ELOÉSIO PAULO*
Pintura de Davi Calil
Cada dia é mais difícil, neste país, fazer a diferença entre
jornalismo e ficção. A prática contemporânea da difusão de informações
radicalizou o conceito de edição, que, bem considerado, já era familiar a
Homero e São Jerônimo. Para as mentes que entendem melhor os exemplos
que os conceitos, falemos um pouco da entrevista do escritor Paulo
Coelho ao telejornal Bom Dia, Brasil de sexta-feira, 31 de
agosto. Começando por um advérbio mal (ou bem, dependendo do valor que
se atribuir a certos conceitos) colocado: ao falar do novo livro do
escritor, Chico Pinheiro disse (ou melhor, recitou, pois é isso que faz
um apresentador de telejornal) que, apesar de ter sido lançado há um
mês, já está na lista dos mais vendidos.
Um texto mais honesto – e por enquanto estamos falando apenas de jornalismo – diria que, mesmo depois de um mês de lançado, o Manuscrito encontrado em Accra ainda está
na lista dos mais vendidos. Afinal, faz parte da obrigação de um
jornalista levantar dados sobre o fenômeno que reporta. E qualquer
pessoa com um pouco de memória lembra que, quando realmente vendia
muitos livros no Brasil, Paulo Coelho chegou a ter três ou quatro
títulos na lista dos mais vendidos da Veja. E nas primeiras
posições! Ao contrário, seu mais recente livro esteve em sétimo lugar na
mesma lista na semana anterior e, na última semana de agosto, entrou já
em nono. Não tinha como dar outra: no dia 2 de setembro você abre a Veja e o Manuscrito nem figura mais entre os dez.
Não só esse detalhe, mas toda a reportagem atesta o tipo de
tratamento que a imprensa brasileira dispensa a Paulo Coelho ou a
qualquer outra famosidade: bajulação simbiótica. Sim, pois ao mesmo
tempo que ajuda a promover ainda mais o entrevistado, passa ao público a
impressão de que o próprio veículo de comunicação integra uma espécie
de maçonaria do sucesso. Cada veículo tem seus queridinhos, mas em
alguns casos existe uma espécie de convênio no qual se troca a exposição
contínua do famoso por uma quase exclusividade. Caso Globo/Ronaldão,
por exemplo. Ou SBT/Gretchen, talvez (a famosa em decadência não é aqui
uma casualidade).
O engraçado é que o gancho da matéria nem foi o livro, sobre o qual
não se disse uma palavra. Ele seria uma notícia (= fato recente, né?),
apesar de atestar um fracasso relativo para quem já ostentou vendagens
astronômicas. Mas o motivo da notícia era o sucesso de Paulo Coelho,
representado pelo impressionante número de 150 milhões de exemplares
vendidos – ao longo de toda a sua carreira literária, que já dura mais
de 30 anos. Não é nenhuma novidade, essa marca já é antiga para ser
notícia. Além de a informação, colocada dessa forma, parecer mais um
tópico de necrológio. Falando claro, tudo indica que a Globo mais uma
vez integra o esforço de catapultar as vendas de um escritor cujo livro
mais recente, ele mesmo declara na dita entrevista, havia sido um
redondo fracasso. O vencedor está só não vendeu lhufas, assim
como a tão anunciada e noticiada biografia de Coelho preparada – com
requintes de subserviência – pelo também tradicional campeão de vendas
Fernando Morais, aquele do livro sobre Cuba, lembram?
Oh, museu de grandes novidades! Que Paulo Coelho mora em Genebra já
faz alguns anos, que ele é milionário já faz muitos mais. O que a Globo
está de fato noticiando? Que a publicação de um livro do escritor não
dispõe mais do aparato publicitário capaz de fechar uma rua em Bolonha,
por exemplo. Que a mágica está definhando e cada vez menos leitores se
interessam pela mercadoria que ele vende.
Antes
de tratar desse ponto, porém, esclareçamos outro. Ninguém venha citar a
frase de Tom Jobim sobre o brasileiro ter raiva de quem faz sucesso.
Tom Jobim era outros quinhentos. Pelé era outros quinhentos. Ambos eram
de fato os melhores no que faziam. E também deixemos de lado a tópica da
inveja: qualquer escritor tem inveja do outro que vende milhões, viaja
para onde quer e não precisa ter um emprego para sustentar, nas horas
vagas, o vício solitário da literatura. Do que ninguém em pleno gozo das
faculdades mentais pode ter inveja é do escasso valor da obra
paulocoelhana como literatura ou da miséria existencial do escritor,
certamente a mesma de muitos outros famosos que vivem sorrindo nas
vitrines da pseudofelicidade. Um sujeito que se obriga a ridiculamente
declarar na frente das câmaras que “tem um pacto com Deus”. Esqueçam o
que eu vivi, embora seja sobre isso, em suma, que eu escrevo.
Ainda antes daquele ponto: bem na época do lançamento do Manuscrito encontrado em Accra, o jornal Folha de S. Paulo dava inadequado destaque à opinião de Paulo Coelho sobre Ulysses,
quase unanimemente considerado o maior romance do século XX. Uma
opinião rasteira e amadora, que despreza decênios de leituras
qualificadas do livro de Joyce para dizer que ele não tem enredo, que a
história podia ser resumida numa única frase. Ora, isso vale para a Bíblia! Deus criou o mundo, arrependeu-se e resolveu destruir tudo, mas arrependeu-se do arrependimento. E vale para a Divina Comédia. Um cara visitou o inferno, o purgatório e o paraíso.
