O jornalista Michael Moynihan, que contestou a citação de Bob Dylan contida no livro de Jonah Lehre
Magrinho, bonito e com o visual nerd que virou sinônimo de sucesso nos
EUA, o escritor americano Jonah Lehrer dava cerca de 40 palestras por
ano, com cachê médio de US$ 20 mil por evento.
O jovem de 31 anos deslumbrava plateias -- de pediatras, empreiteiros,
advogados, o que fosse -- ao transformar neurociência em assunto
palatável e pragmático. Depois de ouvi-lo, você tinha a nítida sensação
de que poderia mudar alguma coisa na sua vida.
Seu último livro, "Imagine: Como Funciona a Criatividade", já vendeu 200
mil exemplares de março para cá, com previsão de lançamento em 40
países.
Ao explicar como Bob Dylan se inspirou para compor "Like a Rolling
Stone" ou como a multinacional 3M deu aos funcionários liberdade para
idealizar produtos como o Post-it, Lehrer expunha as engrenagens da
inovação, essa palavrinha que, depois de sustentabilidade, virou o
clichê máximo do jargão corporativo.
A primeira parte, "Sozinho", descreve os insights da criatividade
enquanto estamos sós, sem foco ou fora de nossa área de especialidade. A
segunda, "Juntos", explica como a inovação surge do encontro entre
diferentes, da diversidade nova-iorquina aos cafés do Vale do Silício, e
como o desenho da sede da Pixar propicia a criação.
"Todo dia começa na Pixar do mesmo jeito. Uma dúzia de animadores e de
cientistas se senta numa pequena sala de projeção em confortáveis
poltronas. Eles começam a analisar segundos da produção finalizados no
dia anterior", diz Lehrer. "A atmosfera dura dos encontros na busca por
imperfeições e erros parece contradizer a ideia de ser sempre positivo
em criatividade em grupo."
Até a gênese dos produtos de limpeza da Procter & Gamble é dissecada
no livro, que preconiza brainstormings mais violentos, onde
participantes possam criticar com dureza as ideias dos colegas.
O escritor americano Jonah Lehrer
ASCENSÃO E QUEDA
Seus livros anteriores, "O Momento Decisivo" (Best Business) e "Proust
Foi um Neurocientista" (Record), tinham a mesma levada pop-científica.
Repórter da revista mais prestigiosa dos EUA, a "New Yorker", Lehrer se
formou em neurociência pela Universidade Columbia e em 2005 ganhou uma
das mais concorridas bolsas americanas, a Rhodes (da qual Bill Clinton é
famoso ex-bolsista), para estudar literatura e filosofia em Oxford.
Em 2010, antes dos 30, o jornalista comprou por US$ 2,5 milhões a casa
Shulman, pequena joia modernista construída em 1950 na Califórnia, obra
do arquiteto Raphael Soriano. Ele mora lá, com a mulher e a filha de um
ano de idade.
Em um mês e meio, a reputação de Lehrer se desintegrou. Primeiro, foi
acusado de autoplágio: repetia ou reciclava histórias e reportagens nos
vários veículos para os quais escrevia (a "New Yorker" o perdoou. David
Remnick, o editor, declarou: "Há todo tipo de crime e pecado neste
negócio. Se ele estivesse inventando algo ou se apropriando do trabalho
de outros, isso seria outro nível de crime").
No início de julho, um blogueiro especializado em Bob Dylan desmascarou o
primeiro capítulo de "Imagine". Diversas frases atribuídas ao
compositor tinham sido inventadas. "É difícil explicar. É só essa
sensação de que você tem algo a dizer", Dylan diz no livro. Sem
conseguir encontrar a fonte de tal frase, o blogueiro passou semanas
questionando o jornalista.
Pressionado, Lehrer assumiu a excessiva liberdade com que tratou o
método criativo de Dylan e pediu demissão da "New Yorker". Sua editora
mandou recolher milhares de exemplares do livro, que formavam pilhas na
entrada de livrarias por todo o país, e se comprometeu a reembolsar as
lojas pelos exemplares não vendidos.
A Companhia das Letras, que havia adquirido os direitos e anunciado a
publicação no Brasil, cancelou o contrato. A livraria virtual Amazon
tirou a obra do site. Lehrer sumiu de circulação, mas o escândalo virou
motivo de debate diário na TV, em jornais e revistas.
