Karina*
Antes de qualquer coisa, tenhamos sempre um dado inegável em mente: Jesus NUNCA escreveu nada (que se saiba com alguma certeza como assim sendo). Portanto, tudo o que temos a seu respeito, é a visão de outras pessoas sobre ele,
que são, por sua vez, interpretadas e reinterpretadas por todas as
outras pessoas que tem ou tiveram contato com os primeiros textos, com
os textos atuais das Bíblias, que nada mais são que interpretações e
pontos de vista pessoais de discípulos. Tanto por isso que diferem tanto
entre si. Cada cabeça, uma sentença, já nos lembra a sabedoria
popular. Como é bem comentado no artigo abaixo, no início (e penso que
ainda hoje), não houve apenas um cristianismo, mas vários, cada um com
seu corpo de crenças e visão a respeito de Jesus e de sua missão. Não é
porque algumas visões foram mais bem-sucedidas em prevalecer até os dias
atuais que sejam necessariamente as mais “corretas” ou as mais
“inspiradas”. A História nos mostra que qualquer culto dominante só
atinge esse status derramando muito sangue e calando os “opositores” na
marra. Nada de divino nisso…
Portanto, apesar do título da notícia,
publicada pela revista Veja, não se pode utilizar essa referência
descoberta, como prova. Exatamente porque ela se refere ao modo como um
grupo de pessoas interpretou algum fato ou fala de Jesus. Assim como não podemos utilizar nenhuma referência a Jesus como “prova” indiscutível de quem ele realmente foi. O que sabemos é que existem concordâncias em alguns aspectos, discordâncias no restante, que por sinal é a maioria.
Mas da mesma forma que por apenas um
fragmento falando sobre uma possível esposa nós não podemos concluir que
esta seja “a verdade” sobre o estado civil de Jesus, também não podemos
concluir que ele tenha sido celibatário pelo fato de nos principais
textos não se falar nada a respeito da vida sexual ou afetiva dele. E
apesar de concordar com as considerações feitas pelo especialista
convidado pela Veja, dizer que a possibilidade de Jesus ter sido casado
é uma hipótese preferida por feministas para apoiar suas posições
também é um tanto reducionista… Pode haver quem utiliza essa
possibilidade para advogar em causa própria, sempre há, mas convenhamos,
definitivamente não existe um número maior de razões para crer que
Jesus era celibatário do que para crer que foi casado ou tido
relacionamentos amorosos… Particularmente, penso (assim como outros
autores e historiadores – do sexo masculino inclusive) que se
ele fosse celibatário, certamente teriam muito mais referências a isso,
exatamente porque esta nunca foi uma prática comum ou bem vista entre
os Judeus. E Jesus nasceu e morreu Judeu…
Enfim. São debates em torno da historicidade do Mensageiro.
Segue abaixo, o artigo completo da Veja On-line, datado de 18/09/2012:
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Pedaço de papiro do século 4, que seria fragmento de um evangelho apócrifo, traz, pela primeira vez, um trecho que faz referência direta a “esposa de Jesus”. Segundo historiadora de Harvard, o texto, no entanto, não prova nada
Um pedaço de papiro de apenas quatro por
oito centímetros pode reacender o debate — e as teorias da conspiração —
sobre a vida de Jesus Cristo e, em especial, sobre a possibilidade de
ele ter sido casado. Uma historiadora especializada nos primeiros anos
do cristianismo recebeu um papiro, que seria fragmento de um evangelho apócrifo,
com uma frase nunca antes vista em nenhuma documento antigo: “Jesus
disse a eles, ‘Minha esposa (…)’.” Embora outros evangelhos apócrifos
façam referência a um Jesus que teria se relacionado, em especial, com Maria Madalena, nunca nenhum deles trouxe a palavra ‘esposa’.
O papiro é escrito em copta, um antigo
idioma egípcio que usa caracteres gregos. A peça, trazida a público
por Karen King, historiadora eclesiástica da Universidade Harvard, em um
encontro de especialistas em copta em Roma, nesta terça-feira, teria
sido escrita no século IV, mas provavelmente é uma cópia de um texto
anterior feito por volta de 150 d.C.
