Vietnã, Turquia, Brasil, Austrália, México, Reino Unido e Nigéria. Os temas abrangem tópicos como o bem-estar de civetas, um mamífero asiático, criadas em cativeiro em plantações de café da Indonésia – os grãos digeridos e defecados por esses mamíferos produzem um café que custa US$ 2 mil o quilograma (kg) –, protocolos para a criação de tartarugas-marinhas para fins de pesquisa ou as razões pelas quais alguns tutores de pets do Reino Unido deixam de procurar assistência veterinária, mesmo com a oferta de tratamento gratuito. “Hoje, as publicações sobre o tema chegam a milhares anualmente, as conferências envolvem centenas de pesquisadores e apresentações não são incomuns nas reuniões sobre agricultura, ecologia, cognição e até mesmo sobre emoções humanas”, observou a bióloga comportamental Georgia Mason, diretora do Centro Campbell de Estudos de Bem-Estar Animal da Universidade de Guelph, no Canadá, em um artigo divulgado há seis meses na revista BMC Biology.

Civeta criada em cativeiro na Tailândia: estudos sobre bem-estar do mamífero que digere e defeca grãos de café de alto valorArief Priyono / LightRocket via Getty Images

O esforço de pesquisadores em evitar que os animais sejam tratados com crueldade responde à pressão de cidadãos e consumidores e a exigências de legislações nacionais, mas a maioria das pesquisas também mira interesses como o aumento da produtividade e da sustentabilidade na produção de carnes. Um tema frequente em países como Brasil, Uruguai e Argentina, grandes exportadores de carne, são as falhas na produção, no embarque, transporte e manejo no frigorífico – além do sofrimento, elas comprometem a competitividade da pecuária. Um estudo publicado em 2021 pelo zootecnista Mateus José Rodrigues Paranhos da Costa, pesquisador da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Jaboticabal, definiu parâmetros para a quantidade de porcos alocados em caminhões, quando são transportados para abatedouros.

A conclusão do trabalho é de que densidades de carga inferiores a 235 kg por metro quadrado (m2) permitem que os leitões tenham espaço suficiente para viajar com mais conforto nos caminhões e chegar menos cansados e machucados ao abatedouro. Essa densidade equivale a pouco mais de dois porcos por metro quadrado – o peso de um suíno na época do abate fica em torno dos 100 kg. “No Brasil, estima-se que mais de 10 milhões de quilos de carne sejam descartados anualmente por causa dos hematomas nas carcaças em virtude de quedas, pancadas e escorregões do animal, que poderiam ser evitados com um manejo mais cuidadoso”, afirma Paranhos da Costa. O estudo avaliou as condições de quase 2 mil suínos transportados. Os índices de lesão foram bem mais altos quando a densidade de porcos era de 270 kg/m2 na comparação com densidades de 240 e 200 kg/m2.

O engenheiro-agrônomo Alex Maia, também da Unesp em Jaboticabal, atualmente pesquisador visitante da Universidade de Idaho, nos Estados Unidos, estuda o papel do conforto térmico para a melhoria na qualidade de vida de bovinos. Por ano, o Brasil engorda em confinamentos aproximadamente 7 milhões de bovinos de corte em currais sem nenhum anteparo contra intempéries do ambiente, expondo-os à radiação solar (ver Pesquisa FAPESP nº 340), principalmente ultravioleta. “É um ambiente muito desconfortável para os animais, incômodo para os produtores e desafiador para a indústria, pois atualmente a sociedade tem um olhar crítico sobre esses sistemas que buscam altos lucros em detrimento da qualidade de vida dos animais.” Em parceria com o Centro de Inovação Campanelli, do grupo Agropastoril Paschoal Campanelli, localizado na fazenda Santa Rosa, em Altair, a 419 quilômetros de São Paulo, Maia desenvolve o conceito smart shade: um curral em formato retangular, com estrutura metálica com cabos de aço suspensos fixando telhas, que oferece uma projeção de sombra de 20% da área total durante qualquer horário do dia, permitindo que 100% do rebanho se proteja contra a radiação solar direta.

Foram realizados experimentos com mais de 6 mil bovinos de corte, a maioria da raça nelore, que tinham a liberdade de escolher entre ficarem expostos ao Sol ou se protegerem na projeção da sombra. Parte desses resultados foi publicada em 2023 na Frontiers in Veterinary Science. Em média, os bovinos em currais sombreados tiveram de 5 kg a 10 kg a mais no peso da carcaça, a depender da raça, quando comparados ao gado manejado em currais sem sombreamento. Do ponto de vista ambiental, um resultado que chamou a atenção foi o consumo de água. Em média, os animais dos currais smart shade reduziram a ingestão em torno de 10 litros de água por dia em relação aos bovinos que não desfrutaram do sombreamento. Com base em seus dados de pesquisa, Maia está desenvolvendo nos Estados Unidos modelos de inteligência artificial capazes de predizer o consumo de matéria seca e de água, além do ganho de peso, em razão da exposição do rebanho à radiação solar.

Curral smart shade na fazenda Santa Rosa, em Altair, interior paulista: mais conforto térmico e consumo menor de águaCentro de Inovação Campanelli

A agenda dos cientistas pode parecer convergente com a das entidades de proteção, mas seus objetivos são diferentes. Do ponto de vista das ONG, praticamente todo tipo de uso de animais é eticamente reprovável, enquanto os pesquisadores se concentram em dar a eles um tratamento digno e indolor, tentando reduzir, quando possível, seu uso, como no caso da experimentação animal. Essa abordagem dos cientistas, contudo, não é consensual nem se exime de debates éticos, às vezes, acalorados. A veterinária Carla Molento, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), considera essencial avaliar se as pesquisas e as novas tecnologias sobre bem-estar têm um interesse genuíno em melhorar as condições de vida dos animais, mesmo em um ambiente de produção, ou se o verdadeiro alvo é aumentar os ganhos do produtor. “Muitas vezes, existe um desvio insidioso. Um estudo se apresenta como pesquisa de bem-estar, mas na verdade ele visa apenas melhorar a produtividade”, diz Molento, coordenadora do Laboratório de Bem-estar Animal (Labea) da UFPR – primeiro centro brasileiro a incluir a expressão “bem-estar animal” em seu nome, em 2004.

Em um trabalho publicado por seu grupo em 2023 na revista Animals, Molento e suas colaboradoras selecionaram 180 artigos científicos que traziam as expressões “animal welfare” ou “animal well-being” em seus objetivos ou hipóteses. Cinco avaliadoras deram pontos para os artigos, em uma escala de 1 a 10, de acordo com o valor intrínseco que o texto atribuía aos animais. Nos trabalhos de revistas que tinham como mote a produção, a média foi de 4,74 pontos, enquanto os publicados em periódicos sobre bem-estar alcançaram 6,46. “A baixa pontuação geral evidenciou que as publicações sobre bem-estar não estão, em média, priorizando os interesses dos animais”, escreveu Molento. Ela propõe que estudos científicos nessa área passem a conter uma declaração explícita sobre as motivações e interesses dos pesquisadores, para aferir se os animais são tratados como prioridade.

