Paulo Ghiraldelli Jr.*
1. Introdução
O título indica dois elementos básicos
da educação humanista que, creio eu, mesmo quando essa educação tiver
desaparecido por completo – o que implica em termos esquecido até mesmo
de sua crise – irão se sustentar como tópicos a serem observados. A não
ser que deixemos de lado qualquer tipo de educação e nos tornemos uma
sociedade sem educação, exclusivamente mantida pelo treinamento
e por regras diluídas pela cidade mais ou menos como as regras de
trânsito, teremos em algum lugar algo como um currículo e, nele, estarão
inscritos dois tópicos do Humanismo: “vida moral” e “utopia”.
Uma sociedade para fazer vingar alguma
vida comunitária e ser uma efetivamente uma sociedade precisa de
mecanismos de reprodução de mores e ethos, ou seja, de
hábitos e costumes afinados com a vida privada e a vida pública, e
precisa sustentar algum tipo de esperança de melhoria de si mesma. A
filosofia (tomada como algo maior que tendências, escolas ou trabalhos
individuais de filósofos) tem essa duração tão fantástica, de mais de
vinte e cinco séculos, exatamente porque nunca deixou de ser a
salvaguarda de um desses dois elementos, ou dos dois conjuntamente. Só a
prostituição e a religião rivalizam com a filosofia como práticas
culturais tão antigas e duradouras. Práticas que possuem uma aparência
de fraqueza e, exatamente nisso, uma redobrada e inquebrantável força.
A vida moral e a utopia não podem sair
dos currículos ou de qualquer coisa que, no futuro, venha a se
assemelhar a um percurso adrede preparado para produzir jovens aptos a
deixarem de ser jovens. Por isso mesmo, a vida moral e a utopia não
podem ser entendidas, em nosso tempo, segundo uma noção ou mesmo
conceito que se inicie pelo que é estreito. Digo isso e exemplifico. O
melhor exemplo para dizermos o que é a “vida moral” e a “utopia” como
elementos centrais da educação é começar pelo negativo, pelo que (eu e,
talvez, o leitor) não temos como endossar. Encontramos o que não
queremos em um escancaradamente provocativo escrito de Luís Felipe
Pondé, Contra um mundo melhor.
2. Vida moral
Pondé diz: “A culpa me encanta. Sem ela
não há vida moral plena. Para mim, a vida moral começa e se sustenta no
mal –estar com nossos atos e com o mundo (…).” E confessando não ter
experimentado a culpa de modo arrasador, completa: “Tenho inveja de quem
sente ou já sentiu uma dor moral avassaladora”[1].
Essa posição é obviamente contrária a
tudo que a filosofia mostrou até hoje, mesmo se pensarmos em algumas
posições de Nietzsche como um negador da liberdade humana. A vida moral
pode ser plena sem qualquer culpa, mas deixa de existir sem a liberdade.
Os antigos sabiam disso e mesmo quando criaram sistemas que negavam a
liberdade, como no caso do estoicismo, tentaram contornar o problema
dando ao homem ao menos a capacidade de controlar a si mesmo contra o
mundo. Quando veio o cristianismo, então, a liberdade foi equacionada
com o determinismo posto pelo plano de Deus através de Santo Agostinho.
Afinal, era preciso garantir ao homem, mesmo no plano de Deus, algum
jogo de cintura para que ele e não o Criador se responsabilizasse pelo
Mal. Em outras palavras: não há mores e ethos, não há
costumes e hábitos se não podemos em algum grau, em algum momento,
adquiri-los ou não adquiri-los. No jargão pedagógico: há de se ter um
espaço para a possibilidade de educação ou de não-educação, sem o que
não se pode falar em vida moral ou sociedade ou civilização.
É claro que Pondé pode deixar de lado o
mundo antigo enquanto um mundo grego e sacar a seu favor elementos do
mundo antigo hebreu, em que a culpa antes que a responsabilidade é o
eixo da moral. Mas, se pensarmos bem, por mais que Jó tivesse paciência,
sua obediência cega a Deus, demonstrando uma fé louca, nunca teria
qualquer importância se ele fosse um autômato e não um autônomo. A ideia
moderna do iluminismo ou do romantismo, que é a de autonomia, ainda que
possa ser uma ilusão, precisa ter existência como ilusão, caso
contrário a vida moral que, enfim, pressupõe que podemos fazer as coisas
por hábitos adquiridos, o que implica em algum tipo de educação, se
esvazia completamente. Não pode ser mínima ou plena.
