“...
ao tentar reuni-los numa narrativa coerente, algo não funcionou. Não
conseguia expressar os sentimentos que dele se apossaram em muitas das
situações pelas quais passara, por exemplo no encontro com o arcebispo.
Era como se faltasse o essencial; era como se as palavras embora
escolhidas com esmero, em vez de mostrar a plenitude do que ele sentia,
ao contrário, escondessem ou amputassem seu significado principal. Não
conseguia expressar sua desgraça na semântica limitada da palavra, no
recorte por demais preciso do conceito, na vulgaridade da expressão
idiomática. Ele, poeta premiado da língua iídiche, não alcançava pela
palavra a transcendência almejada (...)
Aos poucos K. foi se dando conta de que havia um impedimento maior.
Claro, as palavras sempre limitavam o que se queria dizer, mas não era
este o problema principal; seu bloqueio era moral, não era lingüístico:
estava errado fazer da tragédia da sua filha objeto de criação
literária, nada podia estar mais errado. Envaidecer-se por escrever
bonito sobre uma coisa tão feia. Ainda mais que foi por causa desse
maldito iídiche que ele não viu o que estava se passando bem debaixo de
seus olhos, os estratagemas da filha para evitar que ele a visitasse,
suas viagens repentinas sem dizer para onde.
Lembrou o dia em que ela, apressada—talvez assustada—, irrompeu em sua
reunião de sábado com os escritores e ele a admoestou, sem olhar para
seus olhos, sem tentar saber o que ela queria. Imagine, fazer literatura
com um episódio desses. Impossível.”
Um dos livros que mais tenham causaram “sensação” no último ano é o romance de estreia do jornalista B. Kucinski, K., por abordar o tema dos “desaparecidos” na época do regime militar.
Aproveitando
a inicial de seu sobrenome, ele evoca uma atmosfera kafkiana (a própria
edição da Expressão Popular, inacreditavelmente barata—15 reais—tem,
em sua capa e ilustrações—de Enio Squeff—, um timbre expressionista,
que lembra ilustrações para livros de Dostoiévski ou Graciliano Ramos,
autores igualmente angustiantes) para contar a história do périplo do
pai, a partir de 1974, tentando saber do paradeiro da irmã, sequestrada
por agentes do famigerado delegado Sérgio Paranhos Fleury (que morreu
“afogado” em 1979), junto com o marido.
Judeu
(é um importante escritor na moribunda língua iídiche) oriundo da
Polônia, o sr. K. sequer sabia ser a filha casada, de tal forma ela se
distanciara dele por conta de um segundo matrimônio e da sua dedicação
obsessiva à literatura (voltarei a isso).
Assim como em Missing,
de Costa Gavras, onde acompanhávamos a descida aos infernos de um
extraordinário Jack Lemmon como o norte-americano típico que não queria
acreditar que seu país conspirara com a ditadura de Pinochet e ajudara a
executar seu filho ativista, acompanhamos agora essa travessia agônica
por etapas terríveis—porque, em primeiro lugar, o Governo negava que
mantinha presa (e provavelmente assassinara) a caçula (tanto que, numa
reunião abjeta, uma comissão da USP—na qual ela trabalhava como
professora de química—a demite por “abandono de cargo”); a partir daí,
ainda na esperança de que esteja viva, ele admoesta autoridades
nacionais e estrangeiras, aciona a Anistia Internacional, até que, aos
poucos, convence-se de que está morta, e então se preocupa em localizar
seu corpo, o que nunca será possível, e suporta o assédio de gente que
quer extorquir dinheiro para dar informações, todas falsas, sobre o
paradeiro dela, viva (há telefonemas, correspondência de outros países,
etc) ou do seu cadáver.
E
por acompanhar esse percurso ao mesmo tempo tão trágico e tão sórdido, o
leitor que já considerava (como eu) que ficou muito mal resolvido o
acerto de contas do Brasil com sua ditadura militar, por conta da
anistia para todos, inclusive para os torturadores, não pode deixar de
considerar K. um livro da maior importância.