Animais de laboratório
A experimentação científica é um outro foco importante da ciência do bem-estar animal. Garantir que os animais de laboratório tenham uma vida saudável e livre de dor é essencial para que eles cumpram a finalidade de gerar informações que façam o conhecimento avançar ou testar novas rotas para medicamentos. “Além de ser intolerável para a sociedade manter um animal em condições insalubres, isso pode criar vieses nos resultados de pesquisas”, explica a médica-veterinária Luisa Maria Gomes de Macedo Braga, presidente do Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea), órgão vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) responsável por formular e zelar pelo cumprimento de normas para o funcionamento de instalações em que animais são criados e utilizados.

Entrevista: Luisa Macedo Braga
00:00 / 12:11

O Concea foi criado pela Lei Federal nº 11.794, sancionada em outubro de 2008, que propôs procedimentos e normas para o uso de animais em pesquisas no Brasil. Ela é mais conhecida como Lei Arouca, em referência ao seu autor, o sanitarista e deputado federal Sérgio Arouca (1941-2003), presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) de 1985 a 1989. A lei também determinou que cada instituição de pesquisa tivesse uma Comissão de Ética de Uso de Animais (Ceua) encarregada de avaliar projetos que utilizem animais de laboratório, zelando para que sejam usados no menor número possível, em condições dignas e com o mínimo de sofrimento.

Resoluções do Concea mudaram o panorama da experimentação animal no Brasil. Recentemente, determinaram a substituição do uso de animais por métodos alternativos no controle de qualidade de lotes de produtos e medicamentos. Entre as tecnologias que buscam substituir o uso de animais em testes de cosméticos, uma das mais promissoras é conhecida como body-on-a-chip (BoC), baseada na impressão 3D de tecidos humanos, como pele e intestino (ver Pesquisa FAPESP nº 335). As resoluções também tiveram impacto na aplicação de políticas públicas. Um grupo de 120 pesquisadores brasileiros, coordenados na maioria por membros do Concea, trabalhou nos últimos 10 anos para produzir o Guia brasileiro de produção, manutenção ou utilização de animais para atividades de ensino ou pesquisa científica, um manual de 1,1 mil páginas que reúne orientações sobre edificações, cuidados e manejo.

Roedor criado em biotério da USP: docentes e técnicos dispõem de curso de capacitação em princípios éticos e manejoLéo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP

O guia define de modo minucioso como deve ser feita a criação de roedores, coelhos, cães e gatos, macacos, ruminantes, peixes, suínos, aves, entre outros, utilizados em experimentos científicos. Reúne descrições sobre como estruturar biotérios e outras instalações de pesquisa, sem o que elas não podem ser licenciadas – do espaço mínimo reservado a cada espécie à existência de áreas exclusivas para quarentena. Também propõe protocolos a serem adotados para reduzir a dor e o estresse dos bichos, como o nível de ruído no ambiente ou o tamanho das agulhas usadas em anestesia, ou o tipo de treinamento que os profissionais que lidam com essas experimentações precisam receber (ver Pesquisa FAPESP nº 328).

O impacto dos 15 primeiros anos de aplicação da Lei Arouca está sendo avaliado por uma equipe liderada pelo veterinário José Luiz Jivago de Paula Rôlo, da Universidade de Brasília (UnB). Um dos dados já analisados pelo grupo é o do número de artigos de autores do Brasil que mencionaram o termo “bem-estar animal” e fizeram referência a algum tipo de regulamentação relacionada ao uso de animais em projetos de pesquisa. Até a década de 1990, o número de papers era muito pequeno – no máximo, cinco por ano –, mas cresceu exponencialmente a partir de meados dos anos 2000. Só em 2020 houve mais de 200 artigos citando instruções normativas e guias do Concea. O levantamento, que deve ser concluído no final do ano, também vai mapear os grupos de pesquisa envolvidos com o tema no país. “Já é possível afirmar que existem duas grandes vertentes. Há equipes que têm como alvo a experimentação e as que se dedicam a estudos sobre animais na pecuária. E esse segundo grupo é mais numeroso”, diz Rôlo.

As duas vertentes com frequência se entrelaçam. O médico-veterinário Helder Louvandini, do Centro de Energia Nuclear na Agricultura da Universidade de São Paulo (Cena-USP), em Piracicaba, participou de uma das equipes que produziram o manual do Concea. Ele ajudou a sistematizar as normas sobre pesquisas com grandes ruminantes, como bovinos e búfalos, que estabelecem desde os cuidados na criação de bezerros até os parâmetros detalhados para sistemas de confinamento, como uso de pisos antiderrapantes e sistemas de ventilação. Louvandini conta que a questão do bem-estar se tornou uma parte indissociável de seus estudos sobre nutrição. “Coordeno um projeto apoiado pela FAPESP que pretende validar o uso de nanopartículas de óxido de zinco como um alimento funcional em ruminantes. O objetivo não é só melhorar as condições nutricionais dos animais, mas analisar o efeito no combate a parasitas, o que é um parâmetro fundamental para o bem-estar. Toda pesquisa que busque ampliar a sustentabilidade na produção acaba tendo elo com o bem-estar”, afirma.

Entrevista: Adroaldo Zanella
00:00 / 13:58

Um dos pioneiros na ciência do bem-estar animal no Brasil é o veterinário gaúcho Adroaldo José Zanella. Ele coordena o Centro de Estudos Comparativos em Saúde, Sustentabilidade e Bem-Estar na Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FM-VZ) da USP, campus de Pirassununga, e lidera pesquisas sobre bovinos de corte e de leite, ovelhas e, principalmente, suínos. Um artigo recente de seu grupo, publicado em abril na Nature Food, mapeou indicadores de sustentabilidade e bem-estar na cadeia de suínos no Brasil e no Reino Unido. O trabalho comparou dados sobre 74 criações de suínos no Reino Unido e 17 no Brasil. Um dos resultados mais relevantes indicou que, entre suínos criados em condições de bem-estar comprometido, há mais uso de antimicrobianos. “Esses fármacos são utilizados em menor quantidade quando os indicadores de bem-estar são melhores”, afirma. Zanella, que orientou a formação de mais de 30 mestres e 25 doutores, busca uma abordagem multidisciplinar para levar as pesquisas adiante, integrando advogados, médicos, filósofos, pedagogos, profissionais das ciências exatas ligados à inteligência artificial e outros. “Nosso grupo está tentando buscar pessoas nas áreas de ciências humanas que possam nos ajudar a entender, por exemplo, como melhorar a mão de obra trabalhando com animais”, diz.