Mas Pondé poderia dizer que a liberdade é
a condição necessária da vida moral, enquanto que a plenitude desta
acabaria por requisitar não só o necessário, mas também o suficiente, e
aí é que teríamos de chamar pela culpa. Ora, o sentimento avassalador de
culpa, que ele pede para poder viver a vida que inveja, que é a vida
moral a partir do sentimento de que é extremamente culpado de ter feito
ou deixado de fazer algo, pode perfeitamente ser substituído pelo de
responsabilidade.
Os gregos falavam na vida moral antes
como vida ética, ou seja, como o que se fazia de costumes e hábitos na
vida pública, a única vida que conheciam, ou seja, a vida na polis, para a polis e pela polis. E nisso, os sistemas filosóficos de todos pregavam a busca da eudaimonia,
a felicidade enquanto algo não exclusivamente íntimo, como nós modernos
a pensamos. Assim, a vida moral tinha também um componente outro além
da liberdade básica, que era a capacidade de cultivo da prosperidade.
Falar em “prosperar” e “ser feliz” eram expressões que podiam ser
substituídas por “eudaimonia”. Prosperar era fazer tudo que se tinha de
fazer, como alguém que recebe da polis sua energia (mesmo
quando à primeira vista contra ela, como no caso de Diógenes, o cínico,
ou Sócrates já sendo condenado pela democracia), de modo a cumprir uma
virtude. Cumprir uma virtude era fazer o que se tinha de fazer de
maneira exímia, exercendo a excelência. Fugir disso ou falhar nisso não
implicava em culpa, como nós entendemos essa palavra hoje, mas em não
ter entendido bem o seu papel na sociedade, suas responsabilidades
sociais. Foi isso que Sócrates quis dizer, em um primeiro momento, a
Alcibíades, ao pedir a este que levasse a sério o dito “Conhece-te a ti
mesmo”, inscrito no Santuário de Delfos. Que ele se conhecesse enquanto
homem livre que queria ir para a política, o que implicaria, então, em
assumir responsabilidades para consigo mesmo e para com seus
concidadãos.[2]
O que leva Pondé a colocar a sua noção
de vida moral plena como alguma coisa com a qual não concordo é o seu
entendimento da virtude para os gregos. Ele toma a virtude do mundo
antigo grego como o que requisita o “combate, sofrimento e dor”.[3]
Creio que ele confunde o mundo hebreu com o mundo antigo como um todo.
Que a virtude requisite combate, tudo bem, mas que o combate possa ser
encilhado com sofrimento e dor é algo completamente tirado da cabeça
dele, não de um registro histórico filosófico grego. Não se vê Sócrates
ou qualquer outro grego cair aos prantos pelos amigos perdidos em
batalhas. Os diálogos sobre batalhas são momentos de se contar histórias
de aventuras, bravuras e honra. Um filme feito por Sócrates sobre as
guerras que participou lembraria os filmes americanos sobre a II Guerra
Mundial estrelado por John Wayne e não os de crítica da América à Guerra
do Vietnã, feitos já pelo “cinema americano alternativo”. O grego fazia
o seu melhor com esforço, mas não com sofrimento. Não há calvário no
mundo grego. Pode-se até dizer que o mundo homérico cultivou mais a
honra que o mundo socrático-platônico, mas, ainda assim, essa
diferenciação não permite colocar o segundo como próximo ao mundo
hebreu, onde a culpa se confunde com a responsabilidade.
Pondé imagina que um grego antigo sofria
para cumprir sua vida moral. Ele despreza um conhecimento básico da
história da filosofia moral, ou seja, que a moral indo para um lado e o
bem estar indo para outro é uma figura do kantismo, não do mundo grego
ou de outros sistemas de moral. Em Kant sim, para sermos morais, temos
de tomar decisões que são “por dever”, e isso implica em negarmos
desejos e negarmos decisões que seriam melhores para nós do ponto de
vista, digamos, particular. Devemos impor uma vontade racional por sobre
os desejos. Isso se parece com o estoicismo ou com Sócrates só para
aqueles que não atentam corretamente para uma diferença fundamental
entre a ética da eudaimonia, antiga ou mesmo já a de Agostinho,
e a ética moderna kantiana. Esta última tem como o apito de advertência
o sentimento de contradição, no campo lógico, e que se desdobra para o
sentimento de não ter atendido um “dever de consciência” totalmente
livre do âmbito empírico. Ora, no caso da ética da eudaimonia,
uma ética da virtude, o que vale é a excelência, então muitos atos que
consideraríamos abomináveis, uma vez levados a cabo segundo a
excelência, poderiam muito bem ser tomados como plenamente morais ou
como próprios de uma vida moral plena. Atos como os de tirar a vida de
um bípede-sem-penas jamais seriam endossados por uma ética ou moral
kantianas, mas seriam completamente possíveis de serem endossados por
uma ética grega. Tirar a vida é algo que não pode ser transformado em
uma regra universalizável e, portanto, não passa no crivo kantiano. No
crivo grego, tirar a vida pode ser um ato de excelência, de fazer a
guerra no seu melhor, ou seja, cumprir a guerra na sua virtude máxima.