Existem escritores e escritores. A maioria deles gostaria de viver do
que escreve. Uma boa parte não tem tino comercial, então passa a vida
escrevendo o que pensa, lembra e sente, não aquilo que certamente
interessará a um grande número de pessoas e, portanto, poderá
traduzir-se em vendas e prestígio social. Alguns acertam sem querer e,
escrevendo livros nos quais espremem o sumo de si mesmos, acabam fazendo
sucesso. Outros logo descobrem uma fórmula para vender e não pensam em
outra coisa o resto de suas vidas. Finalmente, há os que solenemente
desprezam o público e de propósito escrevem apenas para si e para seus
amigos, eventualmente acabando por encantar os detentores das chaves que
dão acesso ao Olimpo do cânone. Camões e Joyce viveram na merda, mas
serão para sempre a glória dos idiomas em que escreveram. Ser lido de
verdade, isso é outra história.
Todas as opções acima são válidas. Escrever, como viver, é muito
perigoso. O errado é ficar tentando confundi-las. E a isso tem-se
dedicado Paulo Coelho nos últimos dez anos, nos quais o sucesso de sua
obra revelou-se cada vez mais um sucesso inercial: ela vende em um
número cada vez maior de países devido ao prestígio acarretado pelas
vendas iniciais em dois ou três idiomas, porém vende cada vez menos onde
primeiro vendeu. A equação é simples como qualquer daquelas pirâmides
da riqueza, em que alguém precisa indicar alguns amigos, que indicarão
outros de maneira que, matematicamente, logo os primeiros estarão
milionários. Ocorre que o número de seres humanos é finito, e ainda um
pouco mais o de otários. Nunca é demais lembrar que El Conejo, como
executivo de gravadora, foi responsável pela invenção do pseudocigano
Sidney Magal. E, isso poucos sabem, inventou no início dos anos 80 um
esquema de falsos concursos literários que resultava em antologias
publicadas pela editora-fantasma Xogum: todo mundo entrava, desde que
pagasse. Esta a verdadeira gênese da atividade especificamente literária
do escritor, sendo as letras de música outra conversa que não cabe
aqui.
Desde O Zahir (2005) já ficará patente o esgotamento da
fórmula “sapiencial” da literatura paulocoelhesca. O enredo daquele
romance demonstra um alter ego do autor em plena crise
existencial, alguém entrando em parafuso e atirando paranoicamente em
todas as direções contra a crítica literária, que em geral se recusa a
assinar embaixo da opinião dos leitores – no caso, melhor definidos como
fãs. Coelho tentava convencer a si mesmo de que era um grande escritor,
não contente com a evidente grandeza mercadológica. Agora, ele sabe
melhor do que ninguém que até mesmo esta vem decaindo. Sem dúvida, os
milhões acumulados são suficientes para um final de vida bem tranquilo,
mas o pecúlio estritamente literário é muito escasso para que o autor
sobreviva à própria morte. E essa compensação simbólica talvez seja a
mais importante para a maioria dos escritores. Seu reino não é deste
mundo, embora não fosse nada mau espojar-se, como faz nosso fenômeno,
nas pompas que ele oferta aos bafejados pela sorte.
O Paulo Coelho verdadeiro, sem a edição edulcorante praticada por
toda a grande imprensa brasileira, é um escritor de terceira categoria.
Em termos puramente literários, sua ficção é muito inferior à de
Adelaide Carraro, que nos anos 1960 era considerada subliteratura e hoje
só existe na lembrança de tarados extemporâneos e arqueólogos
literários.
Mas
ele ainda conta com a enorme simpatia que os mídia têm pela famosidade,
na maioria das vezes criada por eles mesmos a partir do quase-nada. Dos
efeitos práticos dessa simpatia, além da exposição contínua dos
eleitos, faz parte também um feroz cerco a quem propõe discutir qualquer
assunto a sério. Este escriba aqui, por exemplo, publicou há cinco anos
um livro chamado Os 10 pecados de Paulo Coelho e ele foi
solenemente ignorado por toda a grande imprensa. Ninguém deu uma linha,
nem mesmo para dizer “vejam só, um invejoso tentando demolir o prestígio
do grande escritor”. Jornalistas de duas grandes publicações disseram
que divulgariam o lançamento, depois tiveram que desdizer, certamente
por ter sido a matéria “embargada” (sabia que existe esse termo na
grande imprensa?) pelos seus editores. Aliás, editor brasileiro hoje em
dia se chama de “publisher”.
É assim, de silêncios e falações, que se faz um mito. Mas os mitos ou
têm lastro ou esboroam-se em pouco tempo. Se Deus está morto, imagine
Paulo Coelho…
* ELOÉSIO PAULO é professor da Universidade Federal de Alfenas e autor do livro Os 10 pecados de Paulo Coelho (Ed. Horizonte)
Fonte: http://espacoacademico.wordpress.com/2012/09/08/ainda-paulo-coelho/
Imagem de Paulo Coelho em Aquarela de Davi Calil



Nenhum comentário:
Postar um comentário