Zanella se doutorou em bem-estar animal pela Universidade de Cambridge em 1992, tendo o pioneiro Broom como orientador. Sua tese teve como foco os indicadores de bem-estar de fêmeas suínas durante a gestação, até hoje um dos principais focos de seu centro de estudos. Na tese, ele identificou um marcador neurofisiológico associado ao comportamento repetitivo de suínos, que é semelhante ao comportamento desenvolvido por algumas pessoas com autismo. Outros trabalhos do grupo demonstraram que a espécie sofre de ansiedade, aumento de comportamento agressivo, problemas de memória e comprometimento das áreas do cérebro responsáveis pela modulação das emoções e processos cognitivos, em situações de isolamento social ou quando submetida ao desmame precoce, dados publicados no periódico Brain Research. Em um artigo recente de Zanella, divulgado na revista Frontiers in Animal Science, ele mostrou que, mesmo sem nunca ter entrado em contato com o pai, leitões originados de machos que permaneceram quatro semanas em celas apresentaram mais medo e ansiedade, além de níveis elevados de cortisol na saliva quando expostos a situações estressantes pelas quais nunca tinham passado antes. Essas mesmas questões vêm sendo avaliadas em ovelhas e cabras, com resultados semelhantes.

Ovinos, tilápia massageada por cerdas em aquário no campus da Unesp e coleta de fluido oral de suínos de forma não invasiva, ambos no campus de Pirassununga da USPLéo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP | Ana Carolina dos Santos Gauy

Apesar da prevalência de estudos voltados para a pecuária, hoje já há pesquisas no país sobre muitas outras espécies. Pesquisadores da UnB apoiam instâncias do governo federal, como o Ministério da Agricultura e Pecuária, a Polícia Federal e a Receita Federal, que utilizam cães de olfato excepcional utilizados para farejar drogas, explosivos e alimentos, e ajudam a definir protocolos que devem ser seguidos para garantir o bem-estar dos animais. Cães, que chegam a custar R$ 60 mil reais, podem ter o desempenho diminuído na execução de tarefas quando são submetidos a condições exaustivas ou muito adversas.

“O potencial máximo de um animal é atingido quando ele se sente confortável, bem alimentado e hidratado, e há uma série de parâmetros de bem-estar, como horas de trabalho e pausas para descanso, que precisam ser seguidas”, explica o médico-veterinário Cristiano Barros de Melo, professor da UnB, que ministra uma disciplina sobre Cães de Interesse do Serviço Público na pós-graduação em ciências animais da universidade e oferece capacitação científica a empresários e funcionários públicos que lidam com caninos. “Para os cães, o trabalho de farejar é uma brincadeira agradável. Se ele entender o trabalho como uma grande brincadeira, suas habilidades são aproveitadas. Quando fareja em alto desempenho, sua boca permanece fechada e a respiração segue pelas narinas, por conta do foco que necessita manter durante o trabalho. Por isso, é preciso calibrar seu esforço.”

Em um estudo publicado em maio na revista Frontiers in Veterinary Science, o grupo de Melo avaliou o desempenho de cães da Receita Federal envolvidos em apreensões de drogas entre 2010 e 2020 em fronteiras, aeroportos, portos e centros de recepção de encomendas dos Correios, em cenários reais no Brasil. Foram apreendidos 97,7 mil quilos de maconha, 179,3 mil quilos de cocaína, entre outros entorpecentes. A conclusão do estudo é de que, a cada novo cachorro introduzido no sistema de fiscalização, houve um aumento de mais de 3 toneladas de drogas apreendidas.

Mas também há pesquisas em fases de investigação anteriores à aplicação. A zoóloga Eliane Gonçalves de Freitas, do Laboratório de Comportamento Animal da Unesp, campus de São José do Rio Preto, está estudando como a estimulação táctil corporal, um recurso usado para reduzir o estresse de diversas espécies, pode melhorar o bem-estar de tilápias. Em dois artigos, um publicado em 2019 e outro em 2022 na revista Scientific Reports, seu grupo analisou o comportamento de tilápias criadas em aquários que, para chegar ao local onde havia alimento, eram obrigadas a passar por uma coluna de cerdas macias de silicone que massageavam suavemente seus corpos. Embora a estimulação não tenha tido impacto nos níveis do hormônio cortisol, cuja elevação está associada a estresse, as tilápias do experimento reduziram sua agressividade em interações com as outras.

Também se observou que os peixes cresceram mais rapidamente com menor consumo de alimentos, o que foi atribuído ao gasto energético poupado em lutas. Em um projeto apoiado pela FAPESP em parceria com pesquisadores da Universidade do Porto, em Portugal, e da Universidade de Tecnologia da Dinamarca, Freitas investiga agora se as tilápias procuram voluntariamente a massagem caso não sejam obrigadas a ultrapassar as cerdas, além de alguns mecanismos neurais envolvidos com a resposta à estimulação táctil. Também está analisando o efeito da massagem em três peixes ornamentais de comportamento agressivo e se os efeitos também se reproduzem em espécies marinhas de interesse para a aquicultura europeia, como a dourada (Sparus aurata) e o sargo (Diplodus sargus). “A quantidade de estudos sobre o bem-estar dos peixes ainda é pequena e essa área só começou a crescer neste século. Há evidências de que eles sentem dor, mas há poucos estudos sobre como reduzir o sofrimento”, afirma. Um dos desafios da ciência do bem-estar animal, observa Freitas, é expandir seus domínios para espécies que hoje não atraem muita atenção dos pesquisadores, seja porque não inspiram compaixão nos seres humanos ou então porque não despertam interesse comercial.

O gatilho contra a crueldade
Livro da década de 1960 denunciou currais superlotados no Reino Unido

Em 1964, a ativista inglesa Ruth Harrison abriu a caixa de Pandora da crueldade na produção animal ao publicar Animal machines. No livro, de 186 páginas e sem tradução no Brasil, ela denunciava o imenso contraste entre fazendas idílicas com seus celeiros cobertos de líquens e vaquinhas chamadas pelo nome e os “desajeitados” galpões que, àquela altura, já aplicavam antibióticos e hormônios nos animais e os confinavam em currais superlotados para transformá-los em mercadorias. O livro teve um forte impacto. Em junho do mesmo ano, o governo do Reino Unido convocou o professor de zoologia Francis William Rogers Brambell, da Universidade de Bangor, para liderar uma equipe de investigadores e dar uma resposta técnica à questão. Afinal, o livro era um exagero ou o sistema intensivo estava realmente causando sofrimento aos animais?

Em dezembro de 1965, o grupo, chamado tempos depois de Comitê Brambell, divulgou um relatório de 85 páginas no qual reconhecia que os animais poderiam experimentar dor física e sentimentos como medo, raiva, apreensão, frustração e prazer. Também destacou a importância da independência de movimento do animal, definida em cinco “liberdades”: virar-se, limpar-se, levantar-se, deitar-se e esticar os membros. Ante a falta de pesquisas a respeito, o comitê propôs que cientistas voltassem seus estudos ao tema do bem-estar a fim de definir o termo com maior precisão e desenvolvessem índices e parâmetros para que as condições em que vivem os animais, especialmente aqueles criados com fins alimentares, pudessem ser mais bem avaliadas e mensuradas. Estava aberta a porteira da ciência do bem-estar animal.

