José Tolentino Mendonça*
Li uma vez e não me sai da cabeça um texto da escritora
Clarice Lispector sobre esse improviso que salva a vida: ela chama-lhe
acertadamente o "ato gratuito". Talvez se deva começar por explicar
aquilo que o "ato gratuito" não é. Ele não é mais uma estação da
ofegante luta pela vida que quotidianamente nos traz mobilizados. Ele
não é a necessária corrida ao trabalho, aos bens, ao consumo, aos
horários implacáveis, aos transportes que não dormem. Nem se pode
identificar sequer com os pequenos prazeres que nos damos, os lazeres,
as viagens programadas, as recompensas disto e daquilo. O "ato
gratuito" não tem preço: por definição, não se compra nem se paga.
É sempre uma sede de liberdade que nos acorda
para o gratuito. E não uma liberdade disto e daquilo. Eu diria: é
antes, uma pura liberdade de ser, de sentir-se vivo; uma expansão da
alma, não condicionada pela avareza das convenções; uma urgência não de
dons, mas de dom. Hoje, por exemplo, uma amiga procurou-me para que eu
lhe indicasse um voluntariado. Ela nem tem muito tempo, dedicada a um
emprego absorvente e complexo, com os filhos numa idade em que dependem
muito dela. «Talvez só possa dar duas horas de quinze em quinze dias» -
disse-me. E eu retorqui-lhe, sorrindo: «Duas horas podem ser uma
imensidão». Na verdade, não é o tempo o mais importante. O essencial é
deixar que se formule no interior de nós e que se expresse livremente o
"ato gratuito".
O serviço aos outros é um excelente exemplo do
gratuito. Mas em relação a nós próprios ele tem igualmente de existir.
No texto que li de Clarice Lispector ela conta: «Eram 2 horas da tarde
de verão. Interrompi meu trabalho, mudei rapidamente de roupa, desci,
tomei um táxi que passava e disse ao chofer: vamos ao Jardim Botânico.
"Que rua?", perguntou ele. "O senhor não está entendendo",
expliquei-lhe, "não quero ir ao bairro e sim ao Jardim do bairro." Não
sei porquê, olhou-me um instante com atenção.
Deixei abertas as vidraças do carro, que corria
muito, e eu já começara minha liberdade deixando que um vento
fortíssimo me desalinhasse os cabelos e me batesse no rosto grato de
felicidade. Eu ia ao Jardim Botânico para quê? Só para olhar. Só para
ver. Só para sentir. Só para viver».
Uma vez vi grafitada, num muro, uma pergunta:
«Acreditam na vida antes da morte?». Foi um baque para mim. Claro que
alarga infinitamente o horizonte acreditar que há vida depois da morte.
Porém, se eu, por algum motivo, desistir de confiar que existe vida
(isto é, possibilidade de vida verdadeira) antes da minha morte, tudo
fica estranho, escuro e perdido.
O "ato gratuito" é um gesto que nos salva. Uma
das mais belas orações que conheço foi aquela encontrada entre os
pertences pessoais de um judeu, morto num campo de concentração. Diz o
seguinte: «Senhor, quando vieres na Tua glória, não Te lembres somente
dos homens de boa vontade; lembra-Te também dos homens de má vontade.
E, no dia do Julgamento, não Te lembres apenas das crueldades e
violências que eles praticaram: lembra-Te também dos frutos que
produzimos por causa daquilo que eles nos fizeram. Lembra-Te da
paciência, da coragem, da confraternização, da humildade, da grandeza
de alma e da fidelidade que os nossos carrascos acabaram por despertar
em cada um de nós. Permite então, Senhor, que os frutos em nós
despertados possam servir também para salvar esses homens».
----------------------
* Teólogo português. Escritor. Poeta.
Fonte: In DNotícias.pt
Ato Gratuito - Clarice Lispector
Muitas
vezes o que me salvou foi improvisar um ato gratuito. Ato gratuito, se tem causas,
são desconhecidas. E se tem conseqüências, são imprevisíveis.
O
ato gratuito é o oposto da luta pela vida e na vida. Ele é o oposto da nossa
corrida pelo dinheiro, pelo trabalho,
pelo amor, pelos prazeres, pelos táxis e ônibus, pela nossa vida diária enfim -
que esta é toda paga, istoé, tem o seu preço.
