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Autor coloca tragédia daqueles tempos em ordem, como observou o 'El País'
Editora Record lança 'O Dia em Que a Poesia Derrotou um Ditador', do autor chileno
Com o livro O Dia em Que a Poesia Derrotou um Ditador,
o escritor chileno Antonio Skármeta ganhou o Prêmio Ibero-americano de
Narrativa, oferecido pela editora Planeta e a Casa de América. O tom
libertário, aliado a uma escrita cadenciada e uma linguagem simples,
justifica a comenda. Afinal, no romance, o autor coloca em ordem a
tragédia e a esperança daqueles tempos confusos, como observou o jornal
espanhol El País.
O ideal de liberdade norteia a trama: publicitário perseguido pelo
regime militar, Adrián Bettini percebe a grande chance de retomar sua
luta pela democracia quando o plebiscito permitido pelo ditador Augusto
Pinochet libera a propaganda política. Bettini, assim, assume a campanha
do "não", ou seja, contrária à reeleição do mandatário.
Ele dispõe apenas de 15 minutos de propaganda na televisão para
transformar a história de seu país. Quinze minutos contra os 15 anos de
Pinochet no comando da nação.
Um grande desafio diante do homem que governou o Chile até 1990 e uma
chance a mais para se refletir sobre a ditadura e a consequente
redemocratização do país. Vale lembrar que Pinochet esteve preso em
Londres, entre 1998 e 2000, esperando uma decisão da justiça britânica
sobre um pedido de extradição feito pelo juiz espanhol Baltasar Garzón,
que pretendia julgá-lo por crimes contra a humanidade.
Apesar da tentativa do magistrado, o general não foi julgado por
apresentar, segundo a justiça chilena, insanidade mental, e viveu
tranquilamente em seu país até morrer, em 2006, dividindo opiniões entre
os que o apoiavam e os que clamavam por justiça. Sobre esse momento,
Skármeta respondeu, por e-mail, às seguintes questões.
Você já disse que não busca temas políticos, eles vêm inevitavelmente. Isso também se aplica a O Dia em Que a Poesia Derrotou um Ditador?
A liberdade é um direito universal consagrado na Carta das Nações
Unidas. Não é preciso escolher um tema "político" para cantar a
liberdade, a coragem e a inteligência de quem luta por ela. Quando se
vive num regime opressivo como o de Pinochet, não é preciso ter ideias
políticas sofisticadas para enfrentar uma ditadura. Basta ser uma pessoa
honesta e sensível e a rebelião cresce espontaneamente. Claro que os
políticos democráticos são os que conduzem e tornam eficaz essa energia
libertária.
O livro parece homenagear as centenas de anônimos que reconquistaram a liberdade no Chile.
O Chile conseguiu reconquistar sua democracia porque durante todos os
anos da ditadura de Pinochet a população não perdeu de vista a tradição
republicana em que nasceu e jamais renunciou a sonhar com a liberdade.
Este empenho levou milhares de seres nobres e valentes à tortura, à
prisão, ao exílio e à morte. São os heróis anônimos que permitem, com
sua ação, que, em um dado momento, entrem os escritores e poetas
fornecendo a gota d’água que transborda o copo e que afasta Pinochet:
isso ocorreu no plebiscito de 1988, quando a população deu à ditadura
uma derrota inesperada, depois de 15 anos manipulando nos meios de
comunicação a consciência dos chilenos.
Você cita Dante no meio do romance. A frase é relacionada com o professor Santos?
"A liberdade é uma coisa tão bela, que por ela daria até a vida."
Isso, que parece apenas poesia, foi a dolorosa realidade em meu país e,
por que não?, a de vocês, brasileiros.
O que diferenciou a transição chilena da ditadura para a democracia entre as outras ditaduras?
As forças que se agruparam para votar "Não" a Pinochet abrangeram
todo o espectro de posições: desde a esquerda até a direita liberal,
passando pelos democratas sociais e os democratas-cristãos. Quando
observamos quantas mortes e quanto sofrimento foi preciso para afastar
ditadores em outros países latino-americanos - e hoje nos países árabes
-, eu destacaria o caráter pacífico da transição chilena: "Sem ódio, sem
medo, sem violência, vote Não a Pinochet".
A relação entre pai e filho foi bem tratada em outro livro sua, Um Pai de Cinema. Seria um tema recorrente em sua obra?
Nossa vida é o resultado do encontro entre o que nossos pais nos
deixam de herança e a espontaneidade com que mudamos a sociedade e
cumprimos nosso destino, como geração, de dar um outro mundo a nossos
filhos. Renego o "adanismo" (de Adão e Eva): a ideia de que o
mundo nasce comigo e que a tradição se esvai frente às nossas energias.
Não! Porque há poeta, há Carteiro; porque há Carteiro, há poeta.
Do ponto de vista artístico, é interessante a dúvida que
sempre surge com o escritor diante da sua obra. Você acredita que as
certezas não são benéficas para a arte?
A incerteza, a dúvida, a fragilidade, a vulnerabilidade, a fugacidade - são esses os terrenos privilegiados da arte.
É curioso observar que o romance tem um final feliz, o que não é comum na literatura contemporânea. Por quê?
