Francisco Daudt*
Todos têm explicações engatilhadas, teorias engendradas, receitas preparadas, conselhos a dar
SERÁ QUE a origem e o desenvolvimento do indivíduo (ontogênese) repetem a
origem e o desenvolvimento de sua espécie (filogênese)? Sei que esta
teoria já foi desacreditada há tempos, mas às vezes ela faz sentido.
Todos nós, quando crianças, precisávamos nos agarrar a fatores externos
que nos dessem segurança. Real ou inventada, acreditávamos na proteção
dos pais, das preces, de nossas crenças, das superstições, dos rituais,
das explicações que arranjávamos para tapar os buracos de nossos
conhecimentos, e desprezo total para escapar do que não nos era
alcançável, como uma língua estrangeira, por exemplo.
Mesmo aí, lembro-me de inventar uma algaravia de sons parecidos para poder cantar músicas em inglês.
À medida que crescemos, vamos descobrindo que não sabemos inglês, que a
tempestade com trovoadas não é consequência da lavagem do céu e de
móveis lá empurrados para a faxina, que os bebês não são trazidos pelas
cegonhas, e que se fecharmos os olhos bem apertados, as ameaças não
somem. Perdemos frequentemente até crenças religiosas. Ou seja, migramos
do mundo mágico para um realismo relativo.
Ora, o mesmo aconteceu com nossa espécie. Nossos antepassados tinham uma
quantidade de crendices semelhantes às que as crianças têm. Nós saímos
da infância, a espécie também foi saindo. O que não significa que,
adultos, desprezemos o pensamento mágico para produzir uma sensação
ilusória de segurança.
Era folclórico no colégio: um livro grosso de problemas de matemática
nos dava uma compulsão masturbatória. O que há de erótico na matemática?
Nada, claro. Era o horror do abismo da nossa ignorância exigindo um
mecanismo de defesa, um devaneio que tirasse nossa atenção daquilo.
Enfrentar o "não sei" nunca foi fácil, quer para o indivíduo, quer para a
espécie. No entanto, pensar "não sei, mas quero saber" foi o motor da
filosofia, que depois foi mãe da ciência.
Repare em torno. Quantas pessoas respondem "não sei" a qualquer pergunta
que lhes seja feita? Muito poucas. Todos têm explicações engatilhadas,
teorias engendradas, receitas preparadas, conselhos a dar a cada
problema que se lhes é apresentado.
Mesmo os cientistas, eles ficaram tão deslumbrados com o "poder mágico"
da ciência e da tecnologia, que passaram a endeusá-las como crianças e
suas crendices.
Uma paciente foi ao oftalmologista. Ele ficou horrorizado porque, pelo
aparelho, sua pressão ocular era zero. Foi ela a três outros, só para
ouvir o mesmo. Finalmente consultou-se com um quarto. Este nem usou
aparelho. Simplesmente apertou o dedo em seu olho e disse: "Um olho é
como um pneu de bicicleta. Quando não tem pressão, o dedo afunda. O seu
tem".
Era a forma da córnea que impedia a medição. Mas para os outros, se o
aparelho dizia zero, zero deveria ser. A ciência era inquestionável (e
olhe que, por definição, ela é o interminável questionamento).
A verdade é como o açúcar do Barão de Itararé: "uma substância que dá
muito mau gosto ao café, em se não lho botando". Nossa espécie, em
geral, parece preferir café amargo.
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* Colunista da Folha
Fonte: Folha on line, 18/09/2012
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