sábado, 11 de agosto de 2012

“É preciso salvar Nelson da observação feita em torno dele”

 

Caco Coelho, pesquisador e diretor de teatro

Um dos principais pesquisadores de Nelson Rodrigues no país, Caco Coelho organizou diversos livros sobre o dramaturgo e escritor. Em 2011, dirigiu uma versão de A Mulher sem Pecado, em Porto Alegre. Este ano, estreou, no Rio, uma montagem de Vestido de Noiva. Atualmente, prepara uma biografia de Nelson. Ele concedeu a seguinte entrevista a Zero Hora na Usina do Gasômetro, na Capital, centro cultural do qual é diretor.

Zero Hora – No centenário de Nelson, o que precisa ser entendido sobre sua obra?

Caco Coelho – O que o move é única e exclusivamente um assunto: a revelação de uma brasilidade que ele percebera latente, que sua família foi a primeira a revelar. Constataram que o futebol era a grande manifestação popular, assim como o samba. Um sentimento de brasilidade que tinha autonomia com relação ao mundo. Por que, durante a ditadura, ele se colocou inclusive contra as esquerdas? Porque o movimento das esquerdas não era nacionalizante. As palavras de ordem eram em espanhol, o castelhano era de Cuba, o símbolo era a foice e o martelo da Rússia. A força estética do Nelson é o excesso, o transbordamento. Na primeira peça, A Mulher sem Pecado, há uma louca enrolando um paninho eternamente, o que é unicamente um exercício de linguagem. Não é uma estética da semelhança com a vida, mas de estranheza. O Brasil precisa que Nelson seja o revelador dessa brasilidade que ficou oculta, dissimulada, soterrada por outras culturas. Então, ele vai lá e resgata um tipo que nunca tinha sido retratado. Um negro nunca tinha sido protagonista de uma peça antes de Anjo Negro; era sempre escravo, serviçal.

ZH – Nelson foi responsável por criar um mito em torno da própria biografia?

Coelho – Há coisas que não ajudam. A biografia do Ruy Castro (O Anjo Pornográfico) é uma tragédia para a compreensão do Nelson. O Ruy faz uma biografia rodriguiana, mas não é a vida do Nelson, é a persona. Com todo respeito, o Ruy não fez a pesquisa; ele leu entrevistas do Nelson. Ele fez a biografia basicamente em cima de entrevistas que o Nelson deu como personagem. O Nelson não estava dando depoimento para que sua vida fosse memorializada; estava defendendo a obra. Trata-se de uma persona criada pelo Nelson, que também criou os heterônimos Suzana Flag e Myrna.
ZH – É preciso salvar Nelson Rodrigues dele mesmo?

Coelho – É preciso salvar Nelson da observação que foi feita em torno dele. A obra do Nelson está desesperadamente ligada ao local de trabalho. Ele é um jornalista. Trabalhou 54 anos. Começa nos jornais do pai (A Manhã e Crítica) como um cronista jovem, repórter policial. Então, vai para O Globo, onde vira um crítico de arte, com outra ambição, com textos de página inteira. E vai para a ópera. Escreve A Mulher sem Pecado e Vestido de Noiva. No processo de estudo da montagem que fizemos no Rio desta segunda, tivemos um curso de ópera porque a estrutura da peça é operística.

ZH – E depois?

Coelho – Ele vai para os Diários Associados. Escreve Meu Destino É Pecar e Escravas do Amor, que é quando Suzana Flag (heterônimo de Nelson Rodrigues) pega o Nelson da cidade e leva para o interior. As duas primeiras peças do Nelson são absolutamente urbanas. Mas onde se passam Álbum de Família, Anjo Negro, Senhora dos Afogados, Doroteia? São todas em um ambiente aonde Suzana Flag o levou. A autora dessas peças se chama Suzana Flag, e não Nelson Rodrigues. Quando surge o Nelson, ou seja, a expressão rodriguiana, ele muda de jornal de novo. Vai trabalhar na Última Hora, onde retoma a atividade de repórter policial. Nasce a coluna A Vida como Ela É... O que ele escreve a seguir? A Falecida, primeira das tragédias cariocas, e A Mentira, primeiro romance assinado por Nelson Rodrigues. O ambiente, aqui, é urbano. As tragédias cariocas nascem enquanto ele está trabalhando na Última Hora. Quando vai trabalhar no Correio da Manhã, escreve as memórias. Nesse momento, escreve Anti-Nelson Rodrigues e A Serpente, que é a peça testamento. Então, a obra do Nelson é consequência de onde está trabalhando. Se tu cortas o contexto, se tu tiras a razão primária de revelação, tu vais ficar achando: “Essa é psicológica, essa é mítica...”.

ZH – Concordas com as classificações do teórico e crítico de teatro Sábato Magaldi para as peças de Nelson? Peças psicológicas, míticas e tragédias cariocas.

Coelho – Tu não entendes o Nelson se leres da forma como o Sábato posicionou as peças. Ele coloca Valsa nº 6 antes de Doroteia e coloca Doroteia antes de Senhora dos Afogados. Não há como. Sem Doroteia, não existe Valsa nº 6. Outra coisa: se desconsiderarmos os romances publicados depois de Vestido de Noiva, não tem como entender (a obra de Nelson). Vestido de Noiva não foi um sucesso (na estreia, em 1943). Foi um momento espetacular, mas que naufragou. Seria sucesso dois anos depois.

ZH – O ideal seria termos disponível uma edição da obra completa de Nelson com teatro, romance, contos, tudo?

Coelho – Evidentemente. Não há possibilidade de acesso à obra do Nelson sem que se entenda a cronologia. São personagens que o acompanham. O Sábato dizia uma frase fundamental: que Nelson é um realista que tem horror da realidade. Temos que entender a dialética disso. A morbidez é uma chave de superação da morte. É esse o sentido. Só no teatro se pode viver a experiência da morte. Se tu te afastas da morte, não penetras no teatro do Nelson. Tens que ler de forma carnavalizada, necessariamente. Se tu estás falando da celebração de uma coisa qualquer e esbarras na vida, tu não atinges o que ele está querendo dizer. Ele está falando de uma cultura brasileira viva, doída, encardida.
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FONTE: ZH on line, 11/08/2012
Imagens da Internet

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