Não é prova — Karen
já se antecipou à principal discussão que seu estudo provocará: em um
texto publicado no site de Harvard, ela afirma que a referência não
constitui prova de que Jesus Cristo tinha uma esposa. No entanto, se de
fato datar do século 2 d.C., o fragmento indica que o debate sobre se
aquele que é considerado filho direto de Deus pela cristandade era ou
não celibatário era uma realidade 150 anos após a sua morte.
No artigo publicado no site de Harvard, Karen King batizou o achado de The Gospel of Jesus’s Wife (O Evangelho da Mulher de Jesus, em tradução livre). O
texto apócrifo, composto por oito linhas, está totalmente fragmentado, o
que dificulta qualquer tentativa de interpretação, segundo a própria
historiadora. Mas ela é enfática ao comentar a quarta – e mais
importante – linha, na qual se lê claramente: “Jesus disse a eles:
‘Minha mulher’.”
“Essas palavras não podem significar nada diferente”, disse Karen King ao jornal The New York Times.
A quinta linha prossegue: “Ela estará preparada para ser minha
discípula”, mas é incerto se Jesus estaria se referindo àquela que seria
sua esposa ou a outra mulher. A historiadora tampouco acredita na tese
de que a esposa em questão fosse Maria Madalena. Em entrevista publicada
na Harvard Magazine , ela disse que nos textos antigos as
mulheres eram sempre definidas pelo seu vínculo com homens (como na
fórmula “Maria, esposa de José”). Jesus e Maria Madalena não são
mencionados dessa forma em nenhum documento conhecido. “Toda a
informação mais antiga e confiável sobre o Jesus histórico se cala a
esse respeito”, diz a pesquisadora.
Celibatário — A Igreja
Católica sustenta que Jesus Cristo era celibatário. Os quatro evangelhos
que narram a vida de Jesus (Mateus, Marcos, Lucas e João) não fazem
referência a qualquer companheira. Nos últimos anos, essa tese foi
contestada em filmes e livros, a exemplo de A Última Tentação de Cristo, dirigido por Martin Scorsese, o que atraiu duras críticas da Igreja, e do livro O Código Da Vinci, de
Dan Brow, inspirado no evangelho apócrifo de Felipe. Mas Karen King diz
que seu trabalho não tem nada a ver com a trama. “Não me venha dizer
que isso prova que Dan Brown estava certo”, disse ao The New York Times.
De táxi — Karen King conta no site da Harvard Magazine
que tomou conhecimento do fragmento em 2010. Estava em poder de um
colecionador de artefatos históricos, que não quer se identificar. A
princípio, ela desconfiou da autenticidade do documento. O proprietário
insistiu num segundo contato um ano depois. Ela concordou em
encontrá-lo.
Já com o original em mãos, ela diz ter
passado os últimos meses levando o papiro, cuidadosamente preservado
entre duas lâminas de vidro, a diversos especialistas. O ceticismo
morreu num encontro com Roger Begnall, diretor do Institute for the
Study of the Ancient World (ISAW), da Universidade de Nova York, ao qual
estavam presentes outros papirologistas. Afirma ter saído do encontro
confiando que o fragmento era autêntico. “Não voltamos de metrô. O
papiro merecia andar de táxi”, afirmou a historiadora ao site de
Harvard. Ela também recebeu uma análise positiva de Ariel Shisha-Halevy,
especialista em língua copta da Universidade Hebraica de Jerusalém.
O atual dono do papiro ofereceu doá-lo a
Harvard caso a universidade compre uma parte de sua coleção. Segundo
Karen King, a entidade está considerando a possibilidade.
Apesar da apresentação nesta
terça-feira, ainda não foi realizado um teste com carbono-14 na tinta do
fragmento, o que permitiria estimar com precisão o quão antigo é o
documento. Segundo Karen King, isso poderia danificar o material. Ela
planeja testar a idade do papiro por uma técnica conhecida por
espectroscopia.