FILÃO EDITORIAL
O caso arranhou a credibilidade de um grande negócio contemporâneo e de
um dos maiores filões da indústria editorial mundial: a autoajuda classe
A, aquela que não ousa dizer o nome.
Vários dos maiores best-sellers americanos da última década e alguns dos
mais bem-pagos palestrantes do mundo seguem religiosamente essa
fórmula, que já contagia obras em campos tão diversos como economia,
psicologia, arquitetura, saúde ou física.
O maior nome do gênero é o jornalista canadense radicado em Nova York Malcom Gladwell, 49, colega de Lehrer na "New Yorker".
Com quatro livros no currículo, "O Ponto da Virada", "Blink: A Decisão
num Piscar de Olhos", "Fora de Série: Outliers" e "O que se Passa na
Cabeça dos Cachorros?" -- todos lançados no Brasil pela Sextante, exceto
"Blink", que saiu pela Rocco --, ele vendeu oito milhões de cópias
apenas nos EUA.
Num perfil publicado na revista "New York" em 2009, Gladwell foi
apontado como o palestrante mais caro do país, depois de Bill Clinton.
Seu cachê por palestra era de US$ 80 mil -e ele fazia 30 apresentações
dessas por ano.
Gladwell fala de psicologia, epidemias sociais, idiossincrasias de
homens de sucesso. Já escreveu sobre como uma camiseta inventada por um
skatista na zona sul de Manhattan pode virar peça de luxo e sobre como
Nova York virou uma cidade segura após perseguir e punir contravenções
menores.
Sua grande habilidade é transformar pesquisas impenetráveis em contos do
cotidiano, explicando obviedades nas quais o leitor comum jamais tinha
pensado. Para seus críticos, é uma fórmula: pegue um resultado de uma
pesquisa científica, arranje uma boa história "humana", uma fábula para
ilustrá-la melhor e trabalhe para concluir com uma lição de vida.
Ao se tornar um astro pop das letras, Gladwell virou alvo até de
revistas de celebridades, que discutem seu enorme sucesso com as
mulheres e seu penteado extravagante, de cachinhos ouriçados.
NOVOS GLADWELLS
"Na faculdade, há diversos candidatos a Gladwell hoje", diz o professor
de empreendedorismo para jornalistas Jeremy Caplan, da City University
de Nova York (Cuny). Ele diz que muitos jornalistas estão prontos para
explorar os caminhos abertos por Gladwell e Lehrer: com pesquisas
acadêmicas acessíveis via internet, com boa investigação e com a
facilidade jornalística para traduzir temas complexos em linguagem sem
ossos nem espinhas, novos gladwells podem surgir a qualquer momento.
O efeito inverso também ocorre. Segundo Caplan, há uma corrente de
acadêmicos abraçando o estilo jornalístico para popularizar suas teorias
e, quem sabe, alcançar a mesma aclamação popular.
Ele cita os best-sellers de psicólogos como Dan Ariely ("Positivamente
Irracional" e "Previsivelmente Irracional"), Steven Pinker ("Como a
Mente Funciona" e "Do que É Feito o Pensamento"), Richard Thaler
("Nudge: O Empurrão para a Escolha Certa") e Daniel Kahneman, professor
de Caplan em Princeton que acaba de lançar aqui seu "Rápido e Devagar:
Duas Formas de Pensar" (Objetiva).
Eles usam a psicologia aplicada à economia comportamental para explicar
hábitos de consumo, como criar filhos, como obter a felicidade ou como
se alimentar bem.
Todos se tornaram celebridades também por conta das conferências TED
(sigla para Tecnologia, Entretenimento e Design), a série de palestras
cronometradas (com no máximo de 18 minutos de duração) nas quais nomes
de variadas áreas do conhecimento recorrem a frases de efeito, histórias
humanas e dicas para mudar sua vida.
Desde 2006, as conferências são colocadas na internet gratuitamente,
para uma audiência que já chegou a 500 milhões de visitas no ano
passado. O slogan é: "Ideias que vale a pena espalhar".
Para os críticos, trata-se de um show que virou fórmula; para os
defensores, um modo barato e eficaz de levar conhecimento de primeira
linha a milhões ao redor do mundo, com ideias práticas que todos podem
aplicar a si mesmos.