O
aspecto mais bem resolvido do texto, a meu ver, é a demonstração das
camadas perceptivas que o tempo interpõe entre os fatos e as reações a
eles. Um exemplo: quando o sr. K. procura um rabino para que se coloque
uma lápide para a filha no cemitério israelita, mesmo não havendo corpo:
“...o rabino não só rejeita o pedido, como demonstra frieza
frente ao seu drama. Alguns meses mais e isso mudará, depois que outro
rabino... oficiar na missa ecumênica do jornalista judeu assassinado
pelos militares. K. está um pouco adiante do seu tempo”.[1]
Como disse, K.
tem impacto e importância legítimos. Nem por isso o deixa de apresentar
graves defeitos. Kucinski optou por uma estrutura flexível muito
interessante, seguindo a linha do romance “desmontável” a la Sherwood
Anderson (Winesburg, Ohio) e Vidas Secas, permanecendo
numa linha tênue entre narrativas curtas soltas e uma narrativa geral
mais sistemática: assim, ele imagina o delegado Fleury em ação; a fala
da amante do torturador-mor, execrada por todos, porém apaixonada por
ele; uma faxineira que testemunhou o destino que se dava aos corpos dos
torturados, numa sessão de terapia, enfim toda uma engrenagem ficcional
que—supostamente—enriqueceria o drama do sr. K. Não é o que acontece. Os
personagens são caricatos, esses capítulos são óbvios e medíocres do
ponto-de-vista narrativo e não acrescentam nada à nossa percepção do
período ditatorial. E o texto muitas vezes recorre aos lugares-comuns
mais deploráveis: “Seu traço dominante era o maxilar projetado para fora, compondo uma imagem de determinação e intransigência...” (caracterização do genro); “Jesuína
põe-se a soluçar, de início um gemido surdo; logo o choro se acelera e
ela é tomada por convulsões, escorregando lentamente da cadeira; a
terapeuta a agarra antes que desabe a põe de pé, abraçando-a. Ambas
choram”. Há momentos bons, como o capítulo que dá a fala ao pai do genro, mas a maioria deixa a desejar.
Também
quando quer ser especulativo, mais reflexivo, Kucinski revela uma
tendência à banalidade que chega a ser aflitiva, caso do capítulo no
qual discorre sobre a culpa dos sobreviventes. Não bastasse, há ainda
erros de informação grosseiros: quando se refere à Escolha de Sofia e nos diz que ela se suicida já anciã (!!!??—de onde ele tirou isso?), ou quando se refere ao final de O processo,
e diz que Joseph K. vai se enforcar (!!!??—idem). Aliás, é
singularmente deplorável que, dentre os textos kafkianos, Kucinsci
escolha O veredicto e O processo para comentar, e não as premonições sobre o totalitarismo como Na colônia penal.
E,
pasme, leitor, isso não é o pior: digladiando com o regime militar, o
sr. K. acaba colocando a culpa toda da trajetória trágica da filha (como
se ela não tivesse vontade própria, não fosse um indivíduo) na sua
ausência como pai e na sua absorção ao projeto literário. Poderia ser o
caso de uma percepção equivocada do protagonista, mas a narrativa deixa
tudo tão mal definido e equívoco (pois parece que o destino do Sr. K.
vai ganhando uma tonalidade subjetiva demais, muito judaica, por sinal,
em que toma para si, como coisa individual, um pathos que é coletivo;
creio, inclusive, que por isso ele se concentrou em O veredicto e O processo, e se esqueceu de Na colônia penal),
que, no final, não se sabe propriamente quem tirou a filha da vida do
pai, a literatura ou a ditadura. E esta última ganha mais um tento no
eterno jogo de negaceios e esquivas em se lidar com ela.
[1]
No entanto, há algo de mal resolvido no episódio. Eu não entendo porque
pessoas não-religiosas vão procurar autoridades religiosas para pedir
algo que vai contra os dogmas da religião e se chocam com isso. Pelo que
se depreende, o Sr. K. se distanciou da religião judaica. Por que o
rabino teria de atender a um pedido dele? Todas as ilações subseqüentes a
respeito da atitude do rabino são esdrúxulas e só seriam compreensíveis
se K. nos falasse de dentro da religião, como alguém sufocado por
dogmas injustos. De fora, não faz sentido: "Embora rejeitando a religião, conhece seus preceitos"; "Revoltado,
retoma o veredito de seus tempos de juventude, do saber rabínico como
um jogo de palavras de raízes medievais e sem relação com a realidade." Então por que procurar um representante desse saber rabínico e esperar dele algo que viole os preceitos?
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