José Tolentino Mendonça*
A primeira das seis propostas que Italo Calvino faz
para o próximo milénio (este que estamos a viver) é a reconquista da
leveza. Se tudo no tempo parece empurrar-nos com ilimitada gravidade
para a rasura, temos de entender, então, a leveza como o ato de
contrariar esse peso. De facto, somos chamados a “aliviar” a espessura
de tudo aquilo que obscurece o texto do mundo e nos obscurece. A leveza
é uma espécie de pacto a estabelecer com a transparência. E,
progressivamente, deverá tornar-se um estilo, uma dicção, um modo
esperançoso de habitar a nossa história.
Com Calvino aprendemos duas coisas importantes sobre a
leveza: a primeira de todas é que ela nos pede uma arte de
resistência, pois só reconquistamos a leveza a custo de uma paciente
luta (a maior parte das vezes connosco próprios); a segunda é a
necessidade de ativarmos a nossa capacidade de deslocação (na verdade,
só um olhar peregrino possui a agilidade espiritual para não se deixar
sequestrar pelo desânimo).
Fixemo-nos na primeira: uma atitude de resistência. A
leveza convoca-nos para a redescoberta das fontes profundas e
adormecidas do nosso Ser e da linguagem. Num mundo de ruído, de
mensagens que se atropelam, de imagens que se devoram (e nos devoram) de
tão repetidas e sobrepostas há que combater a banalização. Mergulhados
num excesso de signos, nem nos damos bem conta da pobreza simbólica
com que construímos, dia a dia, a nossa vida. Tornamo-nos mais
consumidores, que criadores. A nossa ação confunde-se com um
automatismo que renuncia à vocação que o gesto, a palavra ou o silêncio
têm de impregnar o mundo de sentido. Precisamos de leveza, então. Isto
é, de exatidão. Sim, não se pense que a leveza é simplesmente uma
forma mais ligeira de conduzir a realidade, pois ela nada tem de
ligeireza ou de superficialidade. Com razão, Calvino cita um verso de
Paul Valéry: «É preciso ser leve como o pássaro, e não como a pluma».
«Leve como o pássaro», quer dizer, autêntico, preciso, consistente. A
leveza não tem a ver com plumas, mas com a aprendizagem do que é voar,
do que é ascender, do que é desprender-se para ser. A leveza é uma
escolha.
A segunda tarefa passa pela sabedoria de não ficar
aprisionado a um modo único de olhar a realidade. Italo Calvino
explica-a deste modo:
«Cada vez que o reino humano me parece condenado
ao peso,
digo para mim mesmo que […] eu devia voar para outro espaço.
Não se trata absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional
dizer que preciso mudar de ponto de observação,
que preciso considerar o
mundo sob uma outra ótica,
outra lógica, outros meios de conhecimento e
controle».
A leveza desafia-nos não a mudar de vida ou a romper com
aquilo que estruturalmente somos. Pelo contrário, ela supõe uma
aceitação. Mas incita-nos incessantemente a olhar a realidade
quotidiana com olhos novos. Escrevia Saramago na conclusão do seu
“Viagem a Portugal”:
«Quando o viajante se sentou na areia da praia e
disse:
“Não há mais que ver”, sabia que não era assim.
O fim duma viagem
é apenas o começo doutra.
É preciso ver o que não foi visto,
ver outra
vez o que se viu já,
ver na primavera o que se vira no verão,
ver de
dia o que se viu de noite…
É preciso voltar aos passos que foram dados,
para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles.
É preciso
recomeçar a viagem…».
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* Escritor. Poeta. Teólogo.
In Diário de Notícias (Madeira)
16.05.11
In Diário de Notícias (Madeira)
16.05.11
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