Até no livro de um acadêmico de prestígio como o psicólogo Daniel
Kahneman, pai da economia comportamental e Nobel de Economia em 2002, o
capítulo de encerramento parece um manual do que se fazer após a
leitura. "Rápido e Devagar", que condensa 40 anos de pesquisas sobre
nosso "behaviorismo econômico", inclui lições que governos e empresas
deveriam tomar para defender consumidores e cidadãos de si mesmos.
EFEITO DO EFEITO
A respeito de Kahneman, o crítico Daniel Engber, colunista da revista
"Slate", diz que esses sucessos literários científicos e as obras do
"jornalismo de ideias" trazem o que ele chama de "o efeito do efeito".
"Reduza qualquer coisa que você estiver explicando para uma única frase
em itálico e repita, repita, repita." Isso aumenta o efeito da teoria,
facilita seu uso no formato de palestras compactas popularizadas na
internet, como a série TED, e ajuda no marketing desses livros e de seus
autores.
Kahneman cunhou o "efeito halo" para explicar como consultamos pessoas
vistas como mais inteligentes em qualquer assunto, mesmo quando não
estão aptas a responder -- como se elas tivessem uma auréola especial.
Gladwell chamou de "poder do contexto" o "efeito das janelas quebradas",
explicando como um lugar que parece abandonado provoca mais abandono em
seu entorno.
O termo foi originalmente usado por Will Bratton, comissário da Polícia
de Nova York. Consertar uma janela teria esse poder reparador de negar
ou afastar o abandono. Ele dizia que aplicar penas rígidas contra quem
comete delitos menores, como pular catracas no metrô para não pagar a
passagem, serve para evitar crimes mais graves. Locais em que a pichação
e o salto da catraca eram quase liberados tornavam-se terreno fértil
para crimes mais sérios.
"As mesmas frases de efeito podem pular de um best-seller para outro,
surgindo em diferentes contextos, alteradas ou não. Se essas ideias são
boas e úteis, como as do Kahneman parecem ser, todos saem ganhando. Mas
como teremos certeza?", indaga Engber.
Ele acredita que esse "efeitismo" todo provocará um estado de "excesso
de diagnose", e que essas frases de efeito de autoajuda serão tantas e
tão diversas que já não nos lembraremos para que servem.
Na economia, o maior caso de gladwellismo é o sucesso da série
"Freakonomics", parceria do economista Steven Levitt, da Universidade de
Chicago, com o jornalista Stephen Dubner, do "New York Times".
No primeiro livro, de 2005, que vendeu 4 milhões de exemplares pelo
mundo, a dupla aplica a teoria econômica a temas diversos como o impacto
da legalização do aborto na queda de crimes violentos em Nova York ou
as diferenças no modo como corretores imobiliários vendem suas próprias
casas e as de seus clientes.
SERMÕES
Na filosofia, o "como mudar sua vida" inspirou um dos títulos mais
irônicos --e bem-sucedidos -- da autoajuda classe A. "Como Proust pode
Mudar sua Vida" foi um dos primeiros best-sellers internacionais do
suíço-britânico Alain de Botton, responsável por outros títulos como "As
Consolações da Filosofia", "A Arquitetura da Felicidade", "Religião
para Ateus" e "Ansiedade de Status".
Ele também provoca arrepios entre acadêmicos, mas virou habitué no
circuito de palestras TED e criou sua própria "Casa do Saber", a Escola
da Vida, em Londres, cujo slogan é autoexplicativo: "Boas ideias para a
vida cotidiana". Uma aula programada para setembro, com o filósofo Mark
Earls, é sobre a "mentira da originalidade" e a importância da "cópia".
A aula faz parte dos "sermões dominicais" da Escola da Vida, onde há
cânticos e aulas entusiasmadas (que lembram certos cursinhos
pré-vestibular do Brasil), numa espécie congregação religiosa (ingresso a
£ 15, ou R$ 47,5), seguindo a filosofia de "Religião para Ateus",
último livro do criador da escola.
"Alain de Botton é um cara intelectualmente sofisticado, quase um esteta
da filosofia, da crítica de arte e literatura, assim como os franceses
Luc Ferry, Roger-Pol Droit e André Comte-Sponville, que fazem coletâneas
de pensamentos dos clássicos ou explicam temas sobre ética e moral para
público leigo", avalia o crítico da Folha Manuel da Costa Pinto.