O Dia em Que a Poesia Derrotou um Ditador trata de um triunfo, depois
de uma ditadura degradante - consegui no final do caminho, graças a uma
campanha publicitária repleta de poesia e humor que incentivou os
indecisos que tinham medo de votar Não a Pinochet. Minha novela explora
as trevas a partir das quais nasce a vitória, mas tem todo o humor e
alegria propiciados por uma democracia reconquistada.
A novela demonstra também sua paixão pela filosofia aristotélica e pela lírica de Shakespeare, concorda?
Acho que mais pelos dramas de Shakespeare. Ele é o clássico dos
clássicos. Qualquer uma das suas tragédias e comédias pode ser lida como
uma parábola do mundo contemporâneo. Meu protagonista adolescente
encontra a ética da coragem lendo Shakespeare. Quanto a Aristóteles, é a
admiração de um personagem da minha novela: o professor Santos. Eu
pessoalmente sou mais adepto dos pré-socráticos e Heidegger.
O DIA EM QUE A POESIA DERROTOU UM DITADORAutor: Antonio SkármetaTradutor: Luís Carlos CabralEditora: Record (224 páginas, R$ 32,90)
Leia o conto de Antonio Skármeta.
Efêmero
Antonio Skármeta
Gostei dela como você gosta quando uma mulher realmente o
agrada. Ela provoca em você uma vaga impaciência. Incertezas. Ela o
traz de volta à adolescência. Tira sua loquacidade. A experiência de
anos se faz pedaços.
Tinha o modo soberbo de uma dama que esteve no mundo todo.
Pronunciava as sílabas completas, altiva, com uma entonação perfeita.
Parecia que acabara de inventar o castelhano e que desfrutava dos sons
com um meticuloso deleite.
Eu, que venho de um país onde o "esse", o "cê" e o "zê" são a mesma
coisa, senti-me instantaneamente fascinado e ao mesmo tempo um
analfabeto.
Ela era uma jornalista madrilenha e eu pintor. Talvez por isso nunca soube usar as palavras com essa graciosidade.
Vendo-me assim como um inepto já devia ter se perguntado dez vezes
porque sua revista a encarregara de me entrevistar: afinal, pintores
existem a granel. Minha galerista havia me dito: "se cada uma das
pessoas que pinto comprasse pelo menos um quadro a cada década, minha
profissão seria a mais rentável do mundo".
Estávamos na varanda do hotel em Punta del Este, no Uruguai e,
lentamente, ela limpava as lentes dos óculos com um feltro, sorrindo
irônica à espera que eu sucumbisse ao lugar comum de lhe dizer quanto
gostei dela para sorrir e colocar indiferente o meu elogio no seu amplo
arquivo de lisonjas.
O balneário estava vazio: era pleno inverno, o mar turbulento e as
respeitáveis ondas eram avaliadas com respeito pelos surfistas em sua
roupa apertada.
Na mesa, duas pedras impediam que o vento levantasse a tolha da mesa e
derramasse nossos martinis com suas respectivas azeitonas atravessadas
por um palito de dente.
Mas, mais inquietante do que a bebida, era a chave ao lado da sua taça, do quarto 31.
- Então você é chileno - disse repentinamente.
- Sim.
- Que divertido.
- Por que?
- Um país assim tão grande, tão débil. Nunca estive lá, mas eu o imagino muito estreito. Deve ser incômodo.
- Às vezes. Mas tem uma grande vantagem. Milhares de quilômetros de mar. Ou seja, o infinito ao alcance da mão.
- Para que serve o infinito quando se é tão efêmero? - disse, depois de beber, melancólica, um gole do seu dry martini.
Não soube o que responder, mas como em êxtase tive uma visão total do
azul mar da minha pátria e uma espécie de coragem delirante fez-me
levantar da mesa. Tirei meu abrigo, minha calça e em poucos segundo
fiquei apenas de maiô
- Um mergulho - anunciei, esvaziando de um gole só meu coquetel.
A jornalista envolveu o pescoço num xale negro e sorriu cética.
- Não vai conseguir.
Caminhei até a praia. Ao me aproximar dos surfistas, o que parecia mais velho olhou-me incrédulo.
- Não me diga que vai nadar!
- Fiz uma aposta - respondi, sentindo a água gelada roçar meus pés.
- Pobre. Já perdeu.
-Não, ganhei. Mas nem imagina o que está fazendo neste momento quem a perdeu.
Corri até a primeira onda e mergulhei com energia suficiente para que
não me arrastasse de volta à praia. No começo uivei de dor: o gelo dava
pontadas no meu rosto. Mas ao enfrentar, com êxito, a segunda onda,
gritei de felicidade. Era terrivelmente efêmero, mas estava submerso no
infinito. Isso era tudo.
Havia prometido um mergulho que desejava muitíssimo e saudei com
minha ousadia esse deus que Saint John Perse chamou de "o mar de todas
as idades e todos os nomes".
Corri de volta para a mesa para colocar meu abrigo. As duas taças
estavam vazias e sob a chave do quarto 31 havia um papel dobrado.
Parecia uma mensagem.
Tiritando, desdobrei e li:
"Chileno, parece que deixei na mesa a chave do meu quarto. Se a encontrar, pode me trazer?
Tradução de Terezinha Martino
Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,efemero,928580,0.htm
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Reportagem por Ubiratan Brasil - O Estado de S. Paulo
Fonte: http://www.estadao.com.br/10/09/2012

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