Há um cartum no livro Crítica da razão cínica,
de Peter Sloterdijk, em que uma menina pergunta para a avó se, após a
guerra, os Mandamentos irão voltar a valer. O Deus hebreu e Kant foram
suspensos durante a II Guerra Mundial. Eles tiveram de ficar de molho,
vendo o jogo da arquibancada. Nem mesmo no banco de reservas puderam
ficar. Mas na Guerra do Peloponeso, nenhum dos deuses gregos foi
suspenso. Participaram ativamente, ainda que não com o esplendor de
atuação como na Guerra de Tróia. A guerra, onde o tirar a vida é não só o
cotidiano, mas o objetivo, nós modernos entramos contra nossos deuses,
do Céu e da Universidade. Na guerra, os gregos junto de seus deuses,
guiados por eles, entram para tirar a vida de outros em favor dos seres
do Olimpo ou da Academia ou do Liceu.
Sociedades baseadas na honra não possuem
culpa. A falha moral é antes uma falha técnica ou, então, um vício, a
covardia, por exemplo. Sociedades baseadas no amor ou no dever de
consciência, estas sim são sociedades que podem confundir
responsabilidade com culpa. Mas, mesmo nessas, é antes a liberdade a
garantia de vida moral, plena ou não. A culpa não é garantia da vida
moral mínima nem requisito da vida moral plena.
Esses problemas todos criados pela
definição de Pondé ainda possuem mais implicações para a filosofia em
geral, para a vida da cultura e, enfim, para a filosofia da educação.
Vejamos.
Pondé não distingue a vida de um
psicopata com a vida dele mesmo. Um psicopata é aquele que não
experimenta culpa por nada. Exceto tais pessoas, em nossa sociedade,
todos sentem algum grau de culpa. Mas essa culpa não faz nenhum de nós
se tornar menos ou mais moral, não faz ninguém viver a vida moral
plenamente. Mesmo em nossas sociedades modernas, regradas por morais
como as de Kant ou a dos utilitaristas (onde o útil é a regra hedonista
de favorecer o maior bem estar ao maior número de pessoas), a questão da
vida moral plena não está em função de culpa avassaladora ou não, mas
de liberdade para falar, agir e pensar. Quanto mais liberdade ou mesmo
ilusão de liberdade, mais nos envolvemos com opções e, então, podemos
dizer: “fiz o que fiz e só eu posso ter responsabilidade por isso”. Isso
não é sinônimo de “fiz o que fiz e só eu posso ser culpado por isso”. A
responsabilidade é algo dado antes de qualquer ação. A culpa é o que se
sente após ação ou falta desta. Então, para Pondé, a vida moral plena
só é possível para quem faz algo errado e então se amargura na culpa. Em
outras palavras: a vida moral plena é só possível para aqueles seres
que ele inveja: os que desejam de toda maneira vestir uma coroa de
espinhos para sangrar o cérebro, de modo que os neurônios possam ser
machucados pelo que fizeram de mal. Ora, a vida moral, nesse caso, seria
antes de tudo, tão doentia quanto a do psicopata que jamais vestiria
uma coroa de espinhos por conta de comportamento sacana de seus
neurônios. Optando pela definição de Pondé de vida moral plena, teríamos
de optar também por uma sociedade em que psicopatas incapazes de culpa
se equivaleriam a qualquer um, pois, afinal, teriam uma vida tão
estranha quanto a dos moralmente plenos, os arrebatados pela culpa
avassaladora. Os psicopatas sambariam na avenida com a coroa de espinhos
nas mãos enluvadas, jogando na cabeça de outros o apetrecho, enquanto
que os moralmente plenos sambariam na avenida com coras de espinhos na
cabeça, sangrando, em carros alegóricos que estariam na Sapucaí
transmutada no caminho do Calvário. Não sei se olhando o conjunto,
distinguiríamos tais práticas a ponto de dizer: aquilo é o que eu quero e
aquilo é o que eu não quero. O resultado seria apenas o “samba do
criolo doido”.