Opinião do especialista
Professor do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e autor do livro Judaísmo, Cristianismo, Helenismo. Ensaio sobre Interações Culturais no Mediterrâneo Antigo.
”Quando estudamos um texto em copta, estamos discutindo a literatura cristã do final do século 3. Entre o advento de Jesus, que teria acontecido no ano 30, e a redação desse texto nós temos cerca de 350 anos. Como essa citação não está presente em nenhum texto anterior, e nem no Evangelho de João em grego, que deve ter servido de base para o copta, a única conclusão possível é que a comunidade que escreveu o texto acreditava em um Jesus casado.
“Não existe um único cristianismo, mas vários. As experiências religiosas cristãs são muito diversas. O fato de um texto dizer que Jesus foi casado não pode ser encarado como uma revelação teológica, e nem como uma representação de como pensavam todos os cristãos da época. O fragmento diz mais sobre a comunidade que o produziu do que sobre o verdadeiro Jesus histórico. Como acontece com todos os evangelhos, aliás. Eles dizem mais sobre as primeiras experiências cristãs do que sobre o Jesus que existiu.
“A professora Karen King é uma cientista da religião, muito respeitada na área. Mas ela é uma pesquisadora do tempo presente, cujas interpretações também falam do nosso tempo. Suas pesquisas destacam a presença e importância das mulheres no início do cristianismo, gozando de primazias no interior das igrejas antigas. Essas reivindicações antigas são transplantadas para os dias de hoje, quando as mulheres são excluídas da igreja. São as feministas que retomam essa experiência antiga, para usá-las em apoio às suas posições.
“Usar esse fragmento para dizer que Jesus era casado é sensacionalismo. Seria fazer algo parecido com o que Dan Brown fez em O Código Da Vinci, onde usou trechos do Evangelho de Felipe em copta para dizer que Jesus beijou Maria Madalena. De novo, esse evangelho diz mais sobre as vivências dessa comunidade do que sobre o Jesus real.
“O relato mais antigo a colocar as mulheres na centralidade do apostolado é o Evangelho de João em grego, mais antigo que o copta, e base do usado até hoje pelos católicos. Nele, Maria Madalena é colocada em pé de igualdade com os apóstolos. Ela é única pessoa a ver Jesus ressuscitado, que a incumbe de anunciar sua ressurreição. Esse evangelho abre brechas para discutir questões de gênero dentro do cristianismo. Ele foi escrito pela comunidade joanina, situada provavelmente no mediterrâneo oriental. E mostra que, dentro dessa comunidade, as mulheres poderiam gozar de primazia.
“As religiões baseiam suas práticas pensando em que modelos Jesus deixou para seus sucessores. Sugerir que essa figura central era casada poderia mudar todo o modelo de vida dos religiosos. Obviamente, passaríamos a ter sacerdotes casados. Com a ideia de um núcleo familiar cercando Jesus, o modelo do padre ermitão estaria implodida. Isso também traria mais poder para as mulheres dentro da comunidade cristã. Elas poderiam ser apóstolas, e ministrar cultos.
“Com o encontro das diferentes culturas cristãs, elas foram se unificando. Por fim, o encontro do cristianismo ortodoxo com o império romano fez com que os homens se tornassem o centro da religião e essa visão se tornasse dominante.“
No vídeo abaixo (em inglês, com legendas em português), a historiadora Karen King fala sobre o papiro
Saiba mais
O QUE SÃO OS EVANGELHOS APÓCRIFOS?
São livros que
descrevem a vida de Jesus, mas que a maioria das igrejas cristãs não
considera legítimos. Por isso eles não entram no cânone — conjunto de
textos sagrados — da Bíblia. Além dos evangelhos, porém, há outros tipos
de apócrifos que descrevem, por exemplo, a origem e o fim do mundo,
como fazem o Gênesis e o Apocalipse bíblicos, respectivamente. A maior
parte desses relatos foi destruída ou se perdeu com o tempo. Em 1945,
porém, foram descobertos vários textos escondidos em cavernas no Egito.
