Luís Antonio Giron*
Por que a morte está se infantilizando – e nós com ela
Os cemitérios estão ficando mais divertidos. Em países como Romênia e
Inglaterra, eles se mostram mais decorados e próprios para uma
experiência de entretenimento. Locais tradicionalmente dedicados ao luto
e à oração convertem-se em parques temáticos. A moda ainda não chegou
ao Brasil. Mas é questão de tempo para entrarmos na era da
infantilização da morte, como já o fizemos na da vida. Fica aí a ideia
para um coveiro empreendedor.
Até bem pouco tempo atrás, os mortos pediam solenidade, e eram objeto
de veneração. Mas até eles perderam a classe. Prova disso é que os
túmulos estão sendo substituídos por discretas lápides em gramados que
remetem a tudo menos cemitérios. Os vivos sentem horror crescente aos
despojos humanos, e tratam de incinerá-los até convertê-los em cinzas,
para espalhá-las em qualquer lugar que os mortos tenham amado. Não
deixaram de ser lembrados, mas o são do modo mais asséptico possível.
Até mesmo a alegria dos novos cemitérios se afigura excêntrica, pelo
excesso de euforia, e de frivolidade. Que mundo, que tempo é este?
Um mundo e um tempo marcados pelo espetáculo total. O fato pode ser
observado em dois exemplos. O primeiro é o cemitério do vilarejo romeno
de Sapanta, na fronteira com a Ucrânia, conhecido como Cimitrul Vesel
(“Cemitério Feliz” em romeno), virou atração turística por causa de seus
túmulos multicoloridos, com lápides em formato de capelinhas que
mostram os falecidos representados em suas atividades favoritas. Assim,
um padeiro faz pão diante do forno, o moleiro mói grãos e a dona de casa
prepara os pratos para o almoço – pela eternidade. Mais recentemente,
apareceram os técnicos em informática e as mulheres atropeladas por
carrões. Os epitáfios também são alegres. Em um deles, um ente querido
escreveu sobre a cunhada: “Sob esta cruz pesada, jaz minha cunhada. Como
tenho me comportado bem, espero que ela não volte do inferno.” E assim
por diante. O curioso cemitério nasceu da mente de um artista, Stan Joan
Patras (1908-1977). De 1935 até morrer, Patras pintou e esculpiu 800
tumbas. A dele está lá, mostrando o artista de chapéu e expressão
ligeiramente irônica. Hoje ele é reconhecido como inovador. Seu
discípulo, Dimitru Pop, mantém vivo o hábito.
O segundo exemplo repousa (o verbo pode soar de mau gosto, mas vá lá)
nos túmulos das crianças agora são enfeitados com personagens dos
desenhos de Walt Disney. Algumas lápides exibem o formato da cabeça de
Branca de Neve e do Ursinho Puff. Basta passear em cemitérios ingleses
para topar com o fenômeno. É o caso do cemitério da cidade de Essex, no
Oeste da Inglaterra, repleto de túmulos infantis decorados com figuras
da cultura popular. Passeando por ali, o escritor inglês Theodore
Darlympole cunhar o termo “disneyficação da morte” em um artigo para a
revista londrina The Spectator (“The disneyfication of death”,
12/02/2011). O conselho municipal de Essex solicitou que os adereços
fossem retirados, mas o pedido não surtiu efeito. Os pais e parentes
quebram a tradição de austeridade vitoriana que dominou os cemitérios
ingleses e fazem questão de lembrar das crianças mortas como se eles
fossem figurantes de alguma aventura da Disney, e continuam a enfeitar
as tumbas com brinquedos e acessórios vendidos nas lojas, como
miniaturas de Mickey e ursos de pelúcia. Darlympole chama a atenção para
o espírito de competição entre as tumbas, uma querendo aparecer mais
que a outra. Assim, quanto mais ursinhos e princesas um túmulo exibir,
maior o seu prestígio.
Os cemitérios felizes ilustram como vivemos e deixamos de aceitar nossa
finitude, transformando a morte em tabu. Em tempos idos, as pessoas
conviviam com os mortos e se resignavam com o fim inevitável. Ainda que
maquiassem os cadáveres para velá-los com menos repugnância,
sepultavam-nos com respeito religioso. A função de visitar os túmulos
era lembrar e sonhar com um reencontro, até porque acreditava-se na vida
espiritual após a degradação do corpo. Os artistas românticos tentaram
glamorizar e erotizar a morte. Mas em vão, pois a realidade derrubou
qualquer exaltação idealista. Apesar do Romantismo, as pessoas
continuaram a morrer em gerações sucessivas, inapelavelmente e sem uma
ponta de glamour. Os projetos urbanísticos do século XX trataram de
sanitizar o problema. Criaram parques fúnebres e até cemitérios
verticais. Isso até que a visão de um cemitério se tornasse intolerável
aos padrões do convívio civilizado. Não é surpresa que uma nova fase
aconteça agora, neste instante em que o princípio de realidade dá lugar
ao do prazer, e que a fantasia afoga a consciência.
A morte não tem nada a ver com os novos tempos. Ela não combina com a
alta tecnologia. Daí nosso espanto com o fato de Steve Jobs, o inovador
da Apple, ter morrido. Como pode? Vez por outra, topamos com um e-mail
de um falecido e pensamos em dar uma resposta. Mas para onde? E o
Facebook exorta a cutucar um amigo que já morreu. E cutucamos. Ninguém
mais pode morrer de fato, porque seus traços continuam a assombrar o
universo digital. As redes sociais criaram cemitérios virtuais, mas eles
são desprovidos da consistência de um território fixo. Eles de fato não
existem. Os mortos também não. Os cemitérios de terra e pedra, por seu
turno, devem se tornar centros de ilusionismo, como os de Sapanta e
Essex. Ao visitá-los, somos convidados não a relembrar, mas a esquecer
os mortos e a passar momentos agradáveis na ausência de quem deve ser
ignorado. Nesses cemitérios cômicos e inovadores, os visitantes viram
crianças de novo. Num processo de regressão instantânea, não cultuamos
mais os antepassados. Brincamos despreocupados. Se antes viver era
aprender a morrer, como dizia Montaigne, agora os novos cemitérios
ensinam a viver no completo desprezo em relação ao destino que aguarda a
todos. Neles, viver é aprender a ignorar a morte. Os que mais
aproveitam a festa são os fantasmas. Às gargalhadas, eles aguardam para
dar boas-vindas ao próximo sócio do clube.
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* Luís Antônio Giron Editor da seção Mente Aberta de ÉPOCA, escreve sobre
os principais fatos do universo da literatura, do cinema e da TV.
Fonte: http://revistaepoca.globo.com/cultura/luis-antonio-giron/noticia/2012/08/cemiterios-divertidos.html
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