Marcelo Coelho*
Se algo se aprende da prata para a seleção de futebol, é que o brasileiro tem alergia ao favoritismo
Foi bem curta a minha carreira, não digo de pianista, mas de aluno
principiante nesse instrumento. Acabou em 1977, num recitalzinho
organizado pela professora.
Eu tinha de tocar uma peça facílima de Bach, que consta do "Pequeno
Livro de Anna Magdalena". Essa coleção reúne músicas ainda mais simples
do que as reunidas nas "23 Peças Fáceis", espécie de segundo degrau numa
escada que continua com as "Invenções a Duas Vozes", essas também
bastante elementares.
Passei o semestre inteiro tocando aquele minutozinho, e o sabia de cor.
Antes de chegar a minha vez, vários alunos tinham se apresentado sem
problemas.
Nervoso eu não estava. Fiquei esperando nos bastidores do auditório da
escola. Para minha sorte, nenhum familiar estava por perto. Sentei-me ao
piano. Comecei com segurança; o som do instrumento era bonito; eu
gostava da música.
"Está indo muito bem", disse-me uma vozinha interior. Provavelmente
bem-intencionada, não sei. Foi o bastante. Ter começado sem erro foi o
que me arruinou. Quando me vi tocando bem, passei a tocar pessimamente. A
continuação da peça fugiu de mim; os dedos tremiam.
Segundos depois, estava tudo acabado. Aplaudiram-me, porque seria
impossível me vaiarem naquela situação escolar. Mesmo assim, não pude
deixar de reagir com um movimento de ofensa interior às palmas,
obviamente caridosas, que me eram dirigidas.
Eu queria tanto sair de lá que me esqueci de voltar ao camarim. Vi uma
escadinha que saía do palco em direção à plateia. Por lá me
embarafustei, entre as cadeiras enfileiradas, até a saída do auditório, e
daí para a rua, onde os carros, postes e fios elétricos não tinham
ouvidos nem mãos para aplaudir.
Lembro isso por causa de certos fiascos e de algumas vitórias obtidas pelo Brasil na Olimpíada.
Se algo se aprende do ouro para a judoca do Piauí, e da prata para a
seleção de futebol, é que o brasileiro tem alergia ao favoritismo.
Diego Hypólito, Fabiana Murer, Neymar, Cesar Cielo: as tradicionais
"esperanças" olímpicas brasileiras resultaram em frustração. E quem já
tinha ouvido falar de Arthur Zanetti, ouro nas argolas, ou de Sarah
Menezes, no judô?
Imagino que a torcida, mesmo de longe, pese desfavoravelmente sobre os
atletas. A seleção feminina de vôlei só ganhou porque o mundo inteiro já
tinha desistido de acreditar em seu sucesso.
Talvez com países maiores esse problema não aconteça; não recai sobre
fulaninho ou beltraninha a responsabilidade de defender a pátria inteira
nas costas.
Verdade que as Olimpíadas são devoradoras de favoritos, venham de onde
venham. A saltadora russa e o tenista suíço também se deram mal. Em todo
caso, o Brasil tem sempre dívidas maiores a pagar com sua própria
imagem. Não é possível que fiquemos só com os poucos grãos de milho
esquecidos no terreiro, depois que as aves de raça se refestelaram de
medalhas.
No futebol, a seleção brasileira sofre há décadas de um favoritismo que
parece injusto, mesmo quando a vitória se concretiza numa competição. É
vitória suada, que se consegue mais ou menos nos pênaltis, jogando
sempre mal. O que valia para o masculino começa a se impor no feminino
também.
Nem quero pensar no tipo de pressão que virá quando a Copa for no
Brasil. Quanto às Olimpíadas, pelo menos o raciocínio me alivia. A
maioria dos prognósticos aponta para fiasco na organização do evento.
Quem sabe, como no judô ou nas argolas, não tenhamos surpresa nesse
ponto?
Voltei ao piano, já sem nada a perder, quase 40 anos depois. Para minha
surpresa, a parte tradicionalmente mais chata do aprendizado, os
exercícios técnicos, revelou-se a melhor de praticar.
Refaço dez, 30, 80 vezes a mesma passagem pelas teclas pretas. Graças ao
piano digital, com fones de ouvido, a vizinhança não reclama. A mente
se entrega a uma espécie de sonho; pessoas e lugares voltam à memória.
Um antigo professor da faculdade é convocado à escala de ré menor. O
exercício 57, na mão esquerda, leva-me a uma esquina do Campo Belo. Os
jurados de um programa de televisão de 1966 respondem ao acorde de fá.
Avancei, o que é medalha de prata para mim, até as "Invenções a Duas
Vozes": depois de quatro semanas, comecei a dominar os dois primeiros
cwompassos.
Qualquer hora dessas, estarei me dedicando à ginástica olímpica também. Nada como o fracasso, é o que sempre digo.
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* Jornalista. Escritor.
coelhofsp@uol.com.brFonte: Folha on line, 15/08/2012
Imagem da Intenet
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