De lá pra cá, especialistas passaram décadas na busca de novos textos e
tentando traduzi-los. Entre os relatos já estudados, estão evangelhos
atribuídos a Maria Madalena e aos apóstolos Tomé e Judas.
DE ONDE VIERAM OS EVANGELHOS APÓCRIFOS?
São vestígios de cristianismos perdidos.
O cristianismo, no começo, não era um só, eram vários. “Nos séculos 2 e
3, havia cristãos que acreditavam em um Deus. Outros insistiam que Ele
era dois. Alguns diziam que havia 30. Outros, 365″, escreve Bart Ehrman,
professor de Estudos Religiosos na Universidade da Carolina do Norte,
no livro Lost Christianities (“Cristianismos Perdidos”, sem
versão em português). Os primeiros cristãos viviam em comunidades
clandestinas, que se reuniam às escondidas nas periferias das cidades e
que tinham pouco contato umas com as outras. Essas comunidades eram
lideradas muitas vezes por pessoas que conheceram Cristo ou pelos
próprios apóstolos. Como Cristo não deixou nada escrito, coube a essas
primeiras lideranças do cristianismo construir a religião.
QUEM FOI MARIA MADALENA?
Há um consenso entre os estudiosos do
cristianismo antigo: Maria Madalena realmente existiu. O seu segundo
nome indica que ela nasceu em Magdala, na Baixa Galiléia, região
considerada o berço do movimento de seguidores de Jesus Cristo. Madalena
fez parte do núcleo de discípulos que acompanharam o líder religioso
desde o início
de suas pregações. A primeira referência bíblica a ela surge no
Evangelho de Marcos, mas o grande acontecimento atribuído a sua vida
está na narrativa de João. Lá podemos ler que ela foi a primeira pessoa a
ver e anunciar a ressurreição de Jesus. Essa primazia fez com que
Madalena se tornasse referência para os fiéis da então jovem religião.
Desde o século 2, seu nome é motivo de debate entre os cristãos.
Enquanto alguns a tacharam de pecadora, outros a vêem como uma mulher
independente e com espírito de liderança.
RELAÇÃO JESUS E MARIA MADALENA
RELAÇÃO JESUS E MARIA MADALENA
Os evangelhos de Filipe
e de Maria Madalena afirmam que Madalena recebia revelações
privilegiadas do Salvador. “O Senhor amava Maria mais do que todos os
discípulos e a beijou na boca repetidas vezes”, afirma o de Filipe. Há
também um diálogo entre Pedro e os demais apóstolos no Evangelho de
Maria Madalena (Papiro 8502, II, 13 e 14): “Pedro, sempre fostes
exaltado. Agora te vejo competindo com uma mulher como adversário. Mas,
se o Salvador a fez merecedora, quem és tu para rejeitá-la? Certamente o
Salvador a conhece bem. Daí a ter amado mais do que a nós.” Para Karen
King, historiadora eclesiástica da Universidade Harvard, Madalena estava
tão autorizada a pregar a palavra de Jesus quanto os 12 apóstolos. “Os
textos mostram que Maria Madalena entendeu os ensinamentos de Jesus
melhor do que ninguém”, afirmou, em entrevista à revista National Geographic, editada no Brasil pela Editora Abril.
EVANGELHO DE FELIPE
Apresenta Maria Madalena como possível
companheira de Jesus. É neste texto que se baseiam os que acreditam
existir uma linhagem de descendentes de Cristo. O texto apócrifo
influenciou o livro O Código Da Vinci.
SEXO HÁ 2.000 ANOS
Apesar de não haver nenhuma restrição
para que um líder religioso judeu tivesse relações com mulheres em seu
tempo, ninguém sabe ainda se entre as práticas espirituais de Jesus
estaria o celibato. Da mesma forma, afirmar que ele teve relações com
Maria Madalena, como no enredo de livros como O Código Da Vinci, também não passaria de uma grande especulação.
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* Sou a editora do site InconscienteColetivo.net.
Fontes: Revistas Superinteressante, Mundo Estranho e Aventuras na História
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