Uma
tarde dessas, de céu puramente azul e pequenas nuvens branquíssimas, estava eu
escrevendo a máquina - quando alguma coisa em mim aconteceu.
Era
o profundo cansaço da luta.
E
percebi que estava sedenta. Uma sede de liberdade me acordara. Eu estava
simplesmente exausta de morar num apartamento. Estava exausta de tirar idéias
de mim mesma. Estava exausta do barulho da máquina de escrever. Então a sede
estranha e profunda me apareceu. Eu precisava - precisava com urgência - de um
ato de liberdade: do ato que é por si só. Um ato que manifestasse fora de mim o
que eu secretamente era. E necessitava de um ato pelo qual eu não precisava
pagar. Não digo pagar com dinheiro mas sim, de um modo mais amplo,pagar o alto
preço que custa viver.
Então
minha própria sede guiou-me. Eram 2 horas da tarde de verão. Interrompi meu
trabalho, mudei rapidamente de roupa, desci, tomei um táxi que passava e disse
ao chofer: "Vamos ao Jardim Botânico." "Que rua?",
perguntou ele. "O senhor não está entendendo", expliquei-lhe; "não
quero ir ao bairro e sim ao Jardim do bairro."
Não sei por que olhou-me um instante com atenção.
Deixei
abertas as vidraças do carro, que corria muito, e eu já começara minha
liberdade deixando que um vento fortíssimo me desalinhasse os cabelos e me
batesse no rosto grato, de olhos entrefechados de felicidade.
Eu
ia ao Jardim Botânico para quê? Só pra olhar. Só para ver. Só para sentir. Só
para viver.
Saltei
do táxi e atravessei os largos portões. A sombra logo me acolheu. Fiquei
parada. Lá a vida verde era larga. Eu não via ali nenhuma avareza: tudo se dava
por inteiro ao vento, ao ar, à vida, tudo ser erguia em direção ao céu. E mais:
dava também o seu mistério.
O
mistério rodeava. Olhei arbustos frágeis recém-plantados. Olhei uma árvore de
tronco nodoso e escuro, tão largo que me seria impossível abraçá-lo. Por dentro
dessa madeira de rocha, através de raízes pesadas e duras como garras - como é
que corria a seiva, essa coisa quase intangível e que é vida? Havia seiva em
tudo como há sangue em nosso corpo.
De
propósito não vou descrever o que vi: cada pessoa tem que descobrir sozinha.
Apenas lembrarei que havia sombras oscilantes, secretas. De passagem falarei de
leve na liberdade dos pássaros. E na minha liberdade. Mas é só. O resto era o
verde úmido subindo em mim pelas minhas raízes incógnitas. Eu andava, andava. Às
vezes parava. Já me afastara muito do portão de entrada, não o via mais, pois
entrara em tantas alamedas. Eu sentia um medo bom - como um estremecimento
apenas perceptível de alma - um medo bom de talvez estar perdida e nunca mais,
porém nunca mais! achar a porta de saída.
Havia
naquela alameda um chafariz de onde a água corria sem parar. Era uma cara de
pedra e de sua boca jorrava a água. Bebi. Molhe-me toda. Sem me incomodar: esse
exagero estava de acordo com a abundância do Jardim.
O
chão estava às vezes coberto de bolinhas de aroeira, daquelas que caem em abundância
nas calçadas de nossas infâncias e que pisamos, não sei por que, com enorme
prazer. Repeti então o esmagamento das bolinhas e de novo senti o misterioso
gosto bom.
Estava
um cansaço benfazejo, era hora de voltar, o sol já estava mais fraco.
Voltarei
num dia de muita chuva - só para ver o gotejante jardim submerso.
Nota
: peço licença para pedir à pessoa que tão bondosamente traduz meus textos em
braile para cegos que não traduza este. Não quero ferir olhos que não veem.
Fonte: http://olhosquesentem.blogspot.fr/2012/04/ato-gratuito-clarice-lispector.html
Nem acredito que encontrei esse texto! Lindo de viver! Eu tinha 18 quando o li pela primeira vez, e, também ficou na minha cabeça e no meu coração. Amei!
ResponderExcluir