"São todos sérios e rigorosos, embora a academia torça o nariz. Na
França, a filosofia tem um peso tão grande (e às vezes excessivo) na
vida pública que até a autoajuda acaba sendo praticada com bom lastro de
erudição", diz, lembrando que o fenômeno também é sucesso no velho
continente.
A revista britânica "Economist" já chamou esse fenômeno de "inteligência
para as massas" e destacou seu lado positivo. Com o advento da
internet, pesquisas acadêmicas, museus, óperas, palestras de cientistas e
artistas ficaram mais acessíveis e encontraram públicos famintos, que
até há pouco não teriam como acessar o que é produzido e discutido nos
grandes centros. O preço a pagar seria a simplificação e o comercialismo
que dominam essa tendência.
CRÍTICAS
Ironicamente, é um desses autores ultrapopulares que aplica a ciência
com C maiúsculo a histórias cotidianas, o psicólogo Steven Pinker, 57,
um dos maiores críticos de Gladwell.
Canadense e de cabelos revoltos como Gladwell, Pinker publicou uma feroz
crítica no "New York Times", chamando Gladwell de "gênio menor que,
inconscientemente, demonstra os perigos do raciocínio estatístico,
usando causos falaciosos e falsas dicotomias". Em várias entrevistas,
ele acusa Gladwell de escrever superficialmente sobre o que não sabe.
Depois de falar no TED, em 2008, o ensaísta e financista libanês Nassim
Taleb, autor de "A Lógica do Cisne Negro", best-seller de administração,
acusou as conferências de "monstruosidade que transforma cientistas e
pensadores em performers de circo".
"A academia tem sentimentos dúbios com essa vertente da ciência pop",
diz o professor Caplan. "Há ceticismo pela simplificação de assuntos
complexos, mas muitos realmente querem atrair o interesse popular para
suas pesquisas, o que é muito justo. Acessibilidade e credibilidade são
fundamentais para esse público leigo."
O mercado editorial agradece o efeitismo do efeito. "Mesmo uma séria
biografia de Montaigne, 'Como Viver', tem um título de autoajuda",
exemplifica o romancista Cristovão Tezza, que diz não ter nada contra
obras que apresentem pesquisas científicas em linguagem corrente,
acessível.
QUEDA
A queda de Lehrer não é só dele. Ele se consagrou por fazer ideias
complicadas parecerem simples e atraentes. Também caiu nossa tolerância
coletiva a qualquer coisa que pareça complexa, nosso apetite por
conceitos que não possam ser capturados em frases de efeito, mantras
corporativos ou seminários de autoajuda. Devemos estar surpresos por ele
ter preferido inventar uma frase de Dylan a citar uma verdadeira?
O editor-sênior da revista "The Atlantic", Ta-Nehisi Coates, faz a avaliação de que não temos paciência para o mistério. "Queremos decifrar os deuses, queremos oráculos e queremos tudo isso agora."
O editor-sênior da revista "The Atlantic", Ta-Nehisi Coates, faz a avaliação de que não temos paciência para o mistério. "Queremos decifrar os deuses, queremos oráculos e queremos tudo isso agora."
A crítica mais dura a Lehrer, porém, saiu um mês antes da polêmica das
frases fabricadas. O editor da revista "New Republic", Isaac Chotiner,
disse em junho que "Imagine" esfregava teorias científicas na cara dos
leitores para dar autoridade a suas descobertas.
"Mas autores como Gladwell ou Lehrer jamais desafiam as descobertas
sobre as quais escrevem, pois lhes falta a expertise para fazer tais
desafios."
"O livro é um manual para empreendedores", prossegue o editor. "Sua
definição de criatividade é essencialmente uma empreendedora. Para ele,
qualquer coisa que faça sucesso, que venda bem, é criativa."
Apesar de defensor da 'inteligência para as massas", o professor Caplan,
da Cuny, concorda com os perigos desse viés tão pragmático. Ele lembra a
crítica, cada vez mais forte nos EUA, aos cursos de humanidades, que
seriam pouco práticos.
"Hoje se dá mais importância aqui ao saber aplicado, à engenharia ou
matemática, mais importantes para o mercado. Esses livros parecem querer
dar resultados práticos nas ciências humanas. O saber pelo saber não
seria suficiente?"
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Reportagem por RAUL JUSTE LORES DE NOVA YORK
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/1142831-descoberta-de-fraude-leva-livros-de-autoajuda-classe-a-a-crise-de-legitimidade.shtml
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