A imagem do Carnaval, aqui, é
proposital. Seria uma festa de três dias ao ano. Durante três dias no
ano teríamos um momento para mostrarmos os psicopatas e os moralmente
plenos. Depois, no decorrer do ano, voltaríamos a ver a vida de todos
nós, os que podem ter surtos psicóticos, mas que não são psicopatas, e
os que podem ter culpa, mas que não precisam delas para experimentar a
vida moral plena.
3. Utopia
O segundo requisito da educação é a
utopia. Também aqui Pondé aparece, no mesmo livro citado, como o exemplo
a não ser seguido. Não tomo seu texto à toa ou por facilidade com que
se pode argumentar contra, mas porque o que ele diz sobre utopia está na
boca do senso comum da direita e da esquerda, e que não nos ajuda a
pensar bem. A utopia para ele é esvaziada etimologicamente e, então,
ele pode fazer dela o que quiser. Como assim? Eu explico.
Os americanos, ainda que hoje menos que
ontem, colocam a liberdade como sendo um valor para a esquerda e a
verdade um valor para a direita. Richard Rorty endossa isso.[4]
Europeus, canadenses e, enfim, nós brasileiros, dizemos algo diferente.
Em geral entendemos que a direita faz a defesa da liberdade enquanto
que a esquerda luta pela igualdade.[5]
É claro que isso é falado dentro do quadro tradicional, democrático
liberal, e não em um quadro em que regimes totalitários à direita ou à
esquerda estão no poder ou prestes para assaltá-lo. No nosso caso, com
Pondé se pondo do lado filosoficamente conservador, como alguém de
direita, ele toma os conflitos entre a defesa da liberdade e a vida
comunitária como insolúveis. Assim, para ele “uma comunidade não dura
quando sustentada em ideias, uma comunidade dura quando sustentada na
falta de opção”. Ele insiste que não notar isso é a “grande mentira e
erro de todos os movimentos sociais românticos”. Pois “não há como
recuperar a vida qualitativa e não instrumental anterior ao capitalismo
da liberdade sem perder a liberdade de escolha. Por isso fracassaram as
utopias, da URSS ao movimento hippie.” E conclui: “para sermos livres,
não podemos nos sentir parte de nada. Mente quem diz o contrário”.[6] Ora, se é assim, eu pergunto: quem seriam os mentirosos?
O estranho é que os mentirosos seriam
todos os filósofos, ou quase. Os filósofos que não trabalharam com a
noção moderna de indivíduo versus sociedade, como Sócrates, teriam sido mentirosos uma vez que disseram ser livres à medida que eram produtos da polis.
Como diziam, fora dela, na vida bárbara, é que não teriam liberdade.
Filósofos modernos, já conhecedores ou mesmo inventores discussão
“liberdade individual versus preservação comunitária ou
social”, também negaram a não conciliação entre ambos os termos em
disputa. Hegel e Marx, é claro, seriam os grandes mentirosos. Mas, o que
é mais estranho, é que Kant também seria um mentiroso! Até os
anarquistas individualistas acabariam sendo mentirosos, uma vez que a
maioria deles negou o Estado e a Igreja, mas não algum tipo de vida
social comunitária. Ao fim e ao cabo só Pondé não seria mentiroso!
Bem, a favor de Pondé poderíamos sacar a
antropologia de Durkheim e sua escola. Eles diriam que Pondé está
pensando na sociedade em que é vigente a solidariedade mecânica como a
autêntica comunidade. Mas, há de se lembrar, mesmo nesse caso, que a
comunidade onde é vigente a solidariedade orgânica e não a mecânica, ou
seja, a sociedade moderna, para Durkheim, é a que possui os elos
comunitários baseados na individualização e no respeito a vocações
individualizantes, e estas é que dariam à vida comunitária antes
fortalecimento que fraqueza.
Ora, então, no que Pondé está pensando?
