terça-feira, 18 de setembro de 2012

Não sei

Francisco Daudt*

Todos têm explicações engatilhadas, teorias engendradas, receitas preparadas, conselhos a dar 

SERÁ QUE a origem e o desenvolvimento do indivíduo (ontogênese) repetem a origem e o desenvolvimento de sua espécie (filogênese)? Sei que esta teoria já foi desacreditada há tempos, mas às vezes ela faz sentido. 

Todos nós, quando crianças, precisávamos nos agarrar a fatores externos que nos dessem segurança. Real ou inventada, acreditávamos na proteção dos pais, das preces, de nossas crenças, das superstições, dos rituais, das explicações que arranjávamos para tapar os buracos de nossos conhecimentos, e desprezo total para escapar do que não nos era alcançável, como uma língua estrangeira, por exemplo. 

Mesmo aí, lembro-me de inventar uma algaravia de sons parecidos para poder cantar músicas em inglês. 

À medida que crescemos, vamos descobrindo que não sabemos inglês, que a tempestade com trovoadas não é consequência da lavagem do céu e de móveis lá empurrados para a faxina, que os bebês não são trazidos pelas cegonhas, e que se fecharmos os olhos bem apertados, as ameaças não somem. Perdemos frequentemente até crenças religiosas. Ou seja, migramos do mundo mágico para um realismo relativo. 

Ora, o mesmo aconteceu com nossa espécie. Nossos antepassados tinham uma quantidade de crendices semelhantes às que as crianças têm. Nós saímos da infância, a espécie também foi saindo. O que não significa que, adultos, desprezemos o pensamento mágico para produzir uma sensação ilusória de segurança. 

Era folclórico no colégio: um livro grosso de problemas de matemática nos dava uma compulsão masturbatória. O que há de erótico na matemática? Nada, claro. Era o horror do abismo da nossa ignorância exigindo um mecanismo de defesa, um devaneio que tirasse nossa atenção daquilo. Enfrentar o "não sei" nunca foi fácil, quer para o indivíduo, quer para a espécie. No entanto, pensar "não sei, mas quero saber" foi o motor da filosofia, que depois foi mãe da ciência. 

Repare em torno. Quantas pessoas respondem "não sei" a qualquer pergunta que lhes seja feita? Muito poucas. Todos têm explicações engatilhadas, teorias engendradas, receitas preparadas, conselhos a dar a cada problema que se lhes é apresentado. 

Mesmo os cientistas, eles ficaram tão deslumbrados com o "poder mágico" da ciência e da tecnologia, que passaram a endeusá-las como crianças e suas crendices. 

Uma paciente foi ao oftalmologista. Ele ficou horrorizado porque, pelo aparelho, sua pressão ocular era zero. Foi ela a três outros, só para ouvir o mesmo. Finalmente consultou-se com um quarto. Este nem usou aparelho. Simplesmente apertou o dedo em seu olho e disse: "Um olho é como um pneu de bicicleta. Quando não tem pressão, o dedo afunda. O seu tem". 

Era a forma da córnea que impedia a medição. Mas para os outros, se o aparelho dizia zero, zero deveria ser. A ciência era inquestionável (e olhe que, por definição, ela é o interminável questionamento). 

A verdade é como o açúcar do Barão de Itararé: "uma substância que dá muito mau gosto ao café, em se não lho botando". Nossa espécie, em geral, parece preferir café amargo. 
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* Colunista da Folha
Fonte: Folha on line, 18/09/2012
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