Apoio à formação profissional
Cursos dão treinamento sobre princípios éticos e manejo em experimentação animal

Em 2017, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) lançou um edital para financiar cursos e treinamento para docentes, técnicos, veterinários e estudantes que trabalham em instalações em que se faz experimentação animal. O grupo da bióloga Patrícia Gama, diretora do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP) e coordenadora da Rede USP de Biotérios, teve um projeto selecionado na chamada. Ele resultou na criação de um curso a distância de extensão de capacitação em princípios éticos e manejo, que atendeu mais de 10 mil profissionais. “Classificamos o curso como de difusão, categoria na qual pudemos incluir pessoas sem formação completa, já que muitos funcionários de instituições de pesquisa não completaram o ensino médio”, explica Gama, que montou o programa com Claudia Cabrera Mori, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP, e mais um grupo de veterinários que já atuavam na instituição.

Na primeira edição, de 2018 a 2021, 10.726 pessoas foram selecionadas, das quais 6.418 concluíram o curso. Na segunda rodada, de 2021 a 2022, houve 7.914 selecionados e 4.895 concludentes. Diante da demanda do Concea para que o treinamento obrigatório se estendesse para além de ratos e camundongos, abrangendo cuidados com outros animais, como bovinos, aves e peixes, o grupo da USP constituiu a partir de março de 2023 um curso de princípios éticos e de manejo, com módulos dessas espécies em separado. Até janeiro deste ano, 4.559 dentre 10.813 inscritos haviam concluído esse curso. “Na prática, já vemosmudanças de comportamento”, diz Gama. Segundo ela, a qualidade do treinamento e das instalações tem feito com que se use menos animais por experimento científico, o que também reflete na disseminação dos resultados.

A reportagem acima foi publicada com o título “Cuidado e empatia com os animais” na edição impressa nº 341, de julho de 2024.

Projetos
1. Bem-estar animal como valor agregado nas cadeias produtivas da pecuária (nº 23/12374-4); Modalidade Auxílio Organização ‒ Reunião Científica; Pesquisador responsável Mateus José Rodrigues Paranhos da Costa (Unesp); Investimento R$ 96.605,44.
2. Estimulação táctil corporal e bem-estar em peixes: Efeitos sobre a agressividade, monoaminas cerebrais e desempenho produtivo (nº 23/02306-1); Modalidade Auxílio à Pesquisa ‒ Regular; Pesquisadora responsável Eliane Gonçalves de Freitas (Unesp); Investimento R$ 273.424,42.
3. Nanopartícula de óxido de zinco como alimento funcional (nº 19/26042-8); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Helder Louvandini (USP); Investimento R$ 2.528.542,97.
4. Consequências epigenéticas da experiência no período pré-cópula de machos suínos na cognição e emocionalidade de leitões (nº 20/00826-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa ‒ Sprint; Convênio Linköping University (LiU) Pesquisador responsável Adroaldo Jose Zanella (USP); Investimento R$ 32.630,38.
5. Sombreamento com uso de painéis fotovoltaicos para bovinos de corte: Um estudo do equilíbrio térmico, da viabilidade econômica e do impacto ambiental (nº 18/19148-1); Modalidade Auxílio à Pesquisa ‒ Programa de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais; Pesquisador responsável Alex Sandro Campos Maia (Unesp); Investimento R$ 208.086,17.
6. A contribuição do macho para o desenvolvimento de fenótipos robustos e o papel mitigador do bem-estar das fêmeas suínas (nº 18/01082-4); Modalidade Auxílio à Pesquisa ‒ Regular; Pesquisador responsável Adroaldo Jose Zanella (USP); InvestimentoR$ 222.973,53.

Artigos científicos
MASON, G. J. Animal welfare research is fascinating, ethical, and useful ‒ but how can it be more rigorous? BMC Biology. v. 21, n. 302. 2023.
URREA, V. M et al. Behavior, blood stress indicators, skin lesions, and meat quality in pigs transported to slaughter at different loading densities. Journal of Animal Science. v. 99. ed. 6. 2021.
MAIA, A. S. C et al. Economically sustainable shade design for feedlot cattle. Frontiers in Veterinary Science. v. 10. 2023.
FRAGOSO, A. A. et al. Animal Welfare Science: Why and for Whom? Animals. v. 13. p. 1833. 2023.
BARTLET, H. et al. Trade-offs in the externalities of pig production are not inevitable. Nature Food. v. 5. p. 312-22. 2024.
ZANELLA, A. J. et al. Effects of early weaning and social isolation on the expression of glucocorticoid and mineralocorticoid receptor and 11β-hydroxysteroid dehydrogenase 1 and 2 mRNAs in the frontal cortex and hippocampus of piglets. Brain Research. v. 1067. p. 36-42. 2006.
ZANELLA, A. J. et al. Inheriting the sins of their fathers: Boar life experiences can shape the emotional responses of their offspring. Frontiers in Animal Science. v. 4. 2023.
MELO, C. B. et al. Detection dogs fighting transnational narcotraffic: Performance and challenges under real customs scenario in Brazil. Frontiers in Veterinary Science. v. 11. 2024.
BOLOGNESI, M. C et al. Tactile stimulation reduces aggressiveness but does not lower stress in a territorial fish. Scientific Reports. v. 9. n. 40. 2019.
GAUY, A. C et al. Long-term body tactile stimulation reduces aggression and improves productive performance in Nile tilapia groups. Scientific Reports. v. 12, n. 20239. 2022.

Fonte:  https://revistapesquisa.fapesp.br/a-ciencia-que-mira-o-sofrimento-dos-animais/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=Ed342&utm_id=jul24

segunda-feira, 29 de julho de 2024

O 'Banquete dos Deuses', de Jan Van Bijlert e não a 'Última Ceia' de Leonardo Da Vinci

 


"O Banquete dos Deuses" de Jan van Bijlert

Durante a cerimônia de ontem à noite, uma cena envolvendo personagens LGBTQIA+ gerou polêmica. Muitos acreditaram que a inspiração fosse "A Última Ceia" de Leonardo da Vinci, mas, na verdade, foi "O Banquete dos Deuses" de Jan van Bijlert!

O artigo é publicado por Paris I Love You, via Facebook, 27-07-2024.

Eu como mestre em história da arte, percebi que os personagens representavam deuses da mitologia e não os apóstolos.

O Banquete dos Deuses se passa no Monte Olimpo, onde os deuses estão reunidos para um banquete celebrando o casamento de Tétis e Peleu. Apolo, coroado e identificável pela sua lira, preside no centro da mesa. (olha o Jesus dos desinformados). Alguns deuses estão ausentes, provavelmente devido ao corte que a tela sofreu na parte esquerda; a presença do pavão de Juno sugere isso. O sátiro dançando em frente à mesa e o Baco (ou Dionisio) está deitado em primeiro plano, pressionando um cacho de uvas contra a boca.

Dionísio ou Baco, o deus do vinho, simboliza alegria e diversidade tema muito importante nos dias atuais — grande diferença da temática de "A Última Ceia".

Representação de Dionísio na Abertura dos Jogos Olímpicos da França | Foto: Divulgação

Entender a história por trás das obras nos permite apreciar e entender sua mensagem e nos ajuda também a não passar vergonha na internet, comparando o incomparável.

Uma cliente do museu d’Orsay de hoje me disse: "Fica tudo tão claro quando você explica, a sua didática é maravilhosa." Espero que tenha ficado claro pra vocês também. Lembrei dessa mesa com os apóstolos, pois quando eu falo sobre As Bodas de Caná no Louvre, quase todo mundo pensa que é a Última Ceia de Da Vinci também, só que não.

Artistas LGBTQIAP+ Performam "O Banquete dos Deuses" de Jan van Bijlert, na cerimônia dos Jogos Olímpicos de Paris

Vamos estudar e se informar antes de soltar na internet coisas do tipo: Blasfêmia. E que Dionísio traga a todos vocês um bom vinho francês para relaxar, acalmar os ânimos e celebrar a diversidade e a união.

Liberté, Égalité, Fraternité, Diversité et Santé !

Fonte:  https://www.ihu.unisinos.br/641751-o-banquete-dos-deuses-de-jan-van-bijlert-e-nao-a-ultima-ceia-de-leonardo-da-vinci

 

A “blasfêmia” olímpica.

Artigo de Francesco Sisci*

https://www.ihu.unisinos.br/images/ihu/2024/07/24_07_abertura_jogos_olimpicos_reproducao_x.png

29 Julho 2024

"A 'blasfema' última ceia é talvez, para além de qualquer intenção, uma oração para que o Deus cristão venha e nos ajude a todos na nossa miséria e orgulho"

Eis o artigo.

A representação queer da Última Ceia na cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris abriu uma questão extremamente delicada no cerne da relação da modernidade no Ocidente com a religião e da sua relação com o Islã.

Os bispos franceses “sublinham o quão importante é hoje promover a fraternidade em todo o mundo através dos valores desportivos e olímpicos – como não lembrar também as outras duas dimensões: liberdade e igualdade – com respeito por todos. Este elevado ideal foi manchado por uma zombaria blasfema de um dos momentos mais sagrados do cristianismo. E os bispos franceses salientam que muitos membros de outras religiões enviaram a sua solidariedade”.

A acusação é que o cristianismo foi ridicularizado e que ninguém ousaria fazer tal coisa com o Islã por medo de uma reação irada. Até um bilionário envolvido na vida pública como Elon Musk interveio declarando que o cristianismo é “desdentado”, incapaz de morder, fraco, fraco e, portanto, um perdedor, porque insulta a si mesmo, mas não aos valores do Islã.

Thomas Jolly, criador da representação, tentou suavizar o tom: “Acho que ficou bem claro que era Dionísio chegando à mesa”. E os organizadores acrescentaram: “Se alguém se sentiu ofendido, pedimos desculpas”.

É quase como ver a Igreja num canto. Se criticarmos a representação do jantar, a Igreja é retrógrada e reacionária; se você não criticar, o catolicismo não é uma religião verdadeira que seja respeitada como o Islã. Mas talvez haja algo mais por trás da polêmica. O show foi realmente blasfemo? E se fosse?

O fato de a Igreja estar sendo atacada demonstra a força da sua mensagem, prova de que a Eucaristia, celebrada na Última Ceia, é um elemento reconhecido e reconhecível por todos, crentes e não crentes. Talvez nada demonstre fé em Deus como a blasfêmia. Todos sentem que podem recorrer à Igreja sem medo.

A sacralidade hierática do Islã, da qual ninguém se atreve a zombar, prova que se tornou uma fé distante do mundo moderno e das complexidades. Este Islã hierático estaria certo se o mundo retrocedesse, rumo a uma religião onde Deus é inatingível para o homem. Mas o mundo está andando ao contrário.

Os seres humanos são mais numerosos do que nunca, vivendo mais e melhor do que nunca na sua história de um milhão de anos. Sentem-se quase imortais, invencíveis e querem um Deus próximo deles, que fale com eles. Precisamente porque os homens estão mais ricos e mais poderosos do que nunca, estão a descobrir os seus novos e diferentes limites de finitude.

A “blasfema” última ceia é talvez, para além de qualquer intenção, uma oração para que o Deus cristão venha e nos ajude a todos na nossa miséria e orgulho.

Talvez alguns imãs muçulmanos também devessem olhar para este Deus próximo e misericordioso. O mundo é miserável e será cada vez mais miserável com o avanço imparável da modernidade. É por isso que precisamos de um Deus que saiba rir dos pecados humanos e ouvir as orações distorcidas que chegam.

* Francesco Sisci, sinólogo, autor e colunista italiano que vive e trabalha em Pequim, pesquisador sênior da Universidade Renmin e contribui para vários periódicos e grupos de reflexão sobre questões geopolíticas, em artigo publicado por Settimana News, 29-07-2024.

Fonte:  https://www.ihu.unisinos.br/641755-a-blasfemia-olimpica-artigo-de-francesco-sisci

domingo, 28 de julho de 2024

Que tal uma santa ceia islâmica?

Luiz Felipe Pondé*

A ilustração colorida de Ricardo Cammarota foi executada em técnica manual com pastel oleoso sobre papel. As Imagens, sem fios de contorno, estão em acabamento estilo esfumaçado.  Na horizontal, proporção 17,5cm x 9,5cm, a ilustração estilizada, figurativa, mostra uma tela de um smartphone como moldura de uma arte colorida de uma guilhotina sem lãmina sobre fundo de céu tempestuoso.
Ilustração de Ricardo Cammarota para a coluna do Pondé do dia 28 de julho de 2024 - Ricardo Cammarota

Queria ver esses caras gozarem com o islã 
como gozaram com o cristianismo

Façamos um exercício de imaginação ativa hoje. Se você não tiver estômago, como é comum no ambiente cultural, pare e não leia o que vem a seguir.

Imagine que ao longo dos dias das Olimpíadas em Paris, o criador da cerimônia de abertura e todos os participantes da "cena revolucionária" da Santa Ceia fossem fuzilados por brigadas cristãs furiosas que gritassem "Jesus é grande!".

Como acha que o mundo da cultura local e internacional —ocidental, claro— reagiria?

"Inteligentinhos" em geral —que gozaram com o deboche da Santa Ceia achando-o um marco revolucionário— teriam surtos epileptiformes. "Que horror! Quanta violência!"

"Deus do céu!" —a exclamação cai bem no tema em questão. Como é fácil dar xeque mate na esquerda "woke", basta você ter dois neurônios e um pouco de colhão, porque eles não têm nenhum desses substantivos em questão.

Queria ver essa cambada de frouxo gozar com o islã como gozaram com o cristianismo —a população islâmica francesa é significativa, aliás.

Lembrando bem, em janeiro de 2015, mataram os caras da Charlie Hebdo em Paris porque zoaram com o profeta Maomé, e houve "inteligentinho" humorista por aí que quase disse que os cartunistas eram culpados por terem sido assassinados porque tiraram sarro de uma população oprimida.

Pessoalmente, "adoro" essa lógica oprimido-opressor no que tange ao mundo do pensamento público.

Nunca inventaram mau-caratismo maior desde as mentiras nazistas sobre os judeus ou o "sucesso socialista" de Stálin.

Essa é fácil de responder. Porque há décadas a inteligência pública é composta na sua quase totalidade por delinquentes adolescentes com capacidade cognitiva e política duvidosa.

* Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

Missionários de um Deus vencido

Viriato Soromenho-Marques*
Categoría «Hipocresía» de fotos e imágenes | Shutterstock

Para quem prega a democracia pelo mundo fora, com missionários armados até aos dentes, o atentado falhado contra Trump, bem como a permanência no espaço público da patética figura de Biden, revelam bem toda a tóxica hipocrisia de quem não respeita, em casa, as boas-práticas impostas aos de fora com baionetas. Hipocrisia, até quando se usa a democracia como escudo para alimentar o inferno genocida dos amigos, como ocorre em Gaza. Sem uma pinga de espírito crítico, desprovidos da capacidade de se olharem ao espelho sem os partirem, os protagonistas da tragédia americana desempenham os seus papéis, sem cuidar da triste imagem derramada para o resto do mundo.

Mas o que são hoje os EUA? Nascido o país de uma ideia setecentista de liberdade, própria e vigorosa, conseguiu firmá-la na primeira Constituição moderna. Ela esteve nas secretárias dos constitucionalistas franceses de 1789-1791, e tem sido modelo para muitas leis fundamentais de muitos outros países ao longo dos séculos.

A liberdade política original dos EUA respira um espírito de independência, das comunidades e indivíduos, contra qualquer tutela externa (duas guerras contra o Império Britânico). É uma liberdade republicana, representativa, que inventou o primeiro federalismo onde os cidadãos também contam. Mas essa liberdade liberal (o pleonasmo é só aparente) tem um poderoso antagonista. Fraco no início, mas que ganhou força com o crescimento da tecnologia e dos mercados. A liberdade económica. Ela é não só mais indomável e irrestrita do que a liberdade política, como, tem capacidade para a controlar e, eventualmente, destruir.

 A concentração de riqueza é hoje pornográfica. A desigualdade campeia. Cada cidade norte-americana fecha os olhos aos seus milhões de sem-abrigo (losers), pobres e doentes.

A liberdade económica norte-americana é iliberal. Não tem limites constitucionais, e ainda menos éticos. Produz bilionários, que transportam nos bolsos, senadores e candidatos presidenciais, como quem exibe troféus de caça. No campo de batalha do mercado não há Convenção de Genebra, nem se fazem prisioneiros. A concentração de riqueza é hoje pornográfica. A desigualdade campeia. Cada cidade norte-americana fecha os olhos aos seus milhões de sem-abrigo (losers), pobres e doentes.

Em 1970 o Coeficiente de Gini (que mede a desigualdade, sendo ela maior quanto maior é o seu valor) nos EUA era de 0,39, hoje é de 0,49. Comparativamente, Portugal tem 0, 35 e a Rússia tem 0,36.

O Estado federal (haverá exceções nos planos municipal e estadual) é hoje uma instituição plutocrática, uma “democracia bilionária” (para citar o título de um livro de 2018, de George R. Tyler). Por isso, Trump será de novo o presidente dos EUA. O dinheiro dos bilionários, a começar por Elon Musk, jorra de Biden para a sua campanha. Como carisma do crepuscular deus da democracia.

* Professor universitário

Fonte:  https://www.dn.pt/1336119785/missionarios-de-um-deus-vencido/ Imagem da Internet

Amo escolas - Por isso, luto para que o sentido delas sobreviva, menos burocrático e formal

 Escolas particulares com diferentes perfis serão tema de debate no Educação  360 - Jornal O Globo

Tenho esperança de que nossa comunidade educativa desperte a tempo de transformar o sentido dos anos vividos ali. E você? Vê futuro para a sala de aula?

Eu ensino. A frase é simples, mas todos entendem. Você, querida leitora e estimado leitor, já ensinou algo a alguém. Todos os seres humanos partilham da dupla experiência de ensinar e aprender. No entanto, o que significa “ensinar”? O termo deriva do baixo latim “insignare” e possui o sentido original de assinalar ou, de forma mais ampla, colocar um sinal. Aquele que aprende deve ser assinalado, ensinado. O sentido de “transmitir um conhecimento” foi desenhado a partir da Idade Moderna.

No mesmo momento em que o verbo ensinar adquiriu a forma sobre a qual entendemos agora, a transmissão de um saber, emergem palavras como formar e educar. Dar uma forma, conduzir, é algo que está na palavra latina “educere”, identificada na infeliz memória do título fascista Duce (o que conduz). Tivemos de aguardar a obra de Rousseau (Emílio) para que o verbo educar ganhasse a dimensão positiva atual.

O verbo que eu uso determina a concepção sobre alunos e o ato de aprender. A palavra instruir pode indicar fornecer equipamentos úteis. Em latim, “instrumentum” é uma ferramenta útil.

Quando se pensava a criança como uma folha de papel em branco ou alguém perfeitamente moldável, os objetivos e vocábulos educacionais eram muito diretos. Tratava-se de um processo de “adestramento” de um corpo/espírito. A escola deveria produzir saberes úteis e disciplinas que combatessem a preguiça, a desordem, ou seja, o “animal” que se escondia em cada um de nós. Educar era uniformizar. Um bom aluno era recatado, escrevia e pensava a partir de padrões estabelecidos. Alguém “educado” era alguém previsível, controlado, capaz de ser inserido em uma sociedade tradicional.

A grande crise da educação em casa e na escola é que não reconhecemos mais o processo de aprendizagem como um processo de se adaptar a um mundo. Não sabemos mais qual será este mundo. A velocidade das mudanças superou a capacidade de pensar educação, seja qual for a etimologia dada ao termo escola. Tudo o que importa parece estranho à sala de aula. Quase todos nós, os adultos, viramos melancólicos repetidores do mantra “no meu tempo”, que serve mais para balizar meu passamento do que pensar um novo tipo de educação.

A utilidade da escola está ficando burocrática e formal, cada vez menos orgânica. Dizem: “Tenho de fazer o ensino fundamental e médio porque, sem eles, não terei acesso à universidade. Sem ela, não posso ter o diploma que garante meu universo produtivo e minha estabilidade”. Ademais, o diploma universitário está se tornando um título de nobreza: uma convenção social que produz a crença de que há pessoas melhores do que outras.

Se professores, pais e alunos não fizerem um debate honesto e rápido sobre o que é nossa compreensão de processo educacional, a escola vai perder por completo sua relevância. Três eixos podem ser assinalados como desafios a uma escola do século XXI: a) convivência produtiva com a diversidade humana; b) curiosidade científica e estética; c) senso crítico em relação ao mundo como se apresenta. Esses eixos podem ser desdobrados em dezenas de outros.

Olho nas mídias sociais reclamações de pais e de educadores. Alguns tocam em aspectos essenciais. Outros estão discutindo se a escola usa ou não linguagem neutra. Os neologismos podem ser usados para discutir linguística e dinamismo da fala. Deveriam ser tratados como o verbo “deletar”: sem paixão, com objetividade e, igualmente, sem adesão automática por “modismo”. Usei um exemplo menor para chamar atenção sobre como é fácil, em um mundo de ascensão de IA, ficar debatendo detalhes irrelevantes e deixando de discutir os eixos antes citados.

Um plano de ação? Uma educação a partir de problemas, usando imagens, integrando o lúdico e o metódico, valorizando a autonomia do pensamento e dizendo que o tempo de escola é um desafio a ser preenchido pela descoberta da arte, da linguagem e da ciência; de convívio com colegas diferentes e com capacidade de pensar ética, estética e criação.

Hoje, se eu tivesse de avaliar uma instituição de ensino, pensaria se as crianças e os jovens voltam dela com questões novas, debatendo no almoço familiar o que aprenderam, intrigados ou até espantados com os muitos mundos novos que descortinaram. Quase sempre, os alunos deixam a escola como apenados com um breve sursis, livres para viverem a vida real em regime semiaberto, mas voltando no dia seguinte até cumprirem o tempo obrigatório da sentença. Depois de viver com o que gosta, esse aluno voltará aos seus catetos e hipotenusas, às suas capitanias hereditárias, aos seus anacolutos e catacreses e à linguagem passivo-agressiva que domina as salas.

Amo escolas. Por isso, luto para que o sentido delas sobreviva. Tenho esperança de que nossa comunidade educativa desperte a tempo de transformar o sentido dos anos vividos ali. E você? Vê futuro para a sala de aula? 

* Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades 

Fonte:https://www.estadao.com.br/cultura/leandro-karnal/amo-escolas-por-isso-luto-para-que-o-sentido-delas-sobreviva-menos-burocratico-e-formal/

França iconoclasta nos lembra que Olimpíadas não são jogos cristãos

Por Fabiano Lana

 Anéis olímpicos

 Anéis olímpicos Foto: Divulgação/COB

Podemos ver a abertura dos Jogos como uma tentativa de lacração, provocação barata. Como acontece com quase tudo no mundo atual, as cenas dividiram os militantes planetários

As Olimpíadas não são um evento cristão. Longe disso. São competições que têm suas origens no ano 776 antes de Cristo para celebrar os deuses gregos, sobretudo Zeus, que era um personagem mitológico devasso e violento. O fim dos jogos olímpicos da era antiga, no ano 393 da nossa era, também tem a ver com o fato de que, na versão mais estabelecida da história, um imperador romano convertido à religião Cristã, Teodósio I, proibiu eventos relacionados ao paganismo e ficamos cerca de quinze séculos sem o espetáculo em sua concepção original.

Além disso, enquanto nos horrorizamos com um transgênero em pleno 2024, no caldo de cultura em que surgiram as Olímpiadas - a Grécia antiga - o homossexualismo não só era permitido como socialmente podia ser estimulado. Como tradição, o homem mais velho (erastes) atuava como tutor de um jovem (erômeno) do ponto de vista filosófico, militar, político e sexual. Os textos helênicos estão recheados de exemplos nesse sentido. O Banquete, de Platão, umas das obras cruciais da filosofia ocidental, sobre o amor ideal, é um texto que celebra a ligação mais que espiritual entre Sócrates e seu discípulo Alcibíades.

Talvez também seja preciso lembrar da forte tradição iconoclasta da cultura francesa. É o país do sacerdote católico Jean Meslier (1664-1729) que escreveu um tratado para promover o ateísmo (!) que continha a seguinte frase: “O homem só será livre quando o último rei for enforcado nas tripas do último padre”. Intento que foi levado às últimas consequências pelos revolucionários de 1789 e que está presente nas páginas do jornal satírico Charles Habdo, que em março de 2015 sofreu um atentado de extremistas mulçumanos que vitimou 11 de seus integrantes e dois policiais.

De fato, podemos ver a abertura das Olimpíadas francesas como uma tentativa de lacração, uma provocação barata. Uma drag queen que remete ao Cristo da Santa Ceia de Leonardo Da Vinci. O Deus grego Dionísio representado por modelo pintado de azul. Um cavalo branco guiado por um ser sombrio de armadura. Ok. Como acontece com quase tudo no mundo atual, as cenas dividiram os militantes planetários. De um lado houve celebração da diversidade. De outro se viu blasfêmia e até mesmo mensagens satânicas subliminares. “A que ponto chegamos?”, reclamaram alguns.

Mas, por outro lado, se a gente pensa que as Olimpíadas na era Cristã contam com 128 anos, a partir de 1896, contra os doze séculos de sua realização na era antiga, é possível pensar que a bagagem cultural dos jogos transcende em muito qualquer suposta sensibilidade das religiões monoteístas, consolidadas bem mais tarde. Além disso, a França é a terra não só de Meslier, mas de outros polemistas natos como Voltaire. Digamos que esse tipo de provocação seja até mesmo tradicional entre os gauleses. 

 

Além disso, o conceito de blasfêmia não costuma resistir ao tempo. Já foi blasfemo, Galileu que o diga, dizer que o planeta Terra girava sobre seu eixo e dava voltas em torno do Sol (contradiz Josué 10:12 da Bíblia). Em alguns países é blasfêmia as mulheres não vestirem véus adequadamente e a pena pode ser a morte. Já foi blasfêmia as mulheres participarem ou mesmo assistirem ao jogos. Os tempos mudam, em muitos casos para serem mais tolerantes (e menos mal-humorados). Uma das tentativas do chamado movimento identitário, inclusive, é considerar blasfemo declarações que afetem suas suscetibilidades.

Há algo que também deveria ser pensado sobre o cristianismo. Em tese trata-se de uma religião que pode ser interpretada como uma defesa dos mais fracos. No mundo atual uma drag queen obesa estaria em qual categoria, dos humilhados ou de uma ameaça aos valores cristãos? A resposta hoje depende de qual a sua postura em relação à tal guerra de cultural. “Os humilhados serão exaltados”, diz a intepretação de Mateus, na Bíblia, seria esse o sentido da cena? Ou então, seria algo como: “Cristãos, o fim dos tempos se aproxima e nossos valores estão ameaçados”, como se pronunciaram alguns líderes políticos, como dirigente italiano Matteo Salvini, ou em um exemplo tupiniquim, o deputado Nikolas Ferreira.