Ele está pensando no vazio. Parece que ele está imaginando aquilo que
Marx chamou de uma robinsonada: o homem livre na ilha, como se este,
nesta ilha, não carregasse para ela, para ser livre e não apenas um
selvagem autêntico, toda a sociedade. Assim, se a liberdade é isso que
Pondé acredita que seja, o completo desapego em relação à terra natal ou
à família ou qualquer instituição, chegaríamos fácil à negação da
liberdade. Assim, Pondé só seria de direita, como ele afirma, e assim
mesmo de um modo bem peculiar, pelo registro americano da filosofia
política. Por outros registros, de modo algum.
Mas há mais que objetar a Pondé, no caso. Trata-se de observar a sua noção de utopia. Para ele o movimento hippie
propunha a realização de uma utopia e a URSS também. Ora, as utopias,
como o nome mesmo diz, não eram para serem realizadas. Quando no século
XIX começou-se a falar por meio de teorias sociais em “nova sociedade”
nascida de uma revolução, então a palavra “utopia” entrou em colapso.
Engels escreveu contra ela. Para Engels o marxismo era a ciência da
revolução e da construção de um socialismo que podia ser realizado
exatamente porque não mais só negativo, não mais utópico. Os hippies não
tiveram teoria racionalmente elaborada, mas quando quiseram criar ou
recriar comunidades pré-capitalistas ou pós-capitalistas não o fizeram
sem a mentalidade do século XIX, o de entenderem que a utopia havia sido
desvalorizada. A URSS mais ainda. Jamais Lenin ou qualquer outro
revolucionário bolchevique cedeu um milímetro contra o que Engels
escreveu no célebre Do socialismo utópico ao socialismo científico.
Todos os revolucionários de 1917 quiseram construir o comunismo como
sociedade real, gerada pela teoria revolucionária de Marx, então
“provada verdadeira” por Lênin, e se puseram adiante usando para tal a
nacionalização dos meios de produção e a ditadura contra quaisquer
forças oposicionistas ao partido bolchevique e, depois, Partido
Comunista da URSS. Utopia, nem pensar! Ciência era a palavra chave para
todos esses homens que poderiam dividir a mesa antes com Comte que com
Marx.
Assim, hippies e
revolucionários não falharam, se é que falharam (!), na realização de
utopias, e isso simplesmente porque nunca quiseram fazer algo contra a
definição de utopia. Nunca quiseram “realizar a utopia”, quiseram
realizar uma nova sociedade que eles entendiam bem capaz de ser
realizada, e nada negativa.
As utopias tiveram força no Renascimento
( e por mais tempo) como ideia de sociedades ditas perfeitas, ou seja,
comunidades detalhadamente descritas, construídas sob o rigor da
geometria a ponto de serem caricaturas de ordem, de modo a serem
glosadas com as sociedades existentes a fim de, com bom humor, fazer com
que se notasse a sociedade existente como ridiculamente errada. Os
escritos utópicos tinham um complexo objetivo: a caricatura, uma vez
posta diante do existente assumido como o não caricatural, faria com que
os mais refinados pudessem rir do existente e, ao mesmo tempo, se
incomodarem com a cidade do modo que esta vinha se fazendo. Estranha
função essa, a da caricatura. O existente era o racional conhecido? Ora,
então, perto do efetivamente racional, isto é, a utopia produzida pela
imaginação e, portanto, por uma razão ampliada, as sociedades criticadas
acabavam desmentindo estarem sendo geridas sob uma boa racionalidade.
Essa era a função das utopias. Campanella, Thomas More e Rousseau e
Voltaire pensaram assim. Nessas sociedades utópicas, postas nos livros, a
liberdade individual e a vida comunitária não estavam em oposição,
diferentes do que, desde o início da vida liberal, parecia já ser um
problema ou um futuro problema nas sociedades reais. Mas, pouco
importava isso. Pois não iria se realizar nenhuma daquelas comunidades
postas nos livros. Seria tolo quem ousasse pensar em realizá-las. Por
isso Engels tinha razão em dizer que, para ser marxista, o correto era
abandonar de vez o socialismo herdeiro do Renascimento, do mundo
pré-moderno, que falava em sociedades utópicas, então renomeadas
socialistas. Elas não eram afeitas ao problema da realização ou não
realização.
Assim, quando Pondé põe no as utopias no
campo do erro (ou do acerto), ele trai o nome “utopia”. Com isso ele
aposta que pode jogar no lixo a utopia e, assim, pedir benção no altar
que ele (ao menos verbalmente) escolheu: o do conservadorismo. Nisso,
comete um erro que é mais que um erro linguístico ou de desrespeito à
etimologia. Ele não percebe que jogar fora a utopia não é jogar fora
somente o sonho, é jogar fora o pensamento enquanto pensamento
filosófico. Para um crente em Deus ele não se sai bem. Afinal, quer mais
sonho de perfeição que este, o encerrado na palavra “Deus”? E os
filósofos, nós sabemos bem, não estão proibidos de não serem ateus.
Pondé não se sai bem ao acreditar que ele está pensando, exercitando seu
cérebro filosoficamente, ao falar de utopia como o que não dá certo.
Ora, é claro que não dá. Utopia é da ordem da filosofia e, como esta,
não é para dar certo! Aliás, nem certo e nem errado – é algo da ideia,
mais ou menos como a noção de ideia existe em Kant. Que mentalidade é
essa, a de Pondé, que quer que tudo tenha uma utilidade imediata, que
“dê certo”, para que ele possa falar algo? Isso não é um pouco do que
Hannah Arendt chama de filisteísmo culto?
Não estou aqui fazendo a defesa de Hegel
que diz que a liberdade política – inclusive a liberdade individual –
só se realiza plenamente na comunidade e que a liberdade filosófica é a
consciência do espírito de seus condicionantes. Isso é jargão marxista
batido. Estou dizendo que é difícil endossar como tendo algum sentido
duas das teses de Pondé: primeiro, a tese do “fracasso de utopias” e, em
segundo lugar, o da noção de liberdade como o que implica que não se
possa “fazer parte” de algo. Hanna Arendt forneceria contra Pondé, nos
dois casos, a utopia cristã, como posta por Santo Agostinho (que Pondé
interpreta mal): sou livre exatamente à medida que estou no plano de
Deus. Trata-se da teoria do queijo suíço, que expus em outro lugar[7]:
faço parte do plano de Deus como homem e, como homem, sou o buraco do
queijo suíço, sendo o queijo o próprio plano. Desse modo, sendo o
buraco, o vazio, não estou sob as leis do queijo, mas ao mesmo tempo não
estou fora do queijo. Estou no plano de Deus, o queijo, e não sou
queijo ainda que sem mim, o buraco, o exercer da liberdade, o queijo
suíço não possa ser chamado de queijo suíço, ou seja, o plano de Deus
não poderia ser o plano de Deus. Essa é uma das fórmulas filosóficas que
permite, tranquilamente, entendermos, sem robinsonadas, como que a
filosofia soube, até em sistemas difíceis de conciliação, não falar
coisas como as que Pondé fala a respeito da liberdade como a inimiga
número um de qualquer engajamento e como o que emperra sociedades que
tem algum apreço pela vida comunitária, ou seja, pela própria vida
social.
Desse modo, voltamos a poder, em
educação, também falar de utopia. Esperança é o que dá capacidade para a
educação. É seu segundo pilar ao lado da vida moral. Educamo-nos porque
temos esperanças, porque temos horizontes sustentados por fantasias,
por utopias. Não queremos realizar essas utopias. No máximo queremos
fazer o que Richard Rorty entendeu como um bom substituto da realização
utópica, ou seja, produzirmos sociedades em que tenham prolifere
indivíduos cada vez mais ricos pelas diferenças e pluralidades e que
eles, ainda assim, sejam apenas “versões melhores de nós mesmos”, ou seja, ainda reconhecíveis como bípedes sem penas.
Paulo Ghiraldelli Jr.
[1] Pondé, L.F. Contra um mundo melhor. São Paulo: Leya, 2010.
[2] Plato. Great Alcibiades. In: Cooper, J. Plato Complete Works. Indianapolis/Cambridege: Hackryy Publishing Company, 1997.
[3] Pondé, op. Cit., p. 64.
[4] Ver: Rorty, R. Educação: socialização e individualização. In: Ghiraldelli Jr., P. O que você precisa saber em filosofia da educação. Rio de Janeiro: DPA, 2001.
[5] Ver K
[6] Pondé, op.cit., p. 188.
[7] Ver Ghiraldelli Jr., P. A filosofia com medicina da alma. Barueri-SP:Manole, 2011.
----------------
* Filósofo. Prof. Universitário. Escritor.
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/2012/08/04/vida-moral-e-utopia/
Nenhum comentário:
Postar um comentário