A maioria dos questionamentos acima sobre como deve ser interpretada a abertura das Olimpíadas não tem solução consensual. Mas a graça de uma sociedade verdadeiramente liberal seria: quer fazer uma sátira da cena da Santa Ceia (ou do quadro “A Festa dos Deuses, de Giovani Bellini) com um transgênero obeso? Pode. Quer protestar contra a cena e pedir boicote das Olimpíadas? Também pode. E toda controvérsia seguir no campos das ideias e argumentos, mesmo que apelativos ou falaciosos, sem chegar à violência. Nesse sistema, o Estado nem as convicções religiosas têm poder de proibir opiniões ou manifestações artísticas, mesmo as consideradas blasfêmias.

Uma nota para reflexão: o promíscuo Zeus, a quem se dedicavam as Olimpíadas antigas, e o homossexual Leonardo da Vinci (leiam a biografia de Walter Isaacson sobre esse gênio), tinham comportamentos que chocariam toda essa gente que condenou a abertura das Olimpíadas. Frente a tantos fatos ultrajantes (a depender de sua perspectiva sobre moralidade) que estão por trás da origem dos jogos, se escandalizar com drags queen como apóstolos na Santa Ceia seria muito barulho por nada. “Posso não concordar com nenhuma das palavras que você disser, mas defenderei até a morte o direito de vocês dizê-las”, afirmou Voltaire em declaração do século 18 cada vez menos aceita pelos polarizados de plantão do histérico mundo contemporâneo, à esquerda ou à direita.

 *Fabiano Lana é formado em Comunicação Social pela UFMG e em Filosofia pela UnB, onde também tem mestrado na área. Foi repórter do Jornal do Brasil, entre outros veículos. Atua como consultor de comunicação. É autor do livro “Riobaldo agarra sua morte”, em que discute interseções entre jornalismo, política e ética.

Fonte:  https://www.estadao.com.br/politica/fabiano-lana/franca-iconoclasta-nos-lembra-que-olimpiadas-nao-sao-jogos-cristaos/

A força política da bajulação

 José de Souza Martins

 — Foto: Carvall

 — Foto: Carvall

A destruição até dos laços de família com a polarização manipulada pelo bolsonarismo gerou a desorganização política do país com o crescimento da desorganização social

 

Um dos aspectos mais preocupantes da política brasileira desde o fim da ditadura militar e, acentuadamente, desde a ascensão de Jair Messias à Presidência da República, é o do declínio do humor político. Sinal de que está em decadência a consciência crítica popular que, entre nós, se manifestava no riso.

O bolsonarismo trouxe consigo o ódio às diferenças políticas, a satanização dos diferentes e das diferenças, a intolerância em relação ao outro, suas ideias, seu modo de ser. Trouxe, sobretudo, a ideologia no lugar do saber, da ciência, da arte, da liberdade de pensamento, da consciência crítica, do discernimento e da criatividade.

Na Primeira República, as músicas faziam o desmonte crítico dos fatos políticos e dos chamados figurões da política. Política era tudo. Na Revolução de 1924, em São Paulo, num combate durante uma noite fria no Belenzinho, o tenente João Cabanas, que comandava os rebeldes contra os legalistas do Exército, mandou seus soldados cantarem bem alto “Tatu Subiu no Pau”. Música de Eduardo Souto, sucesso do Carnaval de 1923, o que deixou os inimigos atônitos e vulneráveis. A cantoria fora de hora e de lugar era arma da revolta.

A música carnavalesca fazia parte de um mesmo conjunto de crítica política com as caricaturas de jornais, revistas e almanaques de farmácia.

Por esse crivo, sublinhar e ironizar as incoerências políticas era um modo de expor e ressaltar os aspectos irracionais e contraditórios da ação política. Muitas vezes, com verdadeiros diagnósticos etnográficos dos nossos defeitos políticos.

Desconstruir e ironizar para revelar e desqualificar o avesso de poderosos e do poder tem sido um modo de tomar consciência do que querem nos ocultar para nos dominar. Chico Buarque usou esse recurso político durante a ditadura militar. Dizer para desdizer.

Eu ainda não ingressara no curso primário quando, em 1945, até a molecada da rua, em suas brincadeiras, abria o berro para cantar “O Cordão dos Puxa-Saco”, de Roberto Martins. Puxa-saco não era o patriota, era o frouxo.

Com o fim da ditadura de Vargas, os oportunistas disputaram o vazio do poder, acolitados pelos bajuladores de sempre, suprapartidários. Aqui, isso aconteceria de novo com o fim da ditadura militar de 1964. Quem na véspera fora de direita, no dia seguinte de manhã já era de extremo centro. País macunaímico, temos vivido sob o domínio da cultura dos sem caráter.

O “Cordão dos Puxa-Saco” é composição lembrada ainda hoje porque descreve uma situação que se repete e perdura. Tem alguns detalhes interessantes. Em primeiro lugar, a distinção entre cordão e bloco.

O herói social da música é o bloco, modesto, pequeno, vicinal, comunitário, sem estandarte nem instrumentos. Vilão é o cordão, cheio de recursos, abrigo dos débeis de caráter que encontram seu lugar social puxando o peso que é dos outros.

Em países civilizados, a derrota eleitoral de um partido remove-o de fato do poder, mas não da política. Neles não existe poder indireto e disfarçado. Aqui, estamos vivendo a anomalia de que os derrotados continuam agindo como se o poder tivesse duas faces, a de dentro e a de fora, sendo esta a do poder dos puxa-saco, os lambe-botas, os chaleiras.

Vai se ver se a democracia está sendo derrotada pelo cordão dos puxa-saco. A não desprezível massa de 30% de seres imobilizados ideologicamente e inamovíveis, aprisionados no curral político da mera veneração a quem os capturou não como político, mas como feitor, e tem mais visibilidade como poder do que o governo.

O puxa-saquismo faz das pessoas anômalos cúmplices dos poderosos e neles nega a política como representação e o eleitor como cidadão. Durante a ditadura do Estado Novo, a grande massa getulista legitimava-se enviando cartas ao chefe de Estado, geralmente denunciando como comunistas os conhecidos, vizinhos, colegas, amigos e até parentes.

As cartas eram repassadas aos setores de repressão política do Estado, que fazia o seu serviço. Os delatores julgavam-se patriotas, como se julgam os aduladores de agora. A pátria não pode ser confundida com cordão dos puxa-saco.

A destruição até dos laços de família com a polarização manipulada pelo bolsonarismo gerou a desorganização política do país com o crescimento da desorganização social.

Foi particularmente atingido o caráter comunitário da sociabilidade brasileira e das nossas tradições, a tolerância em relação às diferenças de identidade social, de opção em relação ao que é próprio da sociedade moderna, sua diversidade pluralista e funcional. O puxa-saquismo é a consequência da linearização mental e ideológica da população. Nem Deus escapou. Surgiu entre nós o puxa-saquismo pseudo-religioso.

José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp, São Paulo, 2022).

Fonte: https://valor.globo.com/eu-e/coluna/jose-de-souza-martins-a-forca-politica-da-